Recentemente um endereço em específico na web vem aparecendo e reaparecendo nas redes sociais dado o espanto e curiosidade que ele automaticamente tende a suscitar: trata-se da página thispersondoesnotexist.com (1). Iniciativa de uma empresa que comercializa placas computacionais gráficas destinadas sobretudo ao mercado de entretenimento eletrônico, este sítio faz uso das assim chamadas “redes generativas competitivas” para criar imagens de rostos de pessoas humanas – a partir de exemplos e estímulos introduzidos pelos programadores – que simplesmente não existem. O resultado é de fato espantoso: as imagens, à primeira vista, são perfeitas e de forma alguma tais personagens fictícios parecem criações artificiais.
As redes neurais utilizadas para criar estas imagens aleatórias – conhecidas como “GAN”, da sigla em inglês para generative adversarial networks (2) – constituem uma tecnologia desenvolvida a partir de 2014 que se situam entre os degraus mais recentes nos estudos relacionados à inteligência artificial e ao aprendizado de máquina. Ao nos depararmos com experimentações como a do citado sítio eletrônico, perguntamo-nos se não seria possível também programar tais redes para imaginar situações arquitetônicas aleatórias, criando edifícios e espaços urbanos que não existem.
Com efeito, alguém não só já se fez esta pergunta como já realizou tais experimentações e já as organizou na forma de exposição. Ficou em cartaz no Pavilhão do Arsenal de Paris, de 27 de fevereiro de 2020 até seu fechamento (3) em decorrência das medidas de contenção da propagação do novo coronavírus, a exposição Intelligence Artificielle et Architecture (“Inteligência artificial e arquitetura”), com curadoria do arquiteto e pesquisador Stanillas Chaillou – ele próprio especialista na interseção entre os estudos arquitetônicos e os de inteligência artificial. Nesta mostra, além de se apresentar uma narrativa especificamente construída sobre a trajetória da relação da arquitetura com o mundo dos computadores, pretendeu-se destacar um conjunto de experimentos de software recentes que aplicaram a tecnologia das redes neurais do tipo GAN para a criação de imagens arquitetônicas divididas em quatro categorias: plantas, fachadas, estruturas e perspectivas.
O Pavilhão do Arsenal (Pavillon de l’Arsenal), cabe destacar, é uma instituição de divulgação e promoção da cultura arquitetônica e da vida urbana parisiense. Sua exposição de longa duração, localizada no pavimento térreo, apresenta uma longa – e um tanto quanto maçante – linha do tempo sobre a arquitetura e o urbanismo de Paris. São, contudo, suas exposições temporárias que materializam o seu potencial como centro cultural voltado à discussão de temas da arquitetura e da cidade, como fica evidente com a exposição que é objeto de nossa resenha, pela qual um tema emergente é apresentado ao grande público. A nobre intenção, contudo, esbarra nos problemas que encontramos na narrativa apresentada, de um modo geral ignorados ou menosprezados pelos seus autores.
Um manifesto pelo uso de inteligência artificial na arquitetura
Trata-se de uma exposição de concepção e execução precisas, sem grandes sofisticações, recorrendo a recursos expográficos simples e diretos (painéis textuais tradicionais complementados por uma boa seleção de iconografia e de registros audiovisuais). Está localizada no mezanino do Pavilhão, rodeando o vão livre que o comunica com o primeiro pavimento. Tematicamente ela se divide em dois grandes momentos: de um lado, apresenta-se uma narrativa sobre a história da presença de computadores na prática arquitetônica. De outro, são apresentados quatro experimentos com tecnologia GAN conduzidos por grupos de pesquisa de universidades e empresas estadunidenses.
Construída pela equipe de curadoria liderada por Chaillou, a referida linha do tempo apresenta deliberadamente caráter instrumental: Chaillou argumenta que o uso de recursos computacionais na arquitetura não constitui propriamente um conjunto pontual de revoluções “disruptivas” da profissão mas um percurso marcado por sucessivas transformações incrementais que, em seu conjunto e ao longo de meio século, contribuem para alterar decisivamente a disciplina.
Os marcos que escolhe, contudo, são cuidadosamente tratados para apontar a inteligência artificial como o ponto culminante do processo. Chaillou sugere que a busca por modularidade espacial e construtiva característica de parte da arquitetura moderna constituiria um marco fundador – de fato, quase um mito fundador – de um processo que passaria então pelo desenvolvimento das tecnologias CAD (desenho ou projeto auxiliado por computador), da incorporação de práticas e princípios de parametrização do projeto e, por fim, do uso de inteligência artificial. A esses quatro marcos se evocam algumas cenas e personagens – Walter Gropius, Buckminster Fuller, Moshe Safdie, Cedric Price, Nicholas Negroponte, o MIT Media Lab, Frank Gehry, a empresa Dassault Systèmes, entre outros – que colaboram na construção de um imaginário sobre essa trajetória que, em última instância, ressalta não só uma narrativa triunfalista centrada nos EUA como sugere aqui e acolá certo otimismo tecnodeterminista.
Longe, é claro, de qualquer forma de ludismo de nossa parte, bem como cientes das limitações de espaço e de escopo próprias de uma exposição de caráter de divulgação de novas tecnologias, cabe apontar que o recorte histórico proposto acaba por homogeneizar processos certamente repletos de conflitos, bem como por ignorar outros personagens ou por instrumentalizar determinados episódios.
Nesse sentido, o catálogo da exposição – uma brochura de 48 páginas que reúne todos os seus textos e imagens em uma narrativa bastante linear – (4) bem poderia ser lido como uma espécie de manifesto pela implementação da IA na arquitetura, mais do que como um registro do fenômeno. É evidente uma tomada de partido bastante assertiva sobre a necessidade de melhor adequação de arquitetos e urbanistas às mudanças trazidas pela inteligência artificial: o campo da arquitetura, aos olhos do curador, estaria ainda bastante atrasado em relação aos estudos sobre o tema. A abordagem é mais uma vez instrumental e operativa, ignorando ou desviando de eventuais esforços teóricos e críticos a apontar os eventuais limites da abordagem.
A exposição segue – na galeria oposta à dos quatro marcos cronológicos – apresentando os quatro experimentos com GAN. São todos ao mesmo tempo fascinantes e espantosos, considerando terem sido resultado de aprendizado de máquina. O primeiro (“Planta”), desenvolvido pelo próprio curador em Harvard, apresenta um software que produz inúmeras variações de leiaute de apartamentos apresentando-se ao computador um dado conjunto de parâmetros: o perímetro desejado, posição da porta de acesso e das janelas (5). Já “Estrutura”, de uma equipe do Laboratório de Estruturas Digitais do MIT, demonstra a aplicação das redes GAN no desenvolvimento de estruturas parametrizadas pelo uso mais eficiente do material disponível em uma determinada situação. O software resulta inúmeras soluções engenhosas e otimizadas, explorando plasticidades e expressões formais inusuais e até mesmo criativas.
Os resultados de ambas as pesquisas são eventualmente satisfatórios e, apesar do caráter experimental, especulativo e um tanto quanto lúdico dos programas, apontam para uma futura modificação no dia-a-dia profissional, que fatalmente incorporará ferramentas semelhantes no fluxo de trabalho. Ressalte-se, aliás, que se os resultados de “Planta” são objeto de um aprendizado de máquina que tende a reproduzir padrões projetuais comuns no mercado imobiliário – dado que o sistema foi alimentado provavelmente com milhares de soluções do mercado –, “Estrutura” apresenta inúmeras soluções únicas e pouco usuais. De certo modo, podemos afirmar que tanto a arquitetura “produzida em série” do mercado imobiliário quanto aquela excepcional e supostamente mais “autoral” pudessem ser algoritmizadas.
Os outros dois experimentos, (“Fachadas” e “Perspectivas”), aproximam-se de forma mais evidente do já citado sítio “thispersondoesnotexist.com”. A partir de alguns dados inseridos pelo usuário, os sistemas resultam tanto elevações quanto cenas urbanas em perspectiva, ambos com qualidade fotorrealística de situações arquitetônicas inexistentes — ainda que com algumas distorções ópticas, sobretudo no caso de “Perspectivas”, que se assemelham às imagens do Google Street View.
Estas imagens fatalmente nos fazem perguntar se elas não seriam a expressão máxima e mais bem acabada do que Vilém Flusser (6) chamava de “imagens técnicas”, já que são literalmente imagens produzidas a partir de linhas de código. Para Flusser, as imagens técnicas são aquelas produzidas por aparelhos que, ainda que programados por nós, também nos programam. Tais inteligências artificiais produtoras de imagens passarão a se comportar como mais um agente na teia complexa de produção de arquiteturas?
Inteligência artificial entre o desenho e o canteiro
Num outro sentido, vale também questionar as implicações no mundo da produção da arquitetura. O recorte histórico adotado e os experimentos apresentados nos levam a pensar – ainda que o foco da exposição seja outro – quais serão efetivamente as mudanças no dia-a-dia profissional do arquiteto com a incorporação da inteligência artificial na prática da arquitetura. Sugere-se um potencial de transformação, por meio dos quatro experimentos, que aponta objetivamente para as atividades de projetação, mas omite ou ignora as prováveis consequências que a adoção da IA impõe para as relações sociais e de trabalho. Talvez, a linha do tempo apresentada pela exposição possa nos dar pistas de quais serão essas consequências.
Se a modularidade, primeiro período na linha do tempo, corresponde a uma tentativa de massificação do acesso à habitação pela industrialização e racionalização dos processos construtivos, também corresponde a um aprofundamento do apagamento do traço da presença dos trabalhadores da construção civil no processo de produção da arquitetura, conforme a famosa formulação de Sergio Ferro (7), pela qual o profissional arquiteto – em cujo desenho racional e moderno se materializaria a ordem de serviço responsável pela exploração do trabalhador – recuperaria posição central no jogo de poder ao mesmo tempo em que minaria a organização autônoma dos trabalhadores no canteiro. Um primeiro movimento, portanto, de proletarização.
O CAD, segundo período na linha do tempo, ao mesmo tempo em que contribuíra para maior complexidade formal dos projetos e em que promovera a otimização de seus tempos, também colaborou para um acúmulo de funções (desenhista, copista etc.) num mesmo profissional no interior do escritório – um segundo momento de proletarização.
O building information modeling (BIM), segundo o curador a mais surpreendente expressão do parametrismo, terceiro período na linha do tempo, permite um maior controle da obra e gerenciamento do ciclo de vida da edificação mas também possibilita que a profissão do arquiteto se caracterize, grosseiramente falando, como a de um gestor de processos de tecnologia digital e de softwares inserindo objetos padronizados, preenchendo campos pré-determinados, gerenciando bancos de dados e extraindo tabelas de quantidades do edifício em construção. Longe de qualquer romantização da profissão, não se trata aqui de evocar a imagem perdida do arquiteto demiúrgico, mas de ressaltar a forma como o trabalhador-arquiteto viu seu trabalho ganhar uma dimensão de gestão e de administração cada vez mais abstrata. Trata-se, afinal, da velha tendência descrita por Karl Marx de aproximação do trabalho concreto em trabalho abstrato (8). Mais um momento, portanto, de proletarização.
O que nos leva finalmente a Inteligência Artificial, o último período da linha do tempo apresentada nesta exposição. À primeira vista parece que a IA indica a necessidade de cada vez menos profissionais. Mas vejamos: o processo de machine learning depende de que programadores introduzam estímulos e referências e corrijam a máquina depois que esta interpreta e cria novos modelos baseada nas referências apresentadas. Se tomarmos a característica complexidade de manufatura de uma edificação, então a necessidade de operários graduados que deverão programar e corrigir a IA no processo de machine learning será intensa. A inteligência artificial, portanto, tem não só potencial de superar o parametrismo – conforme o curador, um processo de tomada de decisão com base em regras – por meio da modelagem estatística, mas de incorporar cada vez mais arquitetos que, agora precarizados, serão os operadores do jogo programado por ela. Se durante a segunda metade do século XX era a máquina a auxiliar os arquitetos no processo de projeto, agora no século 21 é o arquiteto que ocupará a função de auxiliar da máquina nas linhas de montagem dos edifícios, em mais um e derradeiro momento de proletarização. Um curioso, repentino e improvável encontro entre Flusser e Marx.
Interessa-nos, no entanto, imaginar a irônica perspectiva da mulher comum, do homem comum, utilizar uma inteligência artificial experiente — em que a tecnologia GAN aplicada já tivesse aprendido, interpretado e proposto um novo e vasto repertório de situações arquitetônicas e estruturais validados por experientes profissionais da AEC, ou um eventual "thisbuildingdoesnotexist.com" a exemplo do experimento "thispersondoesnotexist.com" — para construir sua própria casa. Seria a inteligência artificial a melhor amiga da autoconstrução em países periféricos nos quais, segundo o famoso comentário de Chico de Oliveira (9), salários são reduzidos em função do sobretrabalho da classe trabalhadora na constituição de seus próprios meios de reprodução?
Conclusão
Mais uma vez, longe de qualquer espírito ludista, há que se reconhecer o quão fascinantes e inspiradores são os experimentos apresentados nesta exposição: num cenário de superação desse nosso regime marcado pela intensa troca de mercadorias e exploração da força de trabalho, eles apontam para um futuro de libertação das atividades repetitivas do trabalho e da potencialização de atividades de criação. Ao mesmo tempo, por outro lado, há que se destacar a possível e até mesmo inevitável contribuição da aplicação da inteligência artificial no processo de proletarização das forças produtivas em suas diferentes instâncias, aspecto ignorado em todo o discurso expositivo.
Enfim, para concluir, mais uma nota sobre a expografia e a identidade visual da exposição: apesar do desenho competente, simples, conciso, adequado ao local e sem maiores pirotecnias cenográficas, não deixa de ser notável o recurso ao alto contraste na exibição das imagens, desenhos e fotografias, bem como da adoção de tipos monoespaçados (10) na composição dos textos. O resultado é certamente agradável, mas parece deliberadamente fazer referência seja a uma cultura visual de materiais impressos de décadas atrás, seja aos velhos monitores monocromáticos de trinta anos atrás e suas interfaces exclusivamente em modo texto – assim como às telas de código de software, já que programadores tradicionalmente preferem utilizar tipos monoespaçados para melhor controlar suas criações. Constitui-se, desta forma, tanto uma referência visual à cultura gráfica dos anos 1960 e 1970, período de gênese de muitas das ideias e conceitos apresentados ao longo da exposição, como à própria cultural visual do mundo da programação e das linhas de código de software. Nesse sentido, a expografia talvez apenas reforce os mitos fundadores e a narrativa um tanto quanto triunfalista expostos ao longo dessa mostra, recorrendo, ironicamente, a uma cultura visual deliberadamente datada e caricata.
Destaque-se, finalmente, que esta resenha fora escrita e concluída justamente num momento de fechamento forçado da exposição em função da interferência do novo coronavírus. Enfrentamos um momento em que já não temos qualquer certeza sobre um futuro para o qual planejar ou desenhar. A inteligência artificial apresentada nesta exposição, também talvez ironicamente, funciona a partir da alimentação de redes neurais com estímulos e referências de nossa realidade tangível cotidiana, para a qual ela cria situações novas fictícias e bastante verossímeis. Ela demanda, portanto, estabilidade e perenidade de condições com as quais aprender. Dúvidas sobre o futuro romperam com tal estabilidade, fazendo-nos questionar se aqueles estímulos e referências continuam válidas. A inteligência artificial certamente poderá nos ajudar, mas, definitivamente, as imagens que ela criara até o momento, exibidas nesta exposição, talvez já não nos sirvam se não como lembrança de um estado de normalidade com o qual já não lidamos e talvez nunca voltemos a lidar.
notas
1
Ou “esta pessoa não existe”. O sítio é mantido pela empresa Nvidia e é resultado do trabalho coordenado pelo cientista da computação Tero Karras.
2
Redes generativas competitivas.
3
Originalmente previa-se um período de abertura da exposição entre 27 de fevereiro e 5 de maio de 2020. Uma visita virtual está disponível na internet, caracterizada pela simulação de uma caminhada pelo modelo tridimensional da exposição e do edifício <https://bit.ly/3kTxBtq>.
4
CHAILLOU, Stanilas (curador). Intelligence Artificielle et Architecture. Catálogo de exposição. Paris, Pavillon de l’Arsenal, 2020.
5
Para mais informações, consultar CHAILLOU, Stanilas. ArchiGAN: a Generative Stack for Apartment Building Design. Nvidia Developer Blog, 17 de julho de 2019 <https://bit.ly/344IEcd>.
6
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo, Annablume, 2011.
7
FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. In: Arquitetura e trabalho livre. São Paulo, Cosac Naify, 2006.
8
Comentada logo no início do primeiro volume d’O capital: MARX, Karl. O capital. Livro I. O processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo, 2013.
9
OLIVEIRA, Francisco de. O vício da virtude Autoconstrução e acumulação capitalista no Brasil. Novos Estudos Cebrap, n. 74, São Paulo, mar. 2006 <https://bit.ly/3i8HpxQ>.
10
Tipos monoespaçados (como os da tipografia Courier, por exemplo) não promovem ajustes de espaçamento entre as letras individualmente. Desta forma, o texto assume um caráter blocado e mecânico, reminiscente tanto de máquinas de escrever como dos primeiros monitores de computador.
sobre os autores
Gabriel de Andrade Fernandes é mestre em arquitetura e urbanismo pela FAU USP. Atua desde 2012 como especialista no Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo (CPC USP), onde desenvolve atividades de cultura e extensão universitária relacionadas ao campo do patrimônio cultural.
Natália Maria Gaspar é mestre em arquitetura e urbanismo pela FAU USP. Atua como arquiteta urbanista desde 2009.