Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

reviews online ISSN 2175-6694

abstracts

português
No centenário da artista, Rodrigo Queiroz comenta o significado da série “Planos em superfícies moduladas” dentro da obra de Lygia Clark e do cenário artístico brasileiro.

how to quote

QUEIROZ, Rodrigo. Lygia Clark 100 anos (1920-2020). Da representação à construção, da superfície ao espaço, da fresta ao vinco, da visão ao tato. Resenhas Online, São Paulo, ano 19, n. 226.02, Vitruvius, out. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/19.226/7916>.


Lygia Clark, Planos em Superfícies Moduladas n. 2, 1957
Foto Rodrigo Queiroz [Acervo MAC USP]

Hoje, 23 de outubro de 2020, comemora-se o centenário da principal artista construtiva e responsável pela passagem do moderno ao contemporâneo na arte brasileira: Lygia Clark (1920-1988).

Um dos procedimentos que identificam e melhor explicam a arte construtiva é, como o próprio nome já diz, a construção. E em que consiste essa construção? Nas experiências bidimensional ou tridimensional, para a vertente construtiva da arte moderna, o fazer artístico deve superar a égide da representação, ou seja, o compromisso com a narrativa e com a imitação da realidade. A imagem e a forma devem caracterizar-se pela evidência da construção, ato operacionalmente oposto à prática da representação.

As faturas artesanais da pintura, do desenho, da modelagem e do desbaste da matéria devem dar lugar à uma nova operação, construtiva, caracterizada pelo arranjo, ou “construção” de elementos ou partes previamente produzidos a partir de um processo que, idealmente, deve apagar os vestígios da mão, a sprezzatura do gesto, entrevisto, por exemplo, na linha e na pincelada. Nesse instante, a arte deixa de ser uma representação do mundo no mundo e passa a ser uma construção no mundo, ou seja, passa a ser parte das coisas do mundo real. Nesses termos, a arte passa a ser o próprio mundo.

A tentativa da construção do plano como experiência pictórica e espacial consiste em uma das principais estratégias da vertente construtiva do projeto moderno. A desmontagem e o estilhaçamento dos planos convergentes da perspectiva linear por parte do cubismo e o achatamento absoluto da profundidade com o uso de planos paralelos ao plano da tela como procedimento onipresente entre neoplasticistas e suprematistas são dispositivos que intentaram unificar os planos da arte e da vida em um plano comum, o da arquitetura, ainda mero recorte doméstico de um ambicionado “espaço total”. Entretanto a construção do plano, para Mondrian e Malevich, preserva um expediente pictórico tradicional. Para esses artistas, o plano, apesar de moderno, ainda decorre de um ato pré-moderno: pintar uma informação, seja linha ou superfície, sobre a tela com o uso de um instrumento que carrega consigo a própria história da pintura: o pincel.

Se a disposição construtiva ambiciona o espaço, soa quase como contraditório ou mesmo paradoxal pensarmos em uma “pintura construtiva”, como se o fato de ainda ser “pintura” relegasse a obra a uma incômoda condição pré-construtiva (1). Daí os desdobramentos mais eloquentes da arte construtiva brasileira serem representados pelas obras tridimensionais de artistas como Franz Weissmann e Amilcar de Castro.

Ao abrir mão da representação do mundo, o ato construtivo se vê também na obrigação de eliminar a ativação da memória do sujeito que se relaciona com a obra, subtraindo toda e qualquer menção à figuração. Referimo-nos, nesse caso específico, à abstração construtiva, também conhecida como abstracionismo geométrico e que, no ambiente brasileiro, consolidou um movimento chamado Concretismo e que foi objeto de aperfeiçoamento e problematização por parte do Neoconcretismo (2).

Por mais que a trajetória da artista Lygia Clark seja identificada por períodos representados por obras tão características como a série “Planos em superfícies moduladas” (1956/1958), os conhecidos e celebrados “Bichos” (1960/1964) e os “Trepantes” (1964/1965), em todas essas fases e trabalhos percebe-se o gradual uso de dispositivos que rompem com a histórica relação estática e hierarquizada entre sujeito e obra.

Mesmo nas pinturas realizadas em sua fase inicial, nos primeiros anos da década de 1950, percebe-se a clara intenção de se inverter a lógica tradicional entre o conteúdo pintado e seu suporte, entre o que está contido e aquele que o contém. Ao planificar aquilo que contém (a moldura) e nivelá-lo com o plano contido em seu interior (a tela), Lygia Clark revela a existência de uma linha, uma fresta entre essa nova categoria de moldura e de tela. Nesse instante, a artista já compreende a pintura como uma construção, mesmo mantendo sua fatura tradicional.

Não se trata de uma linha riscada ou pintada. Agora, a linha resulta da aproximação de dois planos rentes entre si e que não se fundem ou sequer efetivamente se tocam. Eis aí a passagem fundamental da representação à construção na obra de Lygia Clark. As obras que sucedem essa construção, pelo menos até os “Bichos”, expressam o contínuo processo de autonomia dos planos que a integram, configurando partes ou elementos definidos como planos que organizam modularmente uma superfície, daí o nome da série “Planos em Superfícies Moduladas”.

Tomemos como exemplo a obra “Planos em superfícies moduladas n. 2”, de 1956, que integra o acervo do MAC USP e que pertence a um conjunto de trabalhos de Lygia Clark identificados pela construção de um plano vertical resultante do encaixe de finas placas poligonais.

A escolha precisa das palavras que formam o título da obra expõe a conduta da artista frente à codificação tradicional da pintura. Nesses trabalhos de Lygia Clark, inexiste o plano como suporte que antecede o ato pictórico, superfície que recebe o registro do gesto. Ao contrário, a obra é a produção do próprio plano, é a imagem final de sua construção.

A superfície geométrica e uniforme dos Planos de Lygia Clark resulta de uma sequência de operações que pertencem mais ao universo da indústria, da máquina, do que da artesania inerente ao trabalho manual. O chassi de madeira e a tela de linho dão lugar às placas de Eucatex; a tinta de bisnaga e o pincel são substituídos pela tinta industrial e a pistola de ar comprimido. O uso desses materiais, assim como a própria natureza material do Eucatex nos leva a crer que os precisos recortes dos planos tenham sido realizados por algum tipo de serra circular de bancada.

Os instrumentos e os meios utilizados por Lygia Clark pertencem à oficina e não mais ao ateliê, pelo menos naquela sua concepção mais romantizada. A obra não é mais ingenuamente “concebida”, mas convoca o funcionamento das máquinas e o ofício racional de operá-las. Tais procedimentos evidenciam uma nítida aspiração coletiva, que aproxima a obra e sua produção à determinada prática do desenho industrial e, consequentemente, da própria arquitetura moderna: a forma é a imagem de sua própria montagem, do seu processo construtivo, pois preserva intacta a legibilidade dos componentes que a integram.

Os componentes do plano da arte – as tais superfícies moduladas – são produzidos por um mecanismo industrial, o que não significa que pertençam a um universo industrial. Apesar do uso de materiais industrializados e de precisas máquinas de pintura e corte, a escala de produção é artesanal. São protótipos que apresentam, a partir da construção de uma única unidade, a possibilidade de aproximação entre arte e indústria, que, exceto no caso do desenho industrial, acabou mesmo limitando-se, majoritariamente, ao ensaio. Lembremo-nos das experiências da arquitetura moderna, paradoxais “modelos únicos”, ou seja, monumentos de uma modernidade reduzida, em muitos casos, à demonstração.

Ao nomear como moduladas, as superfícies que integram os planos, Lygia Clark reforça a perspectiva serial e repetitiva desse componente. O elemento individual contido no plano só assume a condição de módulo se cumprir o papel de se multiplicar em grupos de formas padronizadas e encaixadas entre si a partir de um nítido senso de ordenação. São peças definidas por um conjunto fechado de figuras geométricas que se repetem, por isso moduladas. A parte de um todo só pode ser chamada de módulo se o todo for resultado da variação ou da repetição dessa mesma parte ou unidade.

Nas Superfícies moduladas, a linha que resulta do encontro desses módulos poligonais de madeira configura uma fresta. Sua constituição não resulta mais da marca do movimento sobreposto à tela, que identifica a linha na pintura e do desenho, mas, ao contrário consiste em uma delgada penumbra entre as peças. A fresta entre os planos é chamada pela artista de “linha orgânica” (3) pois justamente não se faz sobre o plano – é um vazio, um hiato que não está ilhado no plano – mas se prolonga angularmente, até as bordas da superfície montada, como um canal cuja extensão sangra o limite entre a obra e o espaço.

Do mesmo modo que os planos recortados são separados pela linha orgânica, a superfície da obra também se mantém em suspensão, solta em relação ao plano da parede. A linha orgânica contorna a espessura da obra e se funde a uma penumbra mais espessa transformando-se novamente em fresta, agora entre a obra e o plano vertical da arquitetura.

Na série “Planos em Superfícies Moduladas” uso das “linhas orgânicas” em posição diagonal ou inclinada inevitavelmente e propositalmente alude à ilusão de profundidade no plano. No caso dos “Planos em Superfícies Moduladas n. 2”, as seis figuras brancas com extremidades inclinadas nos estimulam a percebê-las em profundidade, em perspectiva “cavaleira” (modalidade de representação na qual apenas um par de arestas do plano horizontal, seja ele quadrado ou retangular, possui inclinação): as quatro figuras menores e iguais como planos verticais e as duas figuras maiores e também iguais como planos horizontais, todos eles perpendiculares ao plano da obra.

Apesar da irreversível tendência da abstração geométrica em romper com a sensação de profundidade em nome da “construção”, seja pela resistência em sucumbir a uma quase inevitável relação figura-fundo, seja pela negativa em lançar mão da diagonal, que faz com que nossa percepção assimile de imediato a figura como um plano obliquo, a série “Planos em Superfícies Moduladas” caracteriza-se justamente pela inequívoca e intrigante sensação de profundidade. Aqueles trabalhos com o subtítulo “Versão Única”, caracterizados pelo encontro de losangos modulares, formalizam a imagem de cubos justapostos e nos remetem muitas vezes aos pisos de madeira com tacos losangulares em tonalidades diferentes, onipresentes nos interiores de muitos exemplares da arquitetura moderna do período.

Os vincos dos “Planos em Superfícies Moduladas n. 5”, certamente a obra mais conhecida da série, parecem querer saltar para fora ou nos levar para dentro da “tela”, como em uma dobradura e ziguezague, em um jogo pontiagudo que alterna espaços positivos e negativos, forma e vazio. E, desse modo, não seriam os “Bichos” (1962), realizados em seguida, a passagem para o espaço real desses planos dobrados para “dentro” e para “fora” nas tais “Superfícies Moduladas”? Os “Bichos” não apenas representam o deslocamento desses planos dobrados do ambiente da representação para o espaço real, como também modificam a condição do sujeito, antes observador, agora usuário, agente transformador da obra. O estado espacial e formal da obra não resulta apenas da inteligência da artista, mas agora, também ou principalmente do modo como o usuário manipula a obra. Ou seja, a artista não faz uma obra, mas uma espécie de matriz a partir da qual a obra é feita efetivamente e momentaneamente por quem a transforma.

Nos Bichos, a instalação de articulações lineares ou dobradiças em mais de uma aresta dos planos que o integram faz com que o usuário, ao manipulá-lo, não o modifique apenas pela movimentação radial de um plano, como quando abrimos uma porta ou folheamos um livro, mas altere a conformação espacial da peça, como se invertêssemos vários vincos de uma mesma dobradura em um único movimento.

Na série “Trepantes” (termo que faz lembrar uma condição inerente aos “bichos”, aliás), as formas facetadas e vincadas, representadas nos “Planos em Superfícies Moduladas” e realizadas espacialmente nos “Bichos”, desaparecem e dão lugar a uma superfície metálica contínua e sinuosa que se emaranha ou “trepa” em pedaços de galhos ou de troncos naturais. O vinco e o corte geométrico frio dão lugar ao seu oposto: uma continuidade corpórea envolvente.

Se o expediente experiencial dos “Bichos” é a sua manipulação por parte do agora “usuário”, o mesmo não ocorre com os “Trepantes”. Contudo, podemos compreender a ação ou performance intitulada “Caminhando” (1964) como uma espécie de versão laboral dos “Trepantes”. Tal ação exprime a confecção e o recorte linear de uma “fita de Moebius”: junção com cola das extremidades de uma longa tira de papel, sendo uma extremidade rotacionada a 180º sobre seu próprio eixo. A então tira transforma-se em um aro flexível, como um colar. Ao girar uma das extremidades da tira, o aro perde a condição física e espacial de possuir um lado de dentro e outro e fora. A torção no eixo longitudinal da tira de papel coloca aquilo que estava “dentro” para “fora” e aquilo que estava “fora” para “dentro”. Se cortarmos com uma tesoura o aro pela metade no sentido do seu comprimento, quando o recorte der uma volta completa no aro, estaremos diante de um aro com o dobro do comprimento e a metade da espessura. Agora, se antes de concluirmos o recorte, dando a volta completa em si mesmo, desviarmos do seu ponto de início e continuarmos recortando a fita no sentido do seu comprimento, teremos um aro cada vez maior e cada vez mais fino, até o ponto onde não é possível mais fatiá-lo.

De certa forma, é quase inevitável não compreendermos a experiência “Trepantes – Caminhando” como um desdobramento planar e performático da “Unidade Tripartida” (1949) de Max Bill (também integrante do acervo do MAC USP), que revela, só que em uma obra mais espessa, essa mesma continuidade “dentro-fora” verificada nos “Trepantes” e confeccionada no “Caminhando”.

O processo de ampliação da experiência sensorial e da participação do usuário é crescente e irreversível na trajetória de Lygia Clark a partir das obras “Bichos” e “Caminhante”. Deste momento em diante, o corpo, já não mais solitário, não apenas intervém como materializa e dá vida à própria obra, como no caso de “O Eu e o Tu” (1967), definido por pares de macacões repletos de zíperes e com capuzes que cobrem o rosto, conectados entre si por uma espécie de cordão umbilical de borracha. Vestidos nesses macacões e às cegas, os participantes devem acarinhar as vestes opostas até encontrar os zíperes e a partir daí descobrir o corpo efetivo do outro, pouco a pouco.

Esse processo de troca mutua ganha escala e entranhamento no trabalho “Baba Antropofágica” (4), de 1973, onde cada participante do grupo abriga dentro da boca um carretel de linha e desenrolam simultaneamente os fios, agora embebidos em saliva, formando uma densa e viscosa teia de tessitura orgânica. Em trabalhos-rituais como “O Eu e o Tu” e “Baba Antropofágica”, Lygia Clark assume uma função que mistura os papeis de diretora de cena e de xamã, uma espécie de sacerdotisa que leva ao limite os procedimentos dos seus próprios tratamentos. Talvez, qualquer semelhança com a obra da estelar artista sérvia Marina Abramovic não seja necessariamente uma mera coincidência.

Por mais que estejamos diante de uma obra que se inicia no final da década de 1940, a leitura cronológica da obra de Lygia Clark nos permite compreender com nitidez as graduais transformações pelas quais passou a produção formalista (5) das artes visuais no transcorrer de todo o século 20: da representação à construção, da superfície ao espaço, da fresta ao vinco, da visão ao tato.

notas

1
Cf. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo, Cosac Naify, 2001.

2
Cf. AMARAL, Aracy (org.). Arte construtiva no Brasil – Coleção Adolpho Leirner. São Paulo, DBA, 1998.

3
Cf. GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta. Rio de Janeiro, Revan, 1998, p. 269-282.

4
Cf. FABBRINI, Ricardo. Estética e política em Lygia Clark. A Terra é Redonda, 27 ago. 2020 <https://aterraeredonda.com.br/estetica-e-politica-em-lygia-clark>.

5
Entende-se aqui como formalista toda produção das artes visuais no século 20 alternativa à vertente conceitualista e ao Dadá. Ou seja, é formalista todo aquele produz a forma do zero e, desse modo, não incorpora à obra elementos produzidos originalmente para outro uso, como podemos observar na arte conceitual. Tomemos como exemplo os “ready-made” de Marcel Duchamp.

sobre o autor

Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECA USP, 2003), doutor (FAU USP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true” (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MAC USP, 2007/2008).

comments

226.02 homenagem
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

226

226.01 acervo

Paulo Mendes da Rocha, os arquivos e as feridas coloniais do Brasil

Giacomo Pirazzoli

226.03 exposição

Gandhi em Veneza

Pavilhão da Índia na Bienal de Veneza de 2019

Mariana W. von Hartenthal

226.04 livro

Guerra de narrativas

Edinardo Rodrigues Lucas

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided