Charles Harrison (1942-2009) foi um dos principais historiadores de arte de sua geração, com grande destaque internacional em pesquisa e registro de publicações de prestígio. Realizou contribuições significativas durante seu período como professor da Open University e da Faculdade de Artes Walton Hall, na Inglaterra, entre outras instituições de ensino. Foi um escritor prolífico, autor de livros sobre história da arte e estética, envolvido diretamente na prática da arte, trabalhando em estreita colaboração com artistas. Em Modernismo, Harrison discute as origens do moderno nas artes visuais e o significado do modernismo, termo para o qual existem divergências sobre a situação histórica: teve sua origem em épocas que variam do fim do século 18 ao início do século 20.
Segundo o autor, é comum associar o moderno a um “colapso do decoro tradicional na cultura ocidental, que previamente conectava a aparência das obras de arte à aparência do mundo natural” (p. 9). Então, uma obra de arte que não se assemelhe a algo natural seria qualificada como moderna, tendo como características as tendências de formas, cores e materiais com vida própria e inusitadas. Assim, as primeiras obras de arte evidentemente distinguíveis foram produzidas por artistas de vanguarda europeus das primeiras década do século 20, sendo o cubismo, de 1907, o que assinalou uma ruptura com estilos anteriores, sendo comparado ao Renascimento, em termos de ruptura de paradigmas.
Outras tendências viriam a ser também consideradas arte moderna, como o Fauvismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Vorticismo, entre outros, bem como a arte abstrata, que vinha sendo perseguida por alguns artistas. Harrison considerava a arte moderna um paradoxo, pois, como estas obras, que se mantiveram incompreensíveis e não-atrativas para a maioria das pessoas, poderiam constituir uma arte que desempenhou um papel tão substancial na escolha da autoimagem cultural do século 20? O autor aponta que é se concebe o modernismo desta forma porque era impulsionado pela rapidez das transformações resultantes do progresso tecnológico e pela situação política mundial no início do século 20 – prestes a ocorrerem as duas grandes guerras mundiais, mas que essa descrição do modernismo é inadequada, já que se consideraria a arte do início do século 20 como uma expressão da modernidade sem considerar as preocupações e problemas específicos das práticas e tradições da arte, que podem ter sido elementos de motivação do desenvolvimento de novas formas e estilos. É complicado, segundo Harrison, encarar o modernismo como tendência “natural e inescapável” da cultura, visto que o mesmo era uma opção entre tantas outras e foi adotada apenas por uma minoria intelectual.
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Pablo Picasso, Mulher com um livro,1932, oil on canvas, óleo sobre tela, 130,5 x 97,8 cm
Domínio público [The Norton Simon Foundation]
Já a arte clássica dos gregos e romanos constituía a fundação de uma tradição contínua, e sua realização seguia uma linha lógica de continuidade. Nestas circunstâncias, um artista que concebe a arte moderna como forma alternativa seria levado pela frustração com a rigidez e impessoalidade da gramática e do vocabulário da arte dominante. Apesar disto, o autor apontou anteriormente que mesmo artistas que produziam obras mais abstratas e de difícil compreensão, como Pablo Picasso e Joan Miró, tinham momentos nos quais era perceptível a referência ao classicismo e ao conservadorismo, como ponto de partida: “a prática da arte é necessariamente conduzida no contexto de alguma tradição da arte e em relação a outras obras de arte” (p. 12).
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Joan Miró, Mulher e pássaro na frente do sol, 1968, Guache, giz de cera, pincel e nanquim sobre papel, 98cm x 70cm
Foto divulgação [Opera Gallery]
Harrison trata do termo tradição moderna como um posicionamento do artista que, mesmo mantendo uma relação com a cultura circundante, assumia uma posição contestadora. Aquele que pretendesse se afirmar enquanto artista moderno deveria, no entanto, desviar seu olhar da tradição clássica e ir em busca de outros modelos. No entanto, afirma que se pode reconhecer uma sensibilidade modernista que pode remontar ao período entre o fim do século 18 e o início do século 19, abarcando o Iluminismo europeu, a Revolução Francesa e o surgimento do Romantismo na Alemanha.
Para os iluministas, o pensamento crítico era importante para melhorar a educação e a situação social de uma sociedade, o que faz uma analogia ao pensamento crítico modernista, tão destacado pelo autor. Nesse período, pode-se reconhecer quatro tendências relevantes para a busca da origem do modernismo nas artes: a confiança na possibilidade de melhora nas relações sociais, o que seria alcançado através dos avanços tecnológicos e da adoção dos princípios racionais; a determinação em se romper com os modelos clássicos aristocráticos; a síntese entre a propensão a considerar a experiência direta a verdadeira fonte de conhecimento e o compromisso com o ceticismo em face das crenças e ideias feitas; e, a considerada pelo autor a síntese de todas as tendências, a valorização do papel da imaginação na salvaguarda e realização da liberdade e do potencial humanos, ou seja, a capacidade de imaginar algo em uma ordem diversa é uma condição necessária ao posicionamento crítico.
Harrison traz novamente o pensamento de Clement Greenberg para traçar as diferenças entre o que define como arte pré-modernista e arte modernista, que está no fato de que, no modernismo, as limitações do meio da pintura – a superfície plana, a forma do suporte, as propriedades do pigmento – são tratadas como fatores positivos e que podem ser expostos, o que não acontecia no momento da tradição clássica. O ponto de vista de Greenberg trazia como autocrítica a cultura moderna, pensamento o qual sua origem remontava ao Iluminismo.
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Paul Cézanne, Madame Cézanne em uma poltrona vermelha, 1877, óleo sobre tela, 72,5cm x 56cm
Domínio público [Museum of Fine Arts, Boston]
A transição entre as formas artísticas clássica e moderna foi acontecendo gradualmente, e o autor afirma que a “distinção do temperamento modernista” se tornou clara durante os anos 1860, quando obras de Manet – apontado por Greenberg como o primeiro modernista – atraíram a atenção do público. Durante o Salon de Paris, destinado aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura, em 1863, o júri rejeitou cerca de 60% das obras inscritas, as quais foram exibidas no Salon des Refusés (1), criado pelo imperador Napoleão III, numa atitude aparentemente liberal, para que o público julgasse as obras por si mesmo. É curioso notar que o autor aponta que, entre os artistas que fizeram parte deste grupo, estão pintores que são considerados, atualmente, bastante representativos de seu tempo – entre eles, Cézanne e Manet. Contudo, indica que isto não quer dizer que estes artistas tenham realizado obras que possuam valores modernistas, mas sim que várias delas tenham sido tentativas malsucedidas de realizar pinturas acadêmicas convencionais.
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Carolus Duran, Retrato de Mademoiselle de Lancey,1876, óleo sobre tela, 157cm x 211cm
Domínio público [Petit Palais, Paris]
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Edouard Manet, Mulher com leque, 1862, óleo sobre tela, 90cm x 113cm
Domínio público [Szépművészeti Múzeum, Budapeste]
Mas como distinguir, naquele momento, as pinturas com de vanguarda daquelas simplesmente incompetentes para estarem entre as obras selecionadas para o salão principal? Provavelmente, a maior parte do público que visitou o Salon des Refusés não captou esta diferença. Para responder a esta pergunta, Harrison compara duas obras: Mademoiselle de Lancey (1876), de Carolus Duran, e Mulher com leques (1873), de Edouard Manet. As duas representam uma mulher de corpo inteiro sentadas e com o olhar direcionado ao observador. A primeira, porém, possui características realistas-naturalistas e a segunda representa a personagem mais próxima do espaço pictórico. Harrison traz uma reflexão importante nesta comparação: enquanto a obra de Duran constrói seu tema para que ele seja agradável para quem a observa, a pintura de Manet acentua o envolvimento do espectador com a obra, agindo sobre o espaço já ocupado e levando o espectador a redefinir uma autoconsciência em seus próprios temas, ou seja, pode induzir o espectador a assumir uma posição crítica sobre o tema:
“É como se a pessoa para quem Manet estava pintando fosse alguém para quem a realidade social representada pela mlle. De Lancey não era mais plausível ou atraente. Afirmar isto é também dizer algo sobre onde deveríamos buscar explicação para tais diferenças. É sugerir que não deveríamos pensar apenas em termos de evoluções na arte da pintura, mas também em termos de mudanças sociais e culturais mais amplas – processos e consequências da modernização – Às quais a própria pintura estava fadada” (p. 26).
Harrison ainda destaca que o público que consumia a arte dita moderna estava preocupado em distanciar-se dos gostos e valores da burguesia, mantendo um padrão distintivo, demonstrando o caráter “excepcional” dos seus gostos, e uma arte “difícil e impopular”, como a modernista, era bastante útil neste sentido. A arte modernista seria algo que exigia a interpretação do espectador, posicionando-o com relação aos costumes morais e intelectuais do seu tempo.
E a tradição crítica modernista foi formada a partir do trabalho dos escritores franceses do século 19 que se resguardaram nas obras de Manet e dos impressionistas, assim como o movimento simbolista da década de 1890. Porém, destaca que a caracterização modernista também teve um momento importante a partir dos trabalhos de críticos ingleses e norte-americanos, como Clive Bell, Roger Fry e Clement Greenberg. “Seus escritos deram uma expressão especificamente ‘Modernista’ ao pensamento moderno sobre a arte” (p. 40).
O texto ainda traz o conceito da forma significativa, definido por Clive Bell, que corresponde ao senso de valor associado à resposta à obra de arte, isto é, a emoção que esta provoca no espectador. Para os críticos de arte que seguiam a mesma linha de Bell, a representação pictórica era de fundamental importância para marcar a independência da obra de arte moderna com relação à representação do mundo natural na avaliação dos estilos, ou seja, no Modernismo, a obra de arte moderna adquire “voz” própria. A esta fuga da tradição clássica, soma-se a consciência de um parentesco com a arte dos primitivos – que, para os modernistas, não possuíam tradição nem história.
A nítida ideia de ruptura com a arte tradicional envolvia uma visão utópica do futuro, “baseada numa percepção crítica do presente e justificada por um ideal de potencial humano” (p. 47). No início do século 20, até a década de 1930, estes fatores começam a levar a arte moderna por um caminho cada vez mais figurativo, mais abstrato – do impressionismo ao pós-impressionismo, do cubismo ao abstracionismo – o que significava “caminhar numa linha fina entre o refinamento e a esterilidade” (p. 50). Obras como estas, segundo o autor, marcam a chegada do desenvolvimento modernista em seu aspecto purista, representando a visão de uma liberdade possível a todos, que se sustentava pela confiança na virtude de uma cultura liberal e pela crença no futuro de uma revolução socialista. Nesta época, houve, contudo, uma revalorização dos estilos racionalistas, tanto pela direita política, avessa à cultura modernista, quanto por uma parte da esquerda política, que via na defesa modernista da autonomia da arte a expressão do elitismo burguês.
Para Harrison, a crítica modernista nos deixa a lição de que se deve encarar a obra de arte moderna em seus próprios termos, antes de submetê-la à categorização, interpretação ou julgamento, pois esta está repleta de experiências. Em síntese, o autor descreve com propriedade a evolução do pensamento da vanguarda modernista, no campo das artes visuais, como quebra de paradigmas e construção de um pensamento crítico sobre o modelo clássico dominante. No último capítulo, aparentemente desloca-se do fio da narrativa do restante do texto, por fazer uma introdução à escultura e ao teatro modernos, sem aprofundar-se, mas lança, ao final, questões como a relação entre modernismo e cultura, que estimulam o leitor a buscar mais conhecimento sobre este tema tão instigante. A forma como o autor aborda o tema, que permanece bastante atual, auxilia o leitor a entender como o modernismo se constituiu, além de ajudar na reflexão sobre o surgimento do pós-modernismo, e como este limiar entre os dois momentos é tão importante.
nota
1
Salão dos Recusados, em tradução livre.
sobre os autores
Maria Izabel Rêgo Cabral é arquiteta e urbanista (UFPE, 2008), Master em Design del Prodotto D'Arredo pela Accademia Italiana Di Moda (Firenzi, 2010), mestre em Design (UFPE, 2017) e doutoranda (UFPE). É professora de arquitetura do Instituto Federal do Sertão Pernambucano.
Evandro Alves Barbosa Filho é graduado, mestre, doutor e pós-doutor em Serviço Social (UFPE, 2010, 2013, 2016, 2020), com estágio doutoral no PPG em Sociologia da University of Cape Town, África do Sul, 2015). É professor colaborador do PPG Serviço Social da UFPE e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Sociais e Direitos Sociais – NEPPS/CNPq da UFPE.