Este é um guia atípico. Não foi feito pensando em turistas que desejam curtir um lugar em seu período de férias ou viajantes que pretendam aumentar seu nível cultural colecionando conhecimento de obras e monumentos já de reconhecido valor histórico ou artístico (que receberam o selo do tombamento patrimonial, por exemplo). É claro que tais turistas e viajantes com interesses culturais poderão aprender muito com o “rolê pela CEI”. Mas, propõe-se aqui algo distinto: revelar tanto um lugar usualmente não contemplado por guias como também vivências e percepções pouco conhecidas, provenientes de alunos e professores da Ceilândia.
Um amplo trabalho colaborativo se materializa neste guia pela escrita afetuosa de Elane Ribeiro Peixoto e pela sensível acuidade estética de Julia Mazzutti Bastian Solé. Os textos e imagens que compõem este guia foram produzidos a partir de três anos de trabalho de pesquisa que nasceu da interlocução de arquitetas e antropólogas da Universidade de Brasília para pensar as dinâmicas metropolitanas na capital do Brasil. De um primeiro encontro para refletir sobre cidades capitais, nasceu um projeto de pesquisa voltado para os problemas, bastante debatidos em tempos recentes, da Área Metropolitana de Brasília. Mas, a metrópole Brasília não foi entendida como circunscrição político-administrativa ou recorte teórico fixo, e sim como território dinâmico onde se dão múltiplas vivências e deslocamentos cotidianos. Tomamos como ponto de partida as escolas públicas da capital, pois, embora já estudadas sob muitos aspectos, seu papel como foco de convivência e mobilidade na cidade constitui uma dimensão da vida urbana ainda muito pouco explorada tanto no campo da antropologia urbana quanto da arquitetura e urbanismo. Daí surgiu o desafio de pensar Brasília em escala metropolitana, não apenas da perspectiva restrita do ambiente acadêmico, mas com base em trabalhos colaborativos com membros de duas comunidades escolares, uma situada em Ceilândia e outra na primeira unidade de vizinhança do Plano Piloto.
O projeto de pesquisa “Cotidianos escolares e dinâmicas metropolitanas na capital do Brasil” já contribuiu para a formação de estudantes de graduação e pós-graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e no Departamento de Antropologia da UnB, bem como envolveu diálogos e colaborações com pesquisadores em diferentes países da América Latina, Estados Unidos e África do Sul (1). Ao lado deste guia, reflexões elaboradas ao longo da pesquisa encontram-se também em livro em vias de ser publicado pela Editora da Universidade de Brasília, intitulado Cotidianos, escolas e patrimônio, percepções antropo-urbanísticas da capital do Brasil.
Este Rolê pela Cei é parte daquele projeto mais amplo, mas é, principalmente, fruto da convivência de mais de dois anos entre as autoras, profissionais do CEF 19 e os meninos e meninas que caminharam, escreveram, desenharam e conversaram sobre suas trajetórias cotidianas. Ao longo dessa instigante experiência compartilhada, foram registradas percepções acerca de espaços consagrados tanto da Ceilândia como de Brasília, em caminhadas e passeios que envolveram também – para alguns deles pela primeira vez – os espaços monumentais da capital. O guia fala de diferentes experiências geracionais de moradoras e moradores da CEI, a começar pela narração na primeira pessoa de uma adolescente que conta suas conversas com a avó. Essa personagem fictícia é um amálgama de impressões e relatos expressos por diferentes jovens reais com os quais as autoras conversaram ao longo dos anos. Desse modo peculiar, o guia leva a conhecer lugares, cores, cheiros, sons, afetos e sensações, que são fruto da vivência de uma geração que cresceu em diálogo com ao menos duas gerações anteriores de viventes de Ceilândia, região administrativa – ou “cidade” como é comumente chamada por seus moradores – consolidada como um dos principais polos urbanos da Área Metropolitana de Brasília.
Este guia é destinado, enfim, aos interessados em conhecer experiências urbanas e a dialogar com elas, sem esperar, com isso, um conhecimento acabado dos espaços visitados, mas tendo em mente que tanto as perspectivas de quem produziu o guia, como daqueles que se dispõem a segui-lo, são mesmo fragmentadas e subjetivas - mas nem por isso de menor valor! Pelo contrário, entendemos que a experiência do viver em metrópole não seria nunca abarcada por um roteiro fixo para visitar alguns lugares significativos, mas se dá na contínua relação com espaços em constante mudança, tanto em sua materialidade como nos significados que podemos lhes atribuir.
O guia espera estimular um público amplo e variado a percorrer a Ceilândia, mas também dá particular importância ao intuito de manter acesas as possibilidades de contribuição de estudantes do CEF 19 e de outras escolas. Eles podem dialogar e colaborar com o enriquecimento do guia incluindo suas próprias experiências de moradia, vida escolar e “rolês" nas páginas em branco destinadas ao preenchimento criativo. A intenção é continuar colaborando, refletindo e comunicando, para dar continuidade à vida da cidade, que se configura no entrelaçamento de tantas trajetórias pessoais, movimentos e gerações. Por isso, essa apresentação encerra-se de modo breve: mais do que criar aqui uma determinada predisposição no leitor ou justificar extensamente o trabalho que se segue, julgamos oportuno fazer logo o convite: vamos dar um rolê pela CEI?
notas
NE – Essa resenha é um dos textos de apresentação do guia comentado. Ver também a outra apresentação do livro: PEIXOTO, Elane Ribeiro; SOLÉ, Julia Mazzutti Bastian. Construindo o Guia de Ceilândia. Arquiteturismo, São Paulo, ano 14, n. 162.02, Vitruvius, set. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/14.162/7897>.
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O projeto também contou com apoio da Capes por meio do programa Capes Print da UnB e da Capes e CNPq por meio de bolsas de mestrado e doutorado, além das bolsas de Iniciação científica e de apoio técnico financiadas pelo edital da FAP-DF.
sobre as autoras
Cristina Patriota de Moura é antropóloga (UnB, 1997), mestre e doutora em antropologia (MN/UFRJ, 1999 e 2003), com pós-doutorado – Estágio Sênior Capes – na Universidade da California, Davis. É professora associada 2 do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, onde coordena o grupo de pesquisa Dimensões da Vida urbana (CNPq) e participa do Laboratório de Vivências e Reflexões Antropológicas (Laviver) e do Observatório da Vida Estudantil.
Maria Fernanda Derntl é arquiteta, mestre e doutora (FAU USP, 1995, 2004 e 2010), com pós-doutorado em Delft, Holanda (2018). Professora e pesquisadora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília desde 2010, é autora do livro Método e Arte: urbanização e formação territorial na capitania de São Paulo, 1765-1811 (ed. Alameda/Fapesp, 2013, menção honrosa Anpur 2015).