Há livros que chamam a atenção em uma primeira vista. Em 2016, quando ganhei o livro Guerra dos lugares – colonização da terra e da moradia na era das finanças, escrito por Raquel Rolnik e lançado em dezembro de 2015 pela editora Boitempo, me interessei logo por sua capa. A capa vermelha com uma foto do projeto “Mulheres são heroínas” – ação na favela do morro da Providência, Rio de Janeiro – já prenunciava um fato: a guerra dos lugares também é uma disputa de narrativas sobre as cidades, as políticas públicas territoriais e os rumos possíveis para a democratização do espaço urbano (1).
Sinal óbvio dessa disputa está logo na apresentação do livro, quando a autora narra uma das visitas oficiais que fez como relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas – ONU ao Reino Unido. A vista aconteceu em um momento de questionamento de políticas de austeridade fiscal e da reforma do sistema de bem-estar social do país. A visita de Raquel Rolnik representando a ONU, que tinha como foco análises de condições de moradia e direitos humanos, era vista como um apoio à campanha anti-bedroom tax, ação do governo que tirava subsídios e excluía indivíduos ativos que moravam em apartamento com quartos “sobrando”. Segundo a relatora quem sofria com isso eram “os mais pobres, doentes mentais, loucos, pessoas com deficiência física” (p. 10), que perderiam a estabilidade e segurança garantidos pela política de bem-estar social.
A estratégia dos partidos conservadores do Reino Unido, apoiadores das políticas de austeridade, foi desqualificar a relatora, contestando sua autoridade e competência. Uma “mulher brasileira” de um país “subdesenvolvido”, com sérios problemas de moradia, não teria condições de opinar sobre as políticas de moradia do desenvolvido Reino Unido. Mas o interesse maior da relatora em sua visita ao Reino Unido não era apoiar a campanha anti-bedroom tax, pois tinha um objetivo ainda maior. A motivação era uma hipótese de pesquisa que se “constituiu em uma base para a construção de uma narrativa de larga escala sobre os processos de transformação das direções e sentidos das políticas habitacionais em curso no mundo” (p.12). E é essa tese que acompanhamos no livro.
Antes de destrinchar o conteúdo é necessário ressaltar que tal obra só poderia ser produzida por uma profissional com experiência em pesquisa e vivência prática e isso Rolnik tem de sobra. A experiência em pesquisa vem desde a época de estudante (2) e passa pela dedicação à docência universitária iniciada logo após o término da graduação ainda no fim da década de 1970 quando também iniciou a pesquisa de mestrado (3). Se até então a formação acadêmica estava concentrada na FAU USP, a pesquisa de doutorado se internacionaliza e é desenvolvida na New York University, NYU, Estados Unidos com o título The City and The Law: Legislation, Urban Policy and Territories in the City of São Paulo, orientada por Warren Dean (4) e defendida em 1995 (5).
Raquel Rolnik é professora titular da FAU USP desde 201,7 tendo em sua trajetória diversas pesquisas e orientações voltadas ao tema da urbanização e financeirização. É autora dos livros A cidade e a lei, O que é cidade, e Folha Explica: São Paulo. Sobre a vivência prática foram várias atividades profissionais relacionadas à política urbana e habitacional das quais se destacam: diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989-1992), coordenadora de Urbanismo do Instituto Polis (1997-2002) e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007).
Todas essas experiências em pesquisa e vivências profissionais já credenciam a autora a aprofundar nos temas colonização da terra e da moradia e financeirização, mas a experiência que deu mais possibilidades de entender aspectos foi a relatoria especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, por dois mandatos (2008-2011, 2011-2014). Rolnik teve a possibilidade de receber diretamente denúncias do mundo inteiro sobre o desrespeito ao direito da moradia. E é essa a dimensão essencial do livro. Além disso o aparato e apoio da FAU USP foram essenciais para que a pesquisadora pudesse se dedicar à formatação e análise das informações. A publicação é fruto de seu trabalho de livre docência.
Além da apresentação do livro, já comentada anteriormente, o livro se divide em três grandes capítulos. Os dois primeiros dedicados à escala global – “Financeirização global da moradia”; “Os sem-lugar ou a crise global de insegurança da posse” –, enquanto o terceiro capítulo colabora com a reflexão da política de habitação brasileira, ainda mais necessária em um momento de enormes retrocessos e a necessidade de resistência: “Financeirização nos trópicos: moradia e a cidade no Brasil emergente”. A conclusão traz “porosidades, resistências e a quebra do consenso”.
Rolnik escreve sobre a financeirização global da moradia com base na evolução da política de vários países. Já na introdução desse capítulo (p. 21), as “cenas do início do século 21” descritas pela autora em primeira pessoa aproximam o leitor da experiência possibilitada pelo trabalhado como relatora. O texto traz detalhes que descrevem os lugares, o clima, as pessoas e a situação de sofrimento causado por motivos diversos sempre ligados à insegurança da moradia. Impossível aqui não ter a dimensão da importância da moradia como um direito.
Porém, ao descrever essas situações a autora prova que – em regiões distintas da Europa ao Oriente Médio e Ásia – há um processo de “desconstrução da habitação com um bem social e de sua transmutação em mercadoria e ativo financeiro” (p. 26). Além de problema individual e social, a autora ainda nos descreve os impactos que as mudanças na forma de provisão habitacional têm sobre a produção do espaço urbano. Assim, apresenta a narrativa que demonstra que o modelo da casa própria adquirida via crédito hipotecário transformou-se em um paradigma dominante, sem se esquecer de apresentar as formas específicas e sentidos sociopolíticos em diferentes contextos.
Das cenas que abrem o segundo capítulo destaco a fala de seu Altair: “Passei minha vida sendo jogado igual peteca, daqui para ali, dali para aqui”. Seu Altair é morador do Rio de Janeiro e seu relato foi captado em um evento do Comitê Popular da Copa e Olímpiadas do Rio de Janeiro. A narrativa aqui, colocada pelos que participavam da mesa, denunciava abusos cometidos pelos gestores das obras. Uma contra narrativa. O lugar comum era festejar os possíveis legados que ocorreriam graças à revolução urbana ocorrida para sediar os megaeventos previstos para a cidade. Seu Altair é um dos milhões de habitantes do planeta que são afetados por uma crise global de insegurança da posse. Seu Altair é um sem-lugar. O segundo capítulo, “Os sem-lugar ou a crise global de insegurança da posse”, denuncia as várias formas em que se manifestam a crise de insegurança da posse: remoções forçadas, deslocamentos em razão de grandes obras de infraestrutura, conflitos e desastres naturais ou grandes obras de hidrelétricas. Nessa segunda parte a autora busca relacionar a crise global de insegurança da posse ao avanço do complexo imobiliário-financeiro e o impacto sobre o direito à moradia nas cidades.
No terceiro capítulo, intitulado “Financeirização nos trópicos: moradia e a cidade no Brasil emergente”, as cenas são brasileiras: o morro da Providência no Rio de Janeiro, onde o projeto de “urbanização” gerava um clima de apreensão e conflito e; zona sul de São Paulo no contexto de insegurança da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada. A autora retoma as questões tratadas anteriormente para descrever e analisar a trajetória da política habitacional brasileira. Aqui Rolnik revisita toda sua experiência profissional desde da participação no Movimento da Reforma Urbana passando pela participação em partidos e governos.
O capítulo é extremamente necessário em tempos de desmonte de toda a política pública de habitação, incluindo o Próprio Plano Nacional de Habitação, o PMCMV e os conselhos participativos etc. Ao mesmo tempo que a autora documenta avanços do período pós Estatuto das Cidades (2001) – quando era possível sonhar com “a utopia do direito à cidade para todos” (p. 16) – traz a necessária crítica às políticas do governo de coalizão liderado pelo PT: segundo ela, foi nesse período que houve o avanço da financeirização da terra e da moradia no país, agravando a crise urbana.
Para as notas finais, as cenas vêm do Brasil e da Turquia, ambas de junho de 2013, ambas repletas de vozes de movimentos, coletivos e pessoas que expressavam insatisfação em relação às cidades em que viviam. “A cidade, colonizada pelas finanças, explode em insurgências, conflitos e violência”. Rolnik vai demonstrando no livro como esse modelo conduz as políticas urbanas e de moradia, expulsando moradores de suas vizinhanças, colonizando espaços e formas de viver.
A conclusão do livro traz “porosidades, resistências e a quebra do consenso”. A autora deixa claro que a imposição desse modelo não acontece sem a resistência e que o “paradoxo da globalização econômica neoliberal é justamente enfraquecer e ativar as forças sociais de resistência simultaneamente”. São as lutas dos povos indígenas para continuar em suas terras, dos pequenos camponeses para a produção de alimentos sem agrotóxicos, das resistências contra as remoções que caracterizam um momento de rebeliões, resistências e ocupações.
A guerra dos lugares, para a autora, não acontece apenas nos protestos envolvendo multidões, mas no dia a dia de cada um dos fronts dessa luta. A luta pelo direito à cidade está em cada resistência a despejos e remoções, em cada luta antiprivatização e homogeneização do espaço, em cada apropriação do espaço coletivo como lugar de multiplicidade e da liberdade. Outro front está na necessidade de muita imaginação urbanística e normativa para proteger, promover e potencializar as novas possibilidades de ocupação do espaço urbano pois, a ação do planejamento urbano e da política habitacional tem sido fundamental para expandir as fronteiras do capitalismo financeirizado sobre o território. Mas ao narrar todas essas formas de resistência no mundo Raquel Rolnik nos deixa claro que o conceito de direito à cidade está vivo.
Por fim cabe ressaltar que o conteúdo do livro é denso e que poderia ser enfadonho, cansativo. Porém, Rolnik acerta ao usar estratégias que dão ao livro uma dinâmica que aproxima o leitor do dia a dia de seu trabalho, suas viagens e as experiências que viveu. A diagramação do livro, passando pela seleção de imagens e a descrição das cenas dão ao conteúdo a leveza necessária para uma leitura agradável mesmo que as situações descritas nos levem ao inconformismo. A capa do livro já prenunciava mulheres são heroínas. Raquel foi heroína ao gravar nesse livro seu olhar na contramão da maioria das políticas dos países em que esteve. É o seu olhar, é o olhar que se aproxima das minorias afetadas. Vale muito a leitura!
notas
NA – Redigido para a disciplina do PPG FAU-UNB – História e historiografia da cidade, com orientação da professora doutora Maria Fernanda Derntl.
1
Capa de Ronaldo Alves sobre foto do projeto Inside Out, JR.
2
ROLNIK, Raquel. Formação da periferia de São Paulo: elementos para sua análise. Orientador Lucio Kowarick. Trabalho de Graduação Interdisciplinar. Bolsa Fapesp. São Paulo, FAU USP, 1978.
3
ROLNIK, Raquel. Cada um no seu lugar! São Paulo, início da industrialização: geografia do poder. Orientador Gabriel Bollaffi. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1981.
4
Nascido em 1932 na Flórida, foi professor de história na Universidade de Nova York. Morreu em 1994. É autor de livros fundamentais para a compreensão da história de nosso país, como A industrialização de São Paulo e Rio Claro: um sistema brasileiro de "plantation".
5
ROLNIK, Raquel. The City and The Law: Legislation, Urban Policy and Territories in the City of São Paulo. Orientador Warren Dean. Tese de doutorado. Nova York, Graduate School Of Arts And Science, New York University, 1995.
sobre o autor
Edinardo Rodrigues Lucas é professor do curso de arquitetura da UFG – regional Goiás e doutorando do PPG FAU-UNB.