Como ocorreu a trajetória arquitetônica dos liceus portugueses no período entre o século 19 e o Século 20? Gonçalo Moniz, que é referência no tema da arquitetura escolar, amplia essa questão além dos aspectos espaciais, trazendo uma articulação com o contexto político e as legislações educacionais no período analisado, considerando que o programa arquitetônico dos liceus sofreu transformações a partir de exigências pedagógicas, higiênicas e construtivas.
O recorte temporal escolhido pelo autor destaca os dois marcos relevantes na história do ensino secundário: o ano de 1836, com a reforma educacional que criou o Liceu e o ano de 1936, com a vinculação dos Liceus à ideologia do Estado Novo, definindo uma nova arquitetura nacionalista. Nessa arco temporal de cem anos, são identificados os diversos agentes que atuaram nessas transformações, estabelecendo uma relação entre as reformas de ensino e a sociedade. O conceito de modernidade e de classicismo das obras são aplicados nos diversos contextos, evoluindo no tempo e no espaço. O percurso histórico e arquitetônico dos liceus portugueses expressaram uma cultura racionalista moderna, associada a um caráter clássico, permitindo-se criar uma conexão entre as Belas-Artes e o Movimento Moderno.
O livro é organizado em três capítulos, obedecendo uma sequência cronológica que categorizam os liceus, retratando suas diferentes fases e linguagens plásticas, além de destacar a atuação dos arquitetos responsáveis pela introdução da arquitetura moderna do país.
O primeiro capítulo, “o Lyceu de 1836”, é subdivido em duas partes. Em primeiro lugar, Moniz resgata a reforma educacional promovida no governo de Passos Manuel em 1836, que, inspirada nos modelos franceses, implantou o conceito progressista do ensino técnico-cientifico, demandando uma reformulação nos espaços físicos das escolas secundárias. O Plano dos Liceus Nacionais criou escolas em todas as capitais de distrito, prevendo o aproveitamento de edifícios públicos que eram bem situados e conservados, em sua maioria, colégios e conventos desocupados. Como exemplo, o autor apresenta um estudo sobre o Liceu de Coimbra, construído no século 16, que necessitou adaptar alguns espaços e dar novas utilizações para outros, como o caso do claustro. Esta condição de reuso de outras tipologias funcionais para o uso educacional também aconteceu no Brasil, como foi o caso da Rede Federal das Escolas Aprendizes Artífices criada no início do século 20.
Ainda neste capítulo, o autor evidencia que na segunda metade do século 19, Portugal busca acompanhar o progresso dos outros países europeus, investindo na melhoria dos equipamentos públicos. Surge uma consciência científica, desenvolvendo um discurso político preocupado com a higiene social, que se reflete também no contexto arquitetônico escolar. Nesse período, as construções públicas já buscavam expressar mais racionalidade com novas exigências programáticas e funcionais. Ele exemplifica com o Liceu Nacional de Aveiro, concluído em 1860, sendo o primeiro a ser projetado para tal função, porém não atendeu às recomendações estabelecidas pelas Reformas de 1836 e 1844.
No segundo capítulo, intitulado de “Os Liceus clássicos: sinais de modernidade (1881-1926)”, Moniz explora o processo de transição do Neoclassicismo Pombalino para a Cultura moderna, mostrando como os currículos escolares e construções equilibram as concepções humanistas e o rigor científico. O autor cita a reforma do ensino secundário concebida por Jaime Moniz (1895), baseada no humanismo clássico, mas defende que as reais transformações nas construções liceais surgiram mesmo desde a reforma de Eduardo José Coelho em 1905, que introduziu disciplinas científicas, aplicando noções de higiene escolar e estruturando melhor o programa arquitetônico. Neste contexto, foi idealizado o Liceu Central de Lisboa (1881-1911) que apresentou duas versões de projeto, sendo a definitiva remodelada por Rosendo Cavalheira em 1907, que evidenciou conceitos de economia e funcionalidade no seu desenho.
A Reforma do ensino de 1905 desdobra-se no lançamento de outros Liceus projetados por egressos da École de Beaux-Arts de Paris e que conciliaram a tradição clássica com um novo caráter moderno. Os edifícios já previam as questões higiênicas e eram geralmente implantados em amplos terrenos nas áreas de expansão das cidade. As composições obedeciam regras de simetria e hierarquização funcional, com pátios de recreio intercalando com os volumes. Assim, foram construídos três projetos em Lisboa do arquiteto Miguel Ventura Terra, sendo eles: Liceu Camões (1908), Liceu Pedro Nunes (1907) e Liceu Maria Amália (1913). Na região do Porto, foram construídos o Liceu Alexandre Herculano (1916) e o Liceu Rodrigues de Freitas (1918), projetados pelo arquiteto José Marques da Silva, sendo objeto de concurso. Estes projetos marcam o início da atuação da geração modernista na arquitetura de Portugal.
O terceiro capítulo, que trata dos “Liceus modernos no período de 1926-1936”, relata a importância da atuação da Junta Administrativa do Empréstimo para o Ensino Secundário responsável pelo procedimento político e programático de concursos para os novos liceus, que resultaram em propostas de caráter moderno. Este foi um marco na política educacional, pois estabelecia o concurso público como um instrumento democrático na produção dos projetos liceais.
Neste processo, que aconteceu paralelo ao surgimento do Estado Novo e a ditadura no país, os novos equipamentos foram projetados a partir de rigorosas recomendações que transmitiam uma orientação nacionalista e disciplinadora da Educação Nacional. As “condições gerais” do concurso apresentava um “Programa-Tipo” com exigências pedagógicas, higiênicas e construtivas que incluíam aspectos relacionados à implantação, conforto ambiental e especificação de materiais. Estas premissas traduziam uma simbologia associada aos novos edifícios, denominada por Moniz de “Máquina de ensinar”, com princípios do movimento internacional.
O autor mostra que a natureza do rígido programa evidenciava concepções ainda inspiradas no classicismo tradicional, mas que traziam inovações arquitetônicas em suas tipologias formais e adoção de novas tecnologias construtivas. Moniz descreve as características que fundamentavam esta arquitetura liceal:
“Um entendimento da modernidade ainda bastante clássica, que não ia para além de querer ser racional, sóbria, simples e utilizar o betão. Toda a dimensão social, política e cultural estava arredada do seu discurso arquitetônico marcando as barreiras que os impedia de dialogar com as vanguardas europeias”. (p. 196)
Moniz utiliza alguns casos concretos que representam essa nova configuração escolar, apontando os projetos de Liceus elaborados em 1930 por meio de concurso para Beja, Lamego e Coimbra, que apresentavam uma linguagem visual mais despojada e forte horizontalidade. Porém, consistia em uma arquitetura modernizante mais experimental, pois o próprio autor reconhecia a fragilidade conceitual na arquitetura portuguesa deste período:
“De facto, em Portugal, o moderno é um estilo entre tantos outros, representando as vanguardas europeias. A arquitetura modernista não tem reflexão teórica nem sentido social, evocando apenas a dimensão temporal da contemporaneidade” (p. 173)
O autor também faz uma análise dos Liceus de D. Filipa de Lencastre: o Liceu de Quelhas (1929), projetado por Carlos Ramos e o Liceu do Arco do Cego (1932-1940), projetado por Jorge Segurado, que foi adaptado a partir de uma escola primária. O classicismo estava presente através do método de projetação de matriz “beauxartiana”, traduzido nas composições simétricas e monumentalidade. Contudo, a modernidade se expressava nos ideais “Bauhausianos”, rejeitando os elementos decorativos e utilizando o concreto armado como protagonista no sistema construtivo.
As contribuições trazidas pela obra de Moniz mostram como se estruturaram e se consolidaram as instituições Liceais em Portugal na transição do século 19 para o século 20, considerando as diversas diretrizes pedagógicas que impactaram nas soluções formais destes equipamentos educacionais. O autor desenvolve algumas respostas a questões de como o Governo interviu nos currículos pedagógicos, manipulando as disciplinas como instrumentos de poder político, para posteriormente criar “programas-tipo” que se materializassem em “Liceus-tipo”.
Aproximando-se das proposições de Gonçalo, podemos refletir sobre como os diversos agentes envolvidos no processo dessa trajetória arquitetônica Liceal, incluindo os profissionais arquitetos e autoridades legislativas, atuaram na concepção de novas ideias, trazendo para Portugal inovações pedagógicas, programáticas e construtivas. O autor destaca ainda que estes arquitetos aplicaram em seus projetos os conceitos e métodos aprendidos na Beaux-Arts de Paris, ensinados por mestres como Durand, Viollet-Le-Duc e Guadet.
A modernidade da arquitetura Liceal criou uma nova identidade para o Estado Novo e ela se expressava associando as novas tecnologias com o nacionalismo, símbolo de uma cultura. Moniz então expõe seu pensamento sobre como seria a essência arquitetônica destes equipamentos e conclui o seguinte: “O que parece existir é esta atitude moderna sobre os princípios clássicos, ou seja um processo de reinvenção a partir do projecto. O projecto moderno do liceu é assim, um projecto em aberto, aliás como o da própria modernidade, reflectindo as evoluções e involuções da sociedade”(p.216). Esta evolução natural viria a desdobrar-se em um novo plano lançado em 1958, que gerou outros critérios de projeto, baseados na economicidade, programa modular e sistemas pré-fabricados. Por fim, a produção de Moniz mostra que a experiência da arquitetura educacional portuguesa vivenciou desafios com episódios de estagnação e evolução, que seus agentes se inspiraram em referências estrangeiras como no caso da França, mas que conseguiram construir sua própria trajetória e identidade arquitetônica.
No que se refere ao aspecto formal da obra, o autor fornece um amplo panorama da arquitetura liceal e distribui o conteúdo equilibradamente em três capítulos, respeitando os marcos temporais de cada período da legislação educacional. Apresenta em sua narrativa imagens dos projetos, desenhos e registros fotográficos dos edifícios que articulam conjuntamente com o texto a compreensão das tipologias arquitetônicas apresentadas. O texto tem uma leitura clara e didática que facilita a compreensão das ideias e da sequência cronológica dos fatos.
Considerando que os estudos sobre esta temática são raros nas publicações acadêmicas, o livro Arquitectura e instrução: o projeto moderno do Liceu (1836-1936)”, com primeira edição publicada em 2007, constitui uma fonte de pesquisa indispensável para os interessados na arquitetura escolar, pois o autor, além de possuir vasta experiência acadêmica no assunto, apresenta uma visão contextualizada e adota uma postura coerente no seu discurso. Dentro deste mesmo foco, sugere-se a leitura de uma dissertação orientada pelo autor intitulada “A reconstrução da Escola Técnica: Sociedade, Política e Arquitetura” de autoria de Ana Filomena Carvalho, produzida em 2013 pelo Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Coimbra.
sobre a autora
Adriana Castelo Branco Ponte de Araújo é arquiteta, mestranda em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará e professora da EBTT do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará.