Esta deliciosa crônica chamada “Os passeios das ruas” (“Les trottoirs”) – publicada abaixo na íntegra – é um documento histórico que demonstra a novidade dos passeios ou calçadas na cidade de Paris. Ela foi publicada em 1842 no livro La Grande Ville Nouveau. Tableau de Paris – comique, critique et philosphique (1) do esquecido escritor francês Paul de Kock (1793-1871), que era muito popular no século 19 (2). Como Sue, como Dumas, ele se alinha a autores que escreviam para o novo leitor que se formou em razão do crescimento da educação, procurando narrativas simples. Escritor prolífico, que publicava em folhetins, naquela obra ele observa e descreve o quotidiano pequeno burguês de Paris, cidade que já se transformava rapidamente durante a primeira metade do século 19.
A maior parte das ruas de Paris, na época, não era pavimentada. Daí porque escreve Paulo Rónai: “A lama era a característica mais constante dos logradouros públicos de Paris e servia, ao mesmo tempo, de critério distintivo entre as diversas classes da sociedade. Ao olhar para os sapatos de quem entrava num salão, notava-se imediatamente se viera a pé ou de carruagem, isto é, se era rico ou se era pobre; e eis porque os jovens ambiciosos de Balzac, como aliás o próprio escritor, nada desejavam tão ardentemente como uma carruagem. A lama era permanente nessa cidade tão chuvosa e tinha a sua cor característica – a tal ponto que a Luísa de Chaulieu [personagem de Memórias de duas jovens esposas], dona de uma fazenda perto de Paris, basta a vista das botas sujas do marido para descobrir que este fora à capital sem lho dizer” (3). Honoré de Balzac (1799-1850), pouco mais jovem, foi contemporâneo de Paul de Kock.
A tradução é do português J. A. Xavier de Magalhães (aqui revista e modificada) e, sob o título de Cenas e quadros parisienses, foi publicada em data ignorada da segunda metade do século 19 pela Imprensa Minerva, de Lisboa, no âmbito das obras completas do autor, que tiveram sucessivas reedições. A versão foi confrontada com o original francês e corrigida por mim.
notas
1
Versão em português: KOCK, Paul de. A grande cidade. Um retrato de Paris no começo do século XIX. Organização, revisão e notas de José Roberto Fernandes Castilho. São Paulo, Pillares, 2015.
2
Ver: PAES, Alessandra Pantoja. Das imagens de si ao mundo das edições: Paul de Kock, romancista popular. Orientadora Valéria Augusti. Dissertação de mestrado. Belém, ILC UFPA, 2013 <https://bit.ly/38g07BS>.
3
RÓNAI, Paulo. Paris, personagem de Balzac. In Balzac e a comédia humana. 2ª edição. Porto Alegre, Globo, 1957, p. 129.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de direito urbanístico e de direito da arquitetura na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual de São Paulo – FCT Unesp.
Os passeios das ruas
Paul de Kock
A época dos passeios laterais das ruas chegou finalmente: todas as ruas de Paris, sem dúvida, hão de vir a tê-los. Entretanto, muitas já os possuem atualmente. Nas ruas novas e largas, os passeios são espaçosos e belos; nas ruas estreitas são obrigados a ser também estreitos, porque é preciso, evidentemente, deixar lugar para duas carruagens (“voitures”) que a cada instante podem encontrar-se.
Em algumas ruas, o passeio só aparece aqui e acolá... Dão-se dez passos sobre ele, depois se encontra o pavimento da pista, mais adiante se vê ainda um bocado de passeio, e assim a seguir: isto dá sempre a esperança que tal melhoramento acabará por se estabelecer inteiramente e por toda parte.
Alguns censuram os passeios porque seriam demasiado estreitos, sem reparar que o defeito está na própria via e não neles; a razão é aquela que acabamos de dizer, a necessidade de deixar espaço para as carruagens. O que se pode, com algum fundamento, criticar neles é que não são elevados o suficiente do leito (“ne sont pas élevés de terre”). E tanto isto é verdade que mais de uma vez temos visto as rodas de carruagens saírem do caminho que lhes foi traçado e rolarem alguns segundos sobre o passeio, quando os cocheiros querem passar para frente de algum colega. Então, os infelizes pedestres, que se julgam livres de qualquer perigo porque estão no passeio, acham-se ali muito mais expostos do que n’outra parte pela razão de caminharem confiadamente e sem receio das carruagens.
Em Paris, os passeios laterais das ruas provocam frequentemente cenas divertidíssimas para o observador desocupado. Aquele que vai apressado, no entanto, deixa o passeio e não tem tempo de fazer quaisquer observações.
Todos querem ficar do lado das paredes das casas (“le côté des maisons”). Quando dois sujeitos se encontram, nota-se primeiro um momento de hesitação, nenhum quer ceder. É preciso, entretanto, que um deles resigne-se a desviar-se um instante do seu lado favorito porque senão ficariam horas inteiras no mesmo lugar, defronte um do outro.
Algumas vezes, depois de terem pretendido resistir, os dois indivíduos decidem-se ao mesmo tempo a ceder a passagem. Então se sabe o que acontece: vão de encontro um ao outro; para poderem seguir o seu caminho, apressam-se a lançar-se para o outro lado; infelizmente fazem ambos o mesmo movimento e tornam a encontrar-se. Isto dura, em certas vezes, muito tempo e tal não sucederia se um dos dois sujeitos tivesse parado, dizendo ao outro: “Queira ter a bondade de passar” (“Allons, passez donc”).
Há pessoas que, num passeio muito estreito, se entretêm a conversar com os amigos que encontram, de sorte que não se pode caminhar nem pela direita nem pela esquerda: é preciso dar-se volta pelo meio da rua, com o risco de ser coberto de lama ou esmagado pelas carruagens porque agrada àqueles senhores estarem de conversa sobre o passeio.
Quando se encontram tais sujeitos, temos todo o direito de pisá-los e de acotovelá-los, até que eles tenham deixado a passagem livre.
Há ainda homens que têm o desgraçado costume de trazer a bengala ou o guarda-chuva debaixo do braço, quase em posição horizontal. Quando vamos passar encontramos a ponteira daqueles objetos disposta a tirar-nos o olho, ou pelo menos a encher-nos o casaco de lama. Fazemos então descer a tal ponteira da bengala ou do guarda-chuva, ou a obrigamos a girar de maneira que o castão vá bater na barba daquele usa-a numa posição tão incômoda.
Quando chove, a passagem no passeio é dificílima nas ruas de Paris. Uma floresta de guarda-chuvas que se tocam, se batem, se prendem, se engancham algumas vezes... um levanta o seu, mas abaixando o nosso, encontramos o chapéu de uma senhora. Os mais felizes são então aqueles que não têm guarda-chuva: eles passam abrigados pelos guarda-chuvas alheios.
Há ainda seres privilegiados para quem o passeio tem sempre espaço e aos quais homens e mulheres se apressam a ceder até o lado das casas. São os carvoeiros e pedreiros...
nota
NE – KOCK, Paul de. Os passeios das ruas, In A grande cidade. Um retrato de Paris no começo do século XIX. Organização, revisão e notas de José Roberto Fernandes Castilho. São Paulo, Pillares, 2015.