Ao observarmos a entrada das delegações na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, notamos que os alemães não vestiam aquele típico macacão de calça curta, muito menos os franceses usaram a boina preta e a camiseta com finas listras horizontais, do mesmo modo que os japoneses não trajavam quimono ou os chineses aquele jaleco abotoado até o colarinho, no melhor estilo “Mao”. Os holandeses também não apareceram calçando seus típicos tamancos de madeira ou os estadunidenses, seu chapéu de caubói.
Contudo, esse processo de autonomia e superação do estereótipo caricatural não é percebido no caso da delegação brasileira, com sua camisa estampada com motivos vegetais (folhas e flores) e o chinelo de borracha cujo som produzido por quem caminha com esse calçado, o tal “flap-flap”, virou uma onomatopeia que identifica esse produto mundo afora, principalmente no hemisfério norte. A marca da sandália remete às pessoas nascidas em uma determinada ilha do Pacífico, pertencente aos Estados Unidos, cuja atmosfera solar e praiana talvez até se confunda, em alguns aspectos, à imagem do Brasil pela lente do estrangeiro. Por via das dúvidas, vale um trocadilho com a letra de Gil e Caetano: “o Havaí não é aqui”.
É evidente que não somos todos esse personagem-símbolo que traja a camisa floral, a sandália de dedo e samba sorridente com os braços erguidos ao alto. E também é claro que seria impossível elaborar um figurino-imagem capaz de representar a diversidade de um país de dimensões continentais (talvez a mais eloquente manifestação desse figurino-imagem que tudo abarca seja mesmo o desfile de uma escola de samba: sobreposição, saturação, ritmo em compasso constante e ininterrupto e transe).
Notem que a construção de uma figura alegoricamente exótica só pode partir do olhar do outro, no nosso caso, o ponto de vista do próprio estrangeiro. Entretanto, para o olhar estrangeiro, esse “outro” somos nós. Incorporamos tão bem a figura desse “outro” moldado pela curiosidade quase taxonômica do colonizador que já somos incapazes de nos compreendermos de modo distinto, pois somos, enquanto imagem, uma construção do próprio colonizador. Nada mais contraditório do que se auto reconhecer como exótico. Afinal, exótico é aquilo que nos é estranho, diferente.
Os elementos que chamaram a atenção dos pintores holandeses Frans Post (1612/1680) e Albert Eckhout (1610/1665) reaparecem nas telas dos pintores da Missão Artística Francesa que desembarcaram no Rio de Janeiro em 1816. Mas vale lembrar que a flora, a fauna, a paisagem e os costumes intrínsecos ao brasileiro, todos eles exóticos ao olhar dos acadêmicos europeus, são onipresentes nas obras de artistas de destaque na figuração moderna brasileira, como Tarsila do Amaral (1886/1973), Candido Portinari (1903/1962) e Di Cavalcanti (1897/1976). Os elementos e os personagens que antes eram eleitos como exóticos ao olhar estrangeiro passam a constituir gradualmente (e também paradoxalmente) o temário visual que sintetiza a tão ambicionada “identidade nacional”.
Entre os gêneros principais da pintura acadêmica (mitológico, religioso, heroico, natureza morta, documental e costumes), serão o registro documental da paisagem tropical em panoramas e a elaboração de cenas que revelam o comportamento e os costumes desse brasileiro “exótico” as duas principais categorias de representação do homem e da paisagem onde vive. Nesses termos, percebemos que o aspecto que identifica a pintura brasileira ou que a difere da matriz europeia, majoritariamente, é o assunto, o tema e não a pintura em si enquanto matéria, coisa.
Já a abstração construtiva subtrai o tema, o assunto (e consequentemente a ativação da memória do sujeito), pois intenta justamente o “universal”. Ou seja, sob uma ótica mais pragmática, a abstração geométrica como expressão de um imaginário e de uma cultura local soa como uma aparente contradição. Contudo, as geometrias elementares preenchidas pela opacidade rala de Alfredo Volpi (1896/1988) ou definidas pelos planos ferrosos dobrados e cortados de Amilcar de Castro (1920/2002) não só provam o contrário, como, justamente por esse motivo, representam duas das mais significativas e potentes manifestações do projeto construtivo brasileiro.
Determinadas obras de Volpi e Amilcar comunicam o “local” utilizando-se da gramática do “universal”: a geometria construtiva. Aquilo que diz respeito ao particular deixa de ser o tema e passa a ser a superfície, a matéria e os procedimentos formais e espaciais para a sua realização. Todavia, no ambiente brasileiro, quando pensamos em uma poética particular, que expressa uma autenticidade dissociada da figuração imediata que remete às coisas do mundo real pois apoia-se em uma estrutura estética generalizável e versátil, parece nos vir à mente as obras de João Gilberto (1931/2019) e Oscar Niemeyer (1907/2012). A música de João Gilberto diz muito mais sobre uma inteligência peculiar que opera a modulação fora do compasso devido à negação da silaba tônica (a palavra perde seu significado e vira uma articulação silábica, ou seja, uma abstração sonora) do que sobre as desilusões amorosas da jovem elite algo melancólica que habita a zonal sul carioca entre final da década de 1950 e o início da década de 1960 (talvez não seja exatamente a letra que faz da bossa nova um dos ritmos brasileiros de maior sucesso no Japão, por exemplo). Do mesmo modo, não é a suposta disposição à figuração (ou à interpretação figurativa) da arquitetura de Niemeyer que a torna original, ou “brasileira”, quando comparada às correntes hegemônicas da arquitetura moderna, mas o itinerário de uma linha cujo movimento nega a racionalidade da “estética da máquina”, porém sem recair em uma frágil e aleatória gestualidade expressionista. João Gilberto e Niemeyer parecem vibrar em uma mesma faixa.
Desdobramentos representativos do Neoconcretismo, obras como os Parangolés (1964), de Helio Oiticica (1937/1980), Luvas Sensoriais (1968), de Lygia Clark (1920/1988) e Divisor (1968), de Lygia Pape (1927/2004), reposicionam a sempre atenta mirada do olhar estrangeiro, que agora encontra essa “sensibilidade local” nas obras onde o artista é um canalizador da interação entre o sujeito e o artefato (sim, artefato, pois a obra só se realiza durante a relação corpórea entre ambos).
Devedores tanto da figuração acadêmica estereotipada em uma ponta, como da experiência sensorial e corporal neoconcreta em outra, artistas contemporâneos brasileiros reconhecidos internacionalmente não só reafirmam como edulcoram à saturação extrema os atributos que formalizam nossos “pecados capitais” (e talvez por isso mesmo gozam da fama internacional que garante a alta rentabilidade das suas obras no mercado da arte): a sonolência aromática, translúcida e elástica de Ernesto Neto (1964), a beleza feita com a matéria já sem utilidade para a sociedade de consumo, nas obras de Vik Muniz (1961) ou os motivos florais sobrepostos em camadas que configuram arabescos e fractais multicoloridos nas pinturas de Beatriz Milhazes (1960).
Percebemos nesse alargado arco temporal, de Frans Post à Beatriz Milhazes, culminando no figurino da delegação brasileira nas Olimpíadas de Tóquio, movimentos de aproximação e afastamento acerca da imagem literal desse Brasil exótico apresentado pela tríade “paisagem, corpo, comportamento”. E por falar em Olimpíadas, acredito que a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, dirigida por Fernando Meirelles (1955), Daniela Thomas (1959), Andrucha Waddington (1970) e Deborah Colker (1960), tenha sido a iniciativa que melhor apresentou outras entradas para o reconhecimento da nossa “inteligência criativa”. Para além das referências à grafia abstrata brasileira, com citações às obras de Athos Bulcão (1918/2008), Burle Marx (1909/1994), Helio Oiticica e Niemeyer, a cerimônia de 2016 jogou luz para um Brasil urbano e para um Rio de Janeiro cuja cultura visual e musical se constitui nessas camadas de socialização separadas pela geografia e pelo tempo, da bossa nova ao funk.
Em um dos seus mais recentes e celebrados trabalhos, a cantora Anitta (1993) parece se propor a virar a página do Brasil idealizado para o Brasil real ao atualizar a “Girl from Ipanema” com o clipe “Girl from Rio”, dirigido pelo italiano Giovanni Bianco (1965). Com o fundo instrumental da canção mais conhecida de Tom e Vinicius, no início do clipe, a cantora aparece como uma “pin-up chic” em um cenário e com um figurino nos tons pasteis típicos da paisagem urbana carioca Art Déco dos anos 1930 e 1940. Há aí um descompasso de pelo menos duas décadas entre a personagem vintage e a “Garota de Ipanema”, composta em 1962 (poderiam ter avisado o diretor italiano). Ambientada no Rio dos anos do “Estado Novo”, Anitta canta, em inglês, sua versão da trilha-símbolo do Rio dos “anos bossa nova”.
Em uma mudança de cena abrupta, Anitta sai da paisagem uniforme da sofisticada Ipanema dos anos 1940 e desembarca, em um coletivo lotado, no mormaço do Piscinão de Ramos, conhecido equipamento público da zona norte da capital carioca que chega a receber 60.000 banhistas em um único final de semana. A ruptura entre a idealização nostálgica (sendo assim e por isso mesmo propositalmente cenográfica) e o real salta aos olhos. A palidez tonal dá lugar à saturação de cores em alto contraste cromático. No lugar da luz esbranquiçada, ofuscamento e alta exposição. O clipe alterna o passado encenado e o presente real durante toda sua duração. Anitta não apenas explica que “we don’t look like models”, como dessacraliza o corpo e o comportamento padrão ao demostrar que a “energy glows” justamente da diversidade de “tan lines” e “big curves” dos mais variados corpos femininos que aparecem no clipe. Por mais que a letra da música verse sobre os atributos corporais e comportamentais da “girl from Rio”, o clipe mostra figuras de ambos os sexos e de diferentes idades desempenhando diversas atividades de lazer. O Rio real do presente é diverso e multicultural como o Brasil.
O retrocesso que atirou o Brasil em uma queda livre sem fim desde às eleições de 2018 apresenta hoje um país tão distante daquele visto em retrospectiva e projetado para o futuro na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 que seria impensável nos tempos atuais o consentimento “oficial” para a criação de um evento como aquele roteiro. Certamente o atual secretário da Cultura, ex-ator televisivo de quinto escalão – aquele que foi até a Bienal de Veneza sem se preocupar em saber quem era a arquiteta Lina Bo Bardi (1914/1992) - desaprovaria categoricamente o script de 2016 usando da conhecida retórica pentecostal que reprime tudo aquilo que ele guarda reprimido dentro de si: a inveja da felicidade e da liberdade alheia.
A história nos mostra que o estereótipo moldado pelo olhar estrangeiro é mais forte do que nós e, mais do que isso, somos nós, de fato. Os atributos do “soft-power” do Brasil no mundo são esses mesmos: criatividade, alegria, calor, natureza, desenvoltura corporal (nosso maior destaque nas Olimpíadas de Tóquio, e do alto dos seus 13 anos de idade, é a medalhista de prata Rayssa Leal, a “fadinha”, skatista da categoria “street”) e a expertise de inventar tudo com nada (Lina Bo Bardi estava certa sobre nossa habilidade em ressignificar objetos como estratégia de sobrevivência). Hoje, porém, para o mundo, nem isso somos mais. Aliás, no fundo ainda somos, apesar desse outro Brasil mesquinho e cafona que insiste em sabotar até o nosso direito de ter esperança.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECA USP, 2003), doutor (FAU USP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MAC USP, 2007/2008).