para Cecilia, Antonio, Olivia e quem mais virá
Vó por que você está chorando ouvindo essa música? Ela não é triste, é engraçada.
É triste e engraçada, as duas coisas.
Não pode ser as duas coisas, vó. E tem muita coisa doida. Como é que uma tarde pode cair como um viaduto? Viaduto não cai. Se caísse, a gente morria.
Mas viaduto cai sim, meus queridos. Dizem que a música fala do Viaduto Eugène Freyssinet.
Eugène Freyssinet?
Sim, o nome do viaduto é este. Foi para homenagear um engenheiro francês, considerado o pai do concreto protendido.
Concreto protendido? O que é isso?
O concreto – ou betão como chamam em português de Portugal, concrete em inglês e béton na França – é um material de construção para casas, edifícios. No Brasil quase tudo que se constrói é com estruturas de concreto. O concreto protendido é mais resistente que o concreto armado. Botam umas varas metálicas dentro do cimento. Começou a ser desenvolvido no século dezoito, porém só obteve sucesso em 1928, com Freyssinet.
Eita, muito tempo atrás! E Freyssinet fez o que?
Ele fez muitos projetos, no mundo todo, inclusive um galpão que agora tem o nome dele, na estação ferroviária de Austerlitz, em Paris, no bairro 13, perto de onde nasceu Olívia. Freyssinet tinha um escritório muito importante, fez cálculo até no Brasil, numa barragem Ernestina no Rio Grande do Sul.
Sim, vovó e o que aconteceu com o tal do viaduto Freyssynet? Como foi que ele caiu? Era onde esse viaduto?
Ele começou a ser construído em 1969, no Rio de Janeiro, a cidade de Aldir Blanc (1), que escreveu esta música. Carioca, Aldir fez muitas outras músicas que são verdadeiras crônicas da cidade.
Sim, vovó, mas como caiu o viaduto?
O viaduto Freyssinet, que ficou mais conhecido como Paulo de Frontin, caiu em novembro de 1971, o engenheiro Sérgio Marques de Souza foi condenado a um ano e quatro meses, mas não ficou preso porque conseguiu um sursis.
Um sursis?
Sim, vem do francês surseoir, que significa suspender, quer dizer que ele conseguiu uma dispensa do cumprimento da pena.
E ele era culpado?
Ah isso eu não sei, não se pode confiar na justiça brasileira, sobretudo, quando, como no caso do tal viaduto, estão as empresas de construção por detrás, pressionando. Vejam, meus queridos, neste mesmo ano em que caiu o viaduto Freyssinet, tinha caído antes, em fevereiro, o pavilhão da Gameleira, em Belo Horizonte. E o mais triste da chamada Tragédia da Gameleira foi que acusaram injustamente Joaquim Cardozo.
Quem é Joaquim Cardozo. Você conhecia ele, vovó?
Claro, ele era o engenheiro da obra e poeta. Um homem muito culto. Foi também calculista da caixa d’água de Olinda, pertinho da casa onde nasceram a mãe de Cecilia e Antônio e o pai de Olívia. Não, não tinha aquele elevador não. Botaram depois, projeto de dois alunos de vovó, muito bons arquitetos, mas isso é outra estória.
Onde você conheceu esse Joaquim, vovó? Na caixa d’Água?
Não, imaginem, ele tinha ido para o Rio de Janeiro, na primeira ditadura do Brasil do século 20, no Estado Novo. Voltou para morrer sozinho, no bairro Espinheiro. Tem uma última entrevista dele linda, feita por Geneton Moraes Neto, um jornalista, do Recife, muito bom, passamos um Ano Novo juntos em Londres, na casa de Policarpo e Amália.
Vó e onde você conheceu o Joaquim? No Rio de Janeiro?
Não, fui muito pouco ao Rio de Janeiro, mal conheço a cidade. Primeiro conheci os poemas dele, são lindos, inspiraram João Cabral. Ouçam este poema Retirante, extraído do Coronel de Macambira: bumba-meu-boi em dois quadros.
O retirante
Não tenho pátria, nem glória
Embora – sinal da fome –
Nas páginas secas da história
Haja ao meu nome e renome
Vocês não acham que lembra Morte e Vida Severina?
O que é Morte e vida Severina, vó?
A gente vê mais tarde. Onde estávamos?
No viaduto que caía, vó.
Não, era em como ela conheceu Joaquim Cardozo.
Ah sim, ele foi o calculista de Oscar Niemeyer, o grande arquiteto brasileiro que recebeu o premio Pritzker, uma espécie do Nobel da arquitetura.
Foi na casa desse Oscar Niemeyer vó que você conheceu Joaquim?
Não, não foi na casa de Oscar Niemeyer, nunca fui em nenhuma das casas de Oscar Niemeyer. Eu jantei com Oscar Niemeyer, no palácio do Campo das Princesas, quando Marco Maciel era governador de Pernambuco. Eu era presidente do IAB-PE, o Instituto dos Arquitetos de Pernambuco. Niemeyer queria fazer o centro administrativo do estado e o problema é que todos os arquitetos do estado queriam também, aí foi aquela grita. Mas isso é outra estória, vamos voltar para a música, depois do viaduto?
O bêbado trajando luto? O que é trajando?
Isso eu sei, é vestindo. Trajar é usar trajes, o bêbado devia estar de preto. De luto de alguém da família. Mas por que a música diz que ele lembrou Carlitos?
Dizem que os autores queriam homenagear Carlitos, o nome dado em português para o personagem de Charles Chaplin, nos primeiros filmes mudos. Era um vagabundo, que usava um fraque preto esgarçado, calças e sapatos velhos bem maiores do que o tamanho dos pés, um chapéu côco e um bigodinho. Chaplin morreu em dezembro de 1977, ano em que a canção começou a ser composta. O primeiro filme falado de Chaplin foi um ato de rebeldia contra Hitler, o ditador alemão.
Vó, depois diz na música: “A lua tal qual a dona de um bordel”. O que é um bordel?
Um bordel é um lugar onde mulheres, chamadas prostitutas fazem sexo. Sexo é uma coisa tão boa, graças a qual vocês nasceram, mas infelizmente tem gente, homens em geral, que, por um motivo qualquer, pagam por isto. E, infelizmente tem mulheres para quem o único jeito de ganhar algum dinheiro é oferecendo os serviços de sexo num bordel. Então vejam, na música eles dizem que a dona do bordel pedia a cada estrela guia um brilho de aluguel. Isso é lindo, a estrela guia é a que orientou os 3 Magos até o menino Jesus, é a que leva ao caminho certo. Então a lua está perdidona e a lua é um satélite.
Ah vó, isso eu sei o que é, é um corpo celeste que gravita em torno de outro.
Então você entendeu, a lua estava pedindo à estrela guia que desse uma luz.
Mas onde fica o mata borrão do céu, vó? Por que as nuvens vão para lá?
Você sabe o que é um mata borrão? Quem de vocês sabe?
Eu sei o que é um borrão, uma coisa que a gente escreve antes do texto definitivo. Mas para que matar o borrão?
No meu tempo, a gente não escrevia no computador, escrevia com tinta, com caneta e, às vezes, saía tinta demais, borrava, fazia manchas. Então se usava um mata-borrão, um papel que chupava a tinta, matava os borrões e ficavam com as manchas. As manchas eram nuvens no mata-borrão. A canção compara o céu com um mata-borrão cheio de nuvens, manchas torturadas, talvez pela imagem dos que morreram pela tortura.
Tortura, vó?
Sim queridos, a música foi escrita durante a ditadura militar, a segunda do século 20, a primeira foi aquela da qual já falei, a que levou Cardozo para o Rio de Janeiro. E se torturavam os presos, sobretudo os presos políticos que eram contra os militares. Era a noite do Brasil, a segunda grande noite do século, onde tudo parece escuro, mesmo em noites de lua. Choravam as viúvas Marias e Clarisses pelos maridos, Manuel Fiel Filho e Wladmir Herzog, assassinados pela ditadura. Mas o Brasil sonhava com a volta do irmão de Henfil.
De quem, vó?
Henfil. Foi um cartunista extraordinário. Vá ali na estante buscar uma revistinha, com um quadrinho dele. Os personagens são maravilhosos vejam aqui: o bode Orellana, a graúna.
Meu Deus, como poderíamos ter resistido sem Henfil e sem Quino!
Quino, vó?
Sim, era Henfil no Brasil e Quino na Argentina, onde também houve uma ditadura horrorosa. Quino criou personagens maravilhosas, dentre elas Mafalda. Vá buscar a revista, está na mesma estante.
E quem era o irmão de Henfil, vó?
Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro, motivo pelo qual foi exilado, indo morar em vários países como Chile, Canadá e México, como muitos outros que saíram, fugidos, perseguidos.
Ah, por isso que ele diz que partiram num rabo de foguete?
Sim, saíram correndo, fugindo. A música é de 1977, então se sonhava com a anistia e com a volta do Betinho, que só pode retornar ao Brasil em 1979. Ele e os irmãos tinham uma doença genética que exigia fazer transfusões de sangue constantemente. Aí pegaram o vírus HIV (Human Immunodeficiency Vírus), vírus da imunodeficiência humana, causador da AIDS. Morreram Henfil, Betinho e mais outro irmão, o músico Chico Mário, este aos 39 anos.
Vó, esta música não tem mesmo nada de engraçado, é muito triste.
Pois é, mas ela se tornou o hino da Anistia.
Anistia?
Sim, uma lei, em 1979, quando os exilados, presos políticos puderam voltar e aos poucos instalou-se a democracia, e teve a campanha para eleições diretas. E a gente passou a cantar essa música, sempre com alegria, porque toda dor pungente – sabem o que é pungente? aguda, penetrante, que dói muito – tinha passado e não tinha sido sofrida inutilmente. Mas, agora um dos autores da música, Aldir Blanc acaba de morrer aos 73 anos, de um novo vírus, o corona, que é mais forte que o HIV, aquele que matou os três irmãos mineiros. É uma Pandemia, um horror no mundo todo. Mas, no Brasil, temos um presidente que apoia a tortura, pessoas que o apoiam que querem a volta do regime militar e a esperança não encontra nem corda bamba para se equilibrar. Muitos de nós, estamos fora do Brasil, meus queridos, somos uns estadunidenses, outros franceses. Mas, também nestes países, embora as condições de vida e de segurança, em geral, sejam muito melhores que as do Brasil, o perigo de tempos escuros, como as noites do Brasil, não está afastado. Presidentes como Trump e na França, a oposição de extrema direita, o grupo de Le Pen, vivem ameaçando a possibilidade de uma vida humana digna. E os construtores de viadutos que caem são os mesmos que desflorestam a Amazônia, matam os índios, comprometem o equilíbrio ecológico. Eu espero que vocês tenham a possibilidade de viverem num planeta menos ameaçado. Entre o riso e o choro, também há lugar para o sonho.
nota
1
Aldir Blanc Mendes (Rio de Janeiro, 1946-2020), conhecido como Aldir Blanc, foi um importante compositor da música popular brasileira, tendo João Bosco como principal parceiro ao longo da carreira. Foi uma das vítimas da pandemia de coronavírus no Brasil.
sobre a autora
Vovó Sonia é Sonia Marques, arquiteta, com mestrado e doutorado em sociologia. Dedicou-se ao ensino e à pesquisa em diversas universidades brasileiras (UFPE, UFBA, UFRN, UFPB). No exterior, foi professora e pesquisadora visitante na Universidade de Montreal, na Universidade François Rabelais (Tours) e na Universidade do Texas em Austin – UT. Dirigiu o Instituto de Arquitetos de Pernambuco – IAB/ PE (1979-80), a Associação dos Docentes da UFPE – ADUFEPE (1983-84) e a seção Brasileira do Docomomo. Tradutora pública e intérprete de língua francesa, poeta e escritora, ganhou o Prêmio Edmir Rodrigues da Associação Pernambucana de Letras (2015). Vive hoje entre a França e o Brasil.