O trabalho de José Resende (1945) tem uma longa trajetória. Algumas pinturas da época da Escola Brasil: da qual foi um dos fundadores em 1970. Um flerte muito singular com a pop, principalmente com as obras moles de Claes Oldenburg. A partir de fins da década de 1970, a escultura de José Resende chega aos poucos a dois procedimentos que, a meu ver, vêm norteando desde então seu trabalho. Seis delas estão nesta exposição:
1) as obras acentuam uma continuidade na sua construção. Elas devem evitar a impressão de terem sido feitas a partir de materiais que foram seccionados para, posteriormente, serem reunidos numa peça única, diferente de suas partes.
Tomemos como exemplo a escultura 1 (1980). É possível que saibamos que os tubos de cobre e de borracha pertenceram a unidades maiores, que foram cortadas, entrelaçadas etc. A direção e a flexão de dois tubos com maleabilidade opostas produzem então um passe de mágica: torna-se possível vergar um tubo de cobre sem amassá-lo. Como se fosse feito de borracha. Não se trata apenas de desviar a atenção do público da mão direita – que realiza o truque – para a mão esquerda do mágico, embora também haja isso no trabalho. Sobressai aqui o que acredito ser o outro procedimento fundamental para a compreensão de muitas obras bem-sucedidas de José Resende.·. Basta comparar a escultura 1 com a 2 para termos claro que ambas se organizam de maneira semelhante, embora com aspectos muito diferentes.
2) materiais com características físico-químicas opostas tendem a intercambiar suas propriedades. O informe se ordena; o líquido se solidifica; o invertebrado (uma manta de chumbo, por exemplo), se ordena. A sutil convivência do escultor com materiais corriqueiros – chumbo, couro, parafina, tubos de vidro, de borracha, cobre, aço etc. – vem permitindo a José Resende obter resultados surpreendentes e reveladores a partir de procedimentos razoavelmente simples desde que realizados com destreza.
Imaginem agora, caros leitores, o trabalho de duas trapezistas. Eles fazem um leve aquecimento e, enquanto o locutor circense anima o público, realizam alguns números mais simples. Até que uma delas – de cabeça para baixo – sustentada apenas pela pressão dos músculos da parte de trás dos joelhos, começa o número.
O movimento pendular dos trapézios aumenta vertiginosamente E então a outra trapezista solta a barra, dá um salto mortal que as mãos e os punhos firmes da companheira impedem de ser uma queda fatal.
Mas por que cargas d´água fiz essa associação da obra de José Resende com a nobre arte do trapézio, que aparece apenas vagamente em duas obras recentes, uma no interior e outra na parte externa, da nova galeria Bergamin Gomide? Porque essa me pareceu uma maneira eficaz de produzir uma imagem de procedimentos construtivos muito complexos. Mais ainda: esse aparente recurso retórico, acredito, torna possível dar às obras um alcance difícil de obter sem o recurso à figuração.
O momento drástico que se interpõe entre as mãos e pulsos das trapezistas é um acontecimento comum a vários momentos irreversíveis da vida cotidiana: dar ou não a mão a outra pessoa; dizer “sim” ou “não” a propostas arriscadas; apertar ou não um gatilho; enfim todas as decisões que não implicam uma região matizada que possa ir para um lado ou outro.
Do mesmo modo, dois centímetros a mais no diâmetro do tubo de borracha poria a perder a peça 1. A frouxidão entre os dois tubos atrapalharia a precisão do movimento bem como a interação entre borracha e cobre. E o passe de mágica não se cumpriria: um camundongo sairia da cartola do nosso mágico.
notas
NA – Exposição José Resende na inauguração da Casa Flávio de Carvalho, segundo espaço expositivo da galeria Bergamin & Gomide, 22 de maio a 3 de julho de 2021. Alameda Ministro Rocha Azevedo 1052, Jardins, São Paulo (aberto de segunda a sexta, das 10h às 19h; e sábado, das 10h às 15h.
NE – Ver o projeto expográfico: RESENDE, José. Escultura – uma conversa com a Casa Flávio de Carvalho. Inauguração da galeria Bergamin & Gomide. Projetos, São Paulo, ano 21, n. 244., Vitruvius, fev. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/21.244/8115>.
sobre o autor
Rodrigo Naves já teve inúmeras ocupações, de revisor a redator de enciclopédias, mas tem se dedicado, sobretudo, à crítica e à história da arte e há trinta anos mantém um curso livre desta disciplina.