A modernidade é um fenômeno histórico altamente complexo, e que não pode ser facilmente enquadrado em perspectivas lineares ou unívocas. Qual seria a sua “verdadeira” natureza? Sintética (coesa e construtiva), ou analítica (fragmentária e destrutiva)? Voltada à integração das múltiplas artes, como na ideia alemã de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk), ou, ao contrário, como defendia Clement Greenberg, vocacionada à purificação e à autonomia de cada arte conforme suas técnicas e meios específicos? (1)
São muitas as correntes e vertentes modernas, com discursos múltiplos, dissonantes, e por vezes inconclusos e intervalares. Diversidade e polifonia que, no entanto, não evitou que essa mesma modernidade, confundida com os vários modernismos, e sua miríade de vanguardas, fosse lida como razoavelmente una e homogênea, e dotada de um discurso coerente, contínuo, teleológico e sem fissuras. Tendência generalizante das leituras históricas e historiográficas que é particularmente forte no caso da arquitetura e do urbanismo, onde a clara predominância das vanguardas de matriz construtiva eclipsou uma série de outras produções não alinhadas a ela. Produções estas que, uma vez amputadas de seu lugar e de sua organicidade histórica, parecem ter se tornado desgarradas, destituídas de sentido, entendidas como isoladas e estéreis, e, portanto, aparentemente incapazes de deixar heranças fecundas. Esse é o grande mito da modernidade que o belíssimo livro de Paola Berenstein Jacques –Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança vol. 1 – vem contestar e desmascarar, refazendo minuciosamente as pontes dinamitadas, e revelando sementes muito frutíferas que nos pareciam invisíveis.
Essa poderosa releitura histórica feita pela autora acompanha as trajetórias singulares e heterodoxas de dois grandes personagens dos campos da história da arte e do urbanismo, verdadeiros fantasmas modernos capazes de, segundo suas palavras, atravessar paredes disciplinares: Aby Warburg (1866-1929) e Patrick Geddes (1854-1932). Mas porque fantasmas? Porque são expoentes importantes de uma tradição que se tornou subterrânea ao longo do século 20, e que, no entanto, ainda nos assombra. Uma “ciência nômade”, de matriz romântica, e com desdobramentos em grande medida surrealistas e dadaístas. Uma tradição que não pensa a história de forma progressiva e teleológica, mas, ao contrário, como um fluxo errático feito de fragmentos e coexistências de tempos heterogêneos. Uma história cuja forma não é uma linha, ou um vetor regular, mas uma montagem caleidoscópica de cacos, e que não funciona como uma sucessão de etapas que se acumulam visando um momento de redenção final, e sim como um mosaico de choques de dissonância. Isto é: um conjunto que funciona por interrupções e explosões do continuum da história, como escreveu Walter Benjamin (2).
Como mostra muito bem Paola, se engana quem pensa que essa tradição não seja moderna, ou que seja até antimoderna. Muito ao contrário, trata-se de uma tradição fortemente moderna, e que reagia aos excessos da mesma modernidade, em suas vertentes cientificistas, tecnicistas, e muitas vezes acríticas. Benjamin, Bloch, Bataille, Elliot, Joyce, Pound, Picasso e Stravinsky podem ser nomes associados a essa linhagem mais apocalíptica e dionisíaca, em contraste com outros como Marinetti, Gropius, Zola e H. G. Wells, por exemplo, seguindo uma proposição feita por Colin Rowe e Fred Koetter (3). Ecoando de certa forma a experiência traumática da Primeira Guerra Mundial, muitos artistas modernos passaram a operar através da colagem, e, de forma ainda mais radical, da montagem de fragmentos, numa linguagem feita de deslocamentos e recomposições, que explodia tanto a homogeneidade da forma visual herdada do século 19, ancorada ainda no centralismo da perspectiva renascentista, quanto o seu determinismo histórico, linear e progressivo. O que se apresentava, então, era uma experiência formada por estilhaços, capaz de abrir brechas no tempo em busca de latências ocultas, de devires inesperados, de rastros de ruínas aparentemente desaparecidas. Uma história dos vencidos que, na verdade, nunca se deixa soterrar completamente – seja a cem anos atrás, seja agora –, e que pode ainda (porque não?) voltar a se reatualizar no presente, engendrando outros futuros.
Essa é a tradição que interessa vivamente a Paola Berenstein Jacques, e que é investigada no amplo arco de sua produção acadêmica, que abrange trabalhos como os de Hélio Oiticica e dos situacionistas, e pensamentos como os de Gilles Deleuze e de Georges Didi-Huberman, entre outros, organizados em constelações e nebulosas, sempre por um ponto de vista errante. Uma tradição impura da modernidade, que foi muito forte no período entreguerras, mas que foi dramaticamente bloqueada com a ascensão do nazi-fascismo na Europa, e que a autora reivindica como uma herança viva e operativa para os dias de hoje – em que os “momentos de perigo”, no plano da história, se reatualizam dramaticamente. E aqui, especificamente nesse livro que decorre de sua tese para a obtenção do grau de titularidade na Universidade Federal da Bahia, ela vai buscar em Warburg e em Geddes mais dois pontos de apoio importantes para a remontagem histórica que percorre suas pesquisas.
Mas porque esses dois personagens? Warburg já tem sido, nos últimos tempos – graças, em grande medida, aos estudos de Didi-Huberman –, amplamente reconhecido e resgatado como um formulador de questões cruciais para o mundo contemporâneo, com seu Atlas Mnemosyne associativo, simultaneamente catalográfico e inventivo. O “pai fundador” da iconologia, disciplina que pensa por imagens através de deslocamentos e choques intervalares. Mas Geddes, por sua vez, permanece razoavelmente desconhecido, sendo visto como alguém um tanto antiquado, darwinista, cujo método de pesquisa e análise não teria dado frutos promissores, ou reconhecíveis, na modernidade. E, de fato, enquanto o utopismo do modelo urbano da Carta de Atenas – convém lembrar que utopia deriva de não-lugar (u-topos) – professava a tabula rasa, Geddes era um amante – não nostálgico (4) – das cidades históricas, com seus espaços e tempos sobrepostos (5).
Um dos fundadores do planejamento regional, ele combinava as ciências naturais e sociais para pensar o “ambiente” das cidades e a preservação dos seus patrimônios históricos e culturais. Mais do que uma cartilha para se projetar cidades novas a partir do zero, Geddes desenvolveu uma espécie de ciência da vida nas cidades (Civics), baseada na pesquisa empírica, dada pela deambulação errática (city walks), e pela comparação entre cidades baseada em suas diferenças significantes. Muito além de um simples levantamento de dados, sua prática de realizar Surveys representa uma forma particular de se olhar e apreender os conjuntos urbanos em paralaxe, tanto produzindo textos, desenhos, fotografias e diagramas, quanto recolhendo cartões-postais, recortes de jornais e de revistas, e guias turísticos.
Mais do que um urbanismo pensado como ciência aplicada à consecução de determinados fins, seu Civics enfoca os meios – universo em que se dá a vida cotidiana propriamente dita. É, assim, uma espécie de educação democrática e cidadã, formadora da consciência de um sentido de urbanidade. Ao mesmo tempo, e não por acaso, acabou sendo visto por muitos urbanistas, planejadores e teóricos que o sucederam, como um método de análise e projeto extremamente complicado e lento, que retardava a ação prática, e por isso devia ser abandonado – como de fato foi, mas não completamente. Ecos de sua Civics estão, por exemplo, tanto na redefinição da noção de escala pelo casal Smithson, quanto na atenção ao vernáculo de Aldo Van Eyck, ou na reivindicação da participação popular nos projetos urbanos por Giancarlo de Carlo (6) – que traduziu e editou o livro clássico de Geddes, Cities in evolution (1915), para o italiano. Isto é, suas ideias foram referências importantes para o Team X, em sua batalha bem-sucedida contra o que consideravam a “tirania do consenso cartesiano”.
Para desenvolver suas pesquisas e reflexões, Aby Warburg dispunha conjuntos enormes de imagens e livros abertos sobre as mesas, afim de compará-los visualmente. Raciocínio que opera por acúmulos e deslocamentos, e que Didi-Huberman qualifica como uma forma a mais de “montagem”. Afinal, prossegue, “uma biblioteca é mais do que a soma de seus próprios livros. É um dispositivo de criação de ideias” (7). No mesmo sentido, acrescenta Paola Berenstein Jacques, o “Survey geddesiano é um tipo de Atlas warburguiano de cidades, uma forma sinóptica e colaborativa de apreensão e de compreensão da vida das cidades” (8). Podemos perceber, assim, que a montagem não é apenas uma técnica gráfica de bricolagem. Ela é, muito mais, uma epistemologia, uma forma particular e aberta de conhecimento que pode ser aplicada tanto às imagens quanto às cidades, e que, quando bem realizada, é capaz de abrir fendas no presente, tornando visíveis certas sobrevivências, ou anacronismos, que por outros meios nunca apareceriam. Rastros de futuros abandonados, que, no entanto, uma vez reativados podem iluminar caminhos diferentes daqueles que estão previstos na ponta final do vetor linear historicista, ou da ventania do progresso moderno que nos empurra para a frente, na famosa leitura de Benjamin do quadro de Paul Klee. Ou melhor: caminhos distintos daqueles apontados por uma das vertentes da modernidade, mas que, no entanto, não subsume a outra: seu espelho reverso.
notas
1
“Cada arte, ao se aprofundar, fecha-se em si mesma e separa-se. Mas compara-se às outras artes, e a identidade de suas tendências profundas as leva de volta à unidade. Somos levados assim a constatar que cada arte possui suas forças próprias. Nenhuma das forças de outra arte poderá tomar seu lugar. Desse modo se chegará, enfim, à união das forças de todas as artes. Dessa união nascerá um dia a arte que podemos desde já pressentir, a verdadeira arte monumental. Quem quer que mergulhe nas profundezas de sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide espiritual que chegará ao céu”. KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte – e na pintura em particular. 2a edição. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 55.
2
Ver: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 229-230.
3
ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Collage City. Cambridge Mass, MIT Press, 1983, p. 137. Apud: JACQUES, Paola Berenstein. Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança 1. Salvador, EDUFBA, 2020, p. 362.
4
Conhecido discípulo de Patrick Geddes, Lewis Mumford foi o maior difusor de suas ideias, mas também o maior traidor delas. Pois, como mostra a autora, Mumford dá à ideia do planejamento regional um caráter descentralizado e antimetropolitano, contrário ao grande cosmopolitismo do pensador escocês. Ver: JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit., p. 66.
5
Peter Hall, em Cidades do amanhã, “atribuiu a Geddes, classificado como ‘polímata inclassificável’, um lugar importante como pioneiro e visionário no que ele chamou de ‘as raízes anarquistas do movimento urbanístico’, num contraponto, talvez um pouco simplificado, à ‘solução de Le Corbusier, segundo a qual um mestre planejador todo poderoso demoliria por completo a cidade existente’”. Apud: JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit., p. 76-77.
6
Um dos capítulos de Cities in evolution (1915), suprimido na edição feita em 1949 por Jaqueline Tyrwhitt, se chamava “Improvement of slums”, que tratava de temas que poderíamos chamar hoje de urbanização de favelas e reabilitação de cortiços, além de práticas de autogestão cooperativa na escala urbana.
7
DIDI-HUBERMAN, Georges. À livres ouverts. Paris, INHA, 2017. Apud: JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit., p. 288.
8
JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit., p. 152.
sobre o autor
Guilherme Wisnik, crítico e curador, é professor livre-docente na FAU USP. Autor dos livros Lucio Costa (Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005), Estado crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009,), Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas (Ubu Editora, 2018) e Bolívia 2016 (Circo de Ideias, 2018), e coautor de Espaço em obra: cidade, arte, arquitetura (Edições Sesc São Paulo, 2018), além de organizador de diversas publicações.