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Ulisses Castro, arquiteto e mestrando na FAU USP, propõe uma contextualização histórica para o livro Ruído Branco, de Don DeLillo, recentemente adaptado para o cinema pela Netflix.

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CASTRO, Ulisses. Um contexto para Ruído branco. Resenhas Online, São Paulo, ano 22, n. 255.01, Vitruvius, mar. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/22.255/8765>.


Não creio que o tempo
venha comprovar
nem negar que a História
possa se acabar
Gilberto Gil, O Fim da História

Com esses versos, Gilberto Gil inicia a música O Fim da História, lançada em 1992 (1), como resposta ao artigo “O fim da história?” (2), publicado três anos antes pelo economista estadunidense Francis Fukuyama. A canção de Gil contrapôs o texto de Fukuyama, que, em linhas gerais, defende a vitória do capitalismo sobre o comunismo (3) na Guerra Fria, e o coloca como único sistema político-econômico possível. Para o autor, essa situação significou o fim da história por encerrar o antagonismo que caracterizou o século 20.

Diante do dualismo vencedor versus perdedor proposto pelo economista, é natural que se identifiquem dois estados de espírito opostos: aquele que, após comemorar a vitória, encontra-se livre para seguir adiante, redirecionando seu foco de atenção para outros aspectos da existência; e o que se ressente com a derrota e precisa se concentrar em sua própria reconstrução. É natural, também, que tais estados sejam refletidos nas expressões artísticas das populações afetadas por eles.

Este texto analisa uma dessas expressões, que, estando de alguma forma relacionada com o fim da Guerra Fria, foi produzida por um artista do “lado vencedor”. Trata-se do livro Ruído branco, de Don DeLillo, recentemente adaptado ao cinema. Sem qualquer pretensão de ser uma crítica literária ou cinematográfica da obra, o propósito aqui é contextualizar sua produção e oferecer uma chave de leitura para compreendê-la – uma dentre muitas possíveis.

Em “O fim da história?” Fukuyama afirma que seu argumento é baseado na observação dos acontecimentos globais ocorridos nos dez anos anteriores à sua publicação. De acordo com ele, é possível notar nesse período uma mudança importante na história mundial, defendendo ainda que isso pode ser comprovado pelos inúmeros textos publicados no decorrer da década de 1980 cujo tema era o fim da Guerra Fria. Assim como os pesquisadores das ciências sociais, políticas e econômicas puderam perceber tal mudança e analisá-la por meio de artigos e outros recursos acadêmicos, é razoável pensar que artistas também a identificaram e usaram a arte para discuti-la. É exemplo disso o livro Ruído branco, do escritor nova-iorquino Don DeLillo, lançado em 1985. Para entender como a obra se relaciona com a Guerra Fria, é preciso retomar alguns aspectos fundamentais do conflito.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o mundo passou a viver sob uma dicotomia ideológica – de um lado, o capitalismo ocidental, liderado pelos Estados Unidos; de outro, o comunismo oriental, capitaneado pela União Soviética. Essa divisão trouxe reflexos tanto para as relações entre países, quanto para suas populações, em especial aos povos soviético e estadunidense, que viviam sob o medo constante de um ataque partindo de seu opositor. Para as pessoas desses dois países, a ameaça era iminente e o inimigo era bem conhecido.

Ao longo dos anos 1980, quando o enfraquecimento político e econômico da URSS foi gradativamente se tornando mais evidente, culminando na sua dissolução em 1991 e, consequentemente, no fim definitivo da Guerra Fria, o medo dessas populações foi, pari passu, se dissolvendo. Se, por mais 40 anos, EUA e URSS tiveram inimigos claros – o comunismo e o capitalismo, respectivamente –, o fim da Guerra Fria inaugurou uma situação nova, na qual deixa de fazer sentido a dualidade nós versus eles. O inimigo já não estava mais rigorosamente definido, fazendo com que toda a atenção anteriormente dedicada a ele se encontrasse, agora, sem objeto de foco, deixando ali um espaço vazio.

Em 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck vai tratar dessa temática no livro Sociedade de risco (4), no qual defende que, na sociedade contemporânea, o risco já não vem mais do lado de fora, do outro, mas da própria humanidade, ou seja, o ser humano passa a ser, a um só tempo, agente e vítima de si mesmo. O inimigo deixa de ter um rosto e se torna mais amplo e difuso – passa a ser supranacional, global e de origem nebulosa. Muito embora o livro de Beck tenha como foco a questão ambiental, é possível imaginar, sob essa mesma perspectiva, outros tipos de risco: acidente nuclear, pandemia ou mesmo terrorismo – situações que colocam toda a humanidade em perigo, independentemente de nacionalidade, religião, cor da pele ou classe social.

Se, de um lado, a população estadunidense do pós-Guerra Fria não precisou lidar com a derrota nas décadas de 1980 e 1990, do outro, ela teve que se empenhar para elaborar a realidade desoladora descortinada por Beck. E é nesse contexto que se insere o livro Ruído branco. Lançado alguns meses depois do Desastre de Bopal, na Índia, no qual um vazamento de gás em uma indústria de pesticida atingiu mais de 500 mil pessoas e matou mais de 2 mil – evento que teve grande repercussão mundial –, o romance ganhou ainda mais notoriedade em 1986, após o acidente de Chernobyl.

Tal como nas duas tragédias da vida real, a ficção de DeLillo usa a imagem de uma nuvem tóxica como metáfora para um perigo invisível que pode vir de qualquer direção – bem alinhado à teoria de Beck. A partir disso, é possível estabelecer um paralelo entre o modo como os personagens do livro lidam com esse inimigo onipresente, difuso e pouco conhecido, e a forma como a população estadunidense estava lidando com o arrefecimento e fim da Guerra Fria, que, ao eliminar o antagonista histórico, trouxe a reboque inúmeras implicações psíquicas e comportamentais para tentar preencher o vazio deixado por ele. O problema é que, em um mundo complexo, apartado da simples dualidade ideológica que se observava antes, é bem mais difícil eleger um foco de atenção para descarregar medos e frustrações.

Diante desse cenário, Ruído branco vai tratar de questões fundamentais da existência contemporânea: o consumismo, o uso descontrolado de medicamentos, a alienação diante da televisão, o medo desmesurado da morte, a religião, a desinformação, a obsessão por tragédias, a ascensão de mitos que arrastam multidões, a dependência de automóveis e da tecnologia – qualquer coisa que sirva para preencher um vazio que antes não existia. Com seu romance, DeLillo faz uma análise cultural e comportamental do povo estadunidense que, em grande medida, pode ser aplicada também às populações de outros países.

Como se percebe, as questões levantadas por Ruído branco em 1985, quando o livro foi lançado, ainda estão muito presentes quase 40 anos depois, no lançamento de sua versão cinematográfica, seja porque nunca tenham sido resolvidas, seja porque estavam apenas em estado de latência. É excelente que a obra tenha sido adaptada ao cinema neste momento – uma chance para refletir sobre o nosso contexto atual e do porquê de estarmos lidando com os mesmos problemas. De novo.

notas

NA – Texto adaptado do trabalho final para a disciplina Anarquitetura: arte e arquitetura contemporâneas em diálogo, ministrada pelo professor Guilherme Wisnik no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP. Muitas das ideias aqui apresentadas são baseadas nessas aulas e no livro-texto adotado pela disciplina, Dentro do nevoeiro, de autoria do próprio Wisnik, lançado em 2018 pela Ubu Editora.

1
Trecho da letra de O Fim da História, de Gilberto Gil, que faz parte do álbum Parabolicamará, lançado em 1992. Disponível em: https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/585143/. Acesso em: 15 jan. 2023.

2
Francis Fukuyama (1989). The End of History? The National Interest, n. 16, Summer 1989, p. 3-18. Artigo disponível na internet: FUKUYAMA, Francis. The End of History? <https://bit.ly/3L3rW2p>.

3
Francis Fukuyama alterna entre os termos comunismo e socialismo em seu artigo. Aqui será adotada exclusivamente a palavra comunismo.

4
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo, Editora 34, 2011.

sobre o autor

Ulisses Castro é arquiteto pela UFMG (2006), especialista em Fotografia, Arte e Mediações pelo Instituto de Artes da Unicamp (2022) e mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP.

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Ruído branco

Ruído branco

Don Delillo

1987

255.01 livro / filme
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255

255.02 livro

Oscar Niemeyer, arquiteto brasileiro

Luiz Gustavo Sobral Fernandes

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