Cerca de 70 fotografias captadas em 1862 testemunham casas, comércio e ruas de uma cidade com traços de seu período colonial. Empreendida por Militão Augusto de Azevedo (Rio de Janeiro, 1837 – São Paulo, 1905), a série inaugurou a fotografia urbana de São Paulo, e teve como seu complemento, depois de transcorridos 25 anos, o segundo grupo de imagens obtidas nos mesmos locais das primeiras — consagrando, como relatou Rubens Fernandes Júnior, a primazia do método comparativo na fotografia internacional (1).
Denotando uma proximidade temporal aos grandes centros, essa amostra paulista de edificações foi registrada apenas uma década depois do marco inicial dos projetos públicos de documentação fotográfica de arquitetura na Europa — em 1851, com a Missão Heliográfica, reunida a convite da Comissão dos Monumentos Históricos da França para compor o inventário fotográfico do patrimônio histórico nacional.
Entre ações promovidas pelo poder público e iniciativas independentes nos séculos 19 e 20, constitui-se uma significativa referência arquitetônica de São Paulo. Entre incontáveis participações, destacam-se nesse período as ações de investigação da cidade organizadas pelos fotógrafos do Foto Cine Clube Bandeirante. Embora relevante para a memória da cidade, esse repertório visual não representou um seguimento exclusivo na pauta da maioria dos fotógrafos, incidindo de forma aleatória em sua produção.
Esse cenário se transforma quando a arquitetura se desloca definitivamente para o sujeito da imagem, firmando-se como uma especialidade, por meio da atividade de Cristiano Mascaro (Catanduva SP, 1944). Seu vasto arquivo consolidou o elo entre fotografia e patrimônio edificado brasileiro, e foi embasado na observação da história da fotografia e na construção de conhecimento decorrente da observação de seus objetos retratados, e da própria linguagem arquitetônica — aprendizado este compartilhado com os alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, quando coordenou o Laboratório de Recursos Visuais.
Assim, o conceito “arquitetura-fotografia” se estabilizou com o auxílio da nova geração de profissionais que abraçaram a profissão. Entre os nomes que fortificaram o registro visual da cidade, Nelson Kon (São Paulo SP, 1961) se distinguiu com o olhar atento à arquitetura moderna e contemporânea. Mais recentemente, as megacidades atraíram o interesse de Tuca Vieira (São Paulo SP, 1974), com projetos que, diante da impossibilidade de registro de sua integralidade, atuam conceitualmente interpretando recortes que estimulem a percepção e a reflexão.
O arquiteto Leonardo Finotti (Uberlândia MG, 1977) integra esse time de autores que se envolveram com a especialidade. Estabelecido em São Paulo, desenvolve pesquisa visual de longa duração e estrutura aos poucos um inventário exaustivo sobre o acervo arquitetônico e urbanístico moderno latino-americano, contribuindo para a reflexão e seu reconhecimento pela sociedade. Ele se serve da fotografia não só como um meio para sua disseminação, mas também para a construção de sua imagem como patrimônio e memória coletiva.
Seu envolvimento com a fotografia alcançou outra dimensão a partir de 2003, quando iniciou estudos na Bauhaus Dessau Kolleg. O período em que residiu no exterior, até 2008, foi especialmente importante na aproximação com curadores e editores no âmbito internacional, o que resultou em exposições como Infinito Vão na Casa da Arquitectura em Portugal, em 2018, e Latin America in Construction, realizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA, em 2015, entre várias outras.
Nos últimos anos, o amadurecimento de sua parceria com Michelle Jean de Castro conduziu à criação do Lama-SP, estúdio onde trabalham e experimentam práticas artísticas e editoriais. Sotaques paulistanos da Bauhaus exemplifica a fina sintonia de pensamento e concepção de projetos, integrando a disposição das obras fotográficas na icônica casa da rua Santa Cruz, projetada por Gregori Warchavchik. Essa atuação simbiótica parece confirmar o que já se observava em propostas anteriores, apontando para o crescente interesse em questões situadas no ambiente da arte contemporânea.
notas
NE – texto de apresentação do catálogo da exposição Sotaques paulistanos da Bauhaus, com fotografias de Leonardo Finotti, ocorrida na Casa Modernista, de 17 de agosto de 2019 a 05 de abril de 2020.
1
FERNANDES JR, Rubens. Fotografia em revista. Catálogo de exposição. São Paulo, Abril, 2011.
sobre o autor
Henrique Siqueira é o curador de fotografia do Museu da Cidade de São Paulo.