Alguns deles são ensaios de texto corrido, mas a maioria reflete a ambição visual dos arquitetos, oferecendo imagens que abreviam sua mensagem; nisso, ao menos, a tradição da literatura arquitetônica que começa com Palladio se mostrou mais fértil do que a proveniente de Alberti. Se não são lidos, os livros de arquitetura são pelo menos vistos.
Luis Fernández-Galiano (1)
Sob a coordenação de membros dos grupos de pesquisa Cidades Possíveis e Topos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, encontra-se em execução um projeto de minicursos sobre livros de arquitetura e urbanismo. Como primeira edição dessa série, foi realizado entre os dias 7 de novembro e 14 de dezembro de 2022 a leitura atenta de Aprendendo com Las Vegas, de Denise Scott Brown, Robert Venturi e Steven Izenour (2). Completados cinquenta anos de seu lançamento, esse livro se mostrou adequado para iniciar o projeto acima mencionado, que visa promover um ciclo de leituras, considerando a discussão em torno de pares tais como teoria e prática, conceito e projeto, presente na reflexão de Luis Fernández-Galiano sobre a natureza dos livros de arquitetura modernos (3).
Publicado originalmente em 1972, Aprendendo com Las Vegas é uma referência incontornável e controversa para a teoria arquitetônica e para os estudos urbanos do final do século passado. Seus leitores – arquitetas, arquitetos, ou mesmo profissionais de outras áreas, favoráveis ou não a seus posicionamentos – o consideram uma das obras fundamentais para entender o pós-modernismo, a cultura arquitetônica contemporânea e seus interesses em temas que convergem para a arquitetura e a cidade cotidianas e populares (4).
Impressiona que a marcação de cinquenta anos de sua primeira publicação tenha passado relativamente despercebida nos debates internacional e local, salvo pela pequena antologia alemã Las Vegas Zeichen, com ensaios e entrevistas de Venturi e Scott Brown, publicada em 2022 (5); pela exposição de fotos de Iwan Baan na American Academy in Rome, com o título “From Las Vegas to Rome” (6), pondo à prova o que os três autores haviam apontado, que a Europa também poderia aprender com as lições de cidades como Las Vegas; e pelo II Simpósio de Arquitetura e Urbanismo, realizado pela Fundação Armando Alvares Penteado – Faap em outubro de 2022, que tomou a publicação do livro como um marco, propondo uma plataforma de discussão sobre a arquitetura pós-moderna, a produção brasileira entre os anos de 1970 e 1980 e as questões de gênero em arquitetura e urbanismo (7).
Semelhante ao evento organizado pela Faap, o minicurso da UnB buscou ampliar a discussão do livro investigando possíveis interlocuções com a produção brasileira dos anos de 1970 e 1980, chegando-se a um necessário diálogo com a chamada “pós-mineiridade” (8). Compreendeu cinco encontros para viabilizar uma apreciação completa de todas as seções do livro. Do ponto de vista metodológico, buscou-se uma aproximação com a chamada leitura atenta, uma técnica e uma estratégia de ensino-aprendizagem tomada de empréstimo da teoria literária (9), considerando seu potencial como instrumento para aprimorar a compreensão de um texto por parte de seu público. Buscou-se não apenas apreender o conteúdo da obra, como também empreender esforços de análise de sua estrutura e de reflexão crítica sobre as escolhas dos autores com relação ao referencial teórico, à construção de conceitos arquitetônicos e à seleção de obras de arte e de arquitetura mencionadas.
No primeiro encontro fez-se uma apresentação das biografias de Denise Scott Brown, Robert Venturi e Steven Izenour, bem como uma breve exposição da fortuna crítica sobre Aprendendo com Las Vegas. Em seguida, como forma de antecipar questões que seriam detalhadas nos encontros seguintes, servindo ainda de exemplo metodológico da leitura atenta, foram analisados dois textos que antecedem a publicação do livro, ambos de 1968: os artigos “A significance for A&P parking lots, or Learning from Las Vegas”, de Robert Venturi e Denise Scott Brown (10), publicado em 1968; e o artigo “On ducks and decoration”, de Denise Scott Brown e Robert Venturi, publicado em 1968, na revista Architecture Canada (11).
Discutiu-se tanto o conteúdo do texto quanto sua forma – a extensão dos artigos, sua estrutura e retórica argumentativa típica dos manifestos – e foi possível refletir sobre problemas de tradução e de reedição dos textos. A título de exemplo, mostrou-se importante observar, na atribuição de autoria dos artigos, a ordem em que os créditos são indicados.
Nos três encontros seguintes, tratou-se do livro propriamente dito, o que significou, necessariamente, reforçar que se estava diante de um texto traduzido para o português a partir de sua segunda edição em inglês, que fora amplamente revisada pelos autores em 1977 (12). Na sequência, foram apontadas as mudanças em relação à primeira edição, no prefácio à edição revisitada, escrito por Denise Scott Brown. Neste texto, a autora faz um balanço sobre a repercussão inicial da publicação do livro desde 1972, apresentando alguns desdobramentos e continuidades, com atenção às questões de autoria e de gênero – mais especificamente, a respeito de sua participação invisibilizada por muitos anos na produção do livro e em sua atuação no escritório de Venturi e Rauch.
Ao longo das apresentações das duas partes de Aprendendo com Las Vegas, surgiram indagações sobre o conteúdo e as escolhas dos autores, a título de exemplo, questionou-se o uso do termo “vernacular”; a necessidade forçosa, na visão do grupo, do paralelo entre Las Vegas e Roma; e a ênfase nos efeitos provenientes das distorções de escala, como uma aproximação com a produção da pop art.
A leitura atenta suscitou no grupo novas questões: constatou-se a necessidade de explorar o projeto gráfico da primeira edição de Learning from Las Vegas, de Muriel Cooper, que atua como um poderoso meio de veiculação da mensagem. Outra constatação possibilitada pela leitura atenta refere-se à participação de Steven Izenour, mais evidente na terceira parte do livro, excluída da edição revisada de 1977 e dedicada a apresentar os projetos de Venturi e Rauch.
Tais apontamentos finais possibilitaram a aproximação dos debates suscitados a partir de Aprendendo com Las Vegas com aqueles propostos por Roger Chartier acerca dos estudos sobre o livro e sua materialidade. O historiador francês propõe uma análise do livro que vá além do seu conteúdo textual, incluindo questões como autoria, edição, design gráfico, circulação e venda, contexto de sua escrita e publicação, diálogos com outras obras, recepção e crítica, entendendo, assim, que a maneira como o objeto livro é produzido influencia o modo como ele é utilizado (13). Como conclusão dos debates, constatou-se a necessidade de explorar mais a produção teórica produzida no Brasil a partir das últimas décadas do século passado e as relações que estabelece com a herança moderna - o que representa importantes desafios aos interessados no tema.
notas
1
Tradução livre do original em espanhol: “Algunos de ellos son ensayos de texto corrido, pero la mayoría atiende a la codicia visual del arquitecto con imágenes que abrevien su mensaje; en esto al menos, la tradición de literatura arquitectónica que arranca de Palladio se ha mostrado más fértil que la proveniente de Alberti. Si no se leen, los libros de arquitectura por lo menos se miran”. FERNÁNDEZ-GALIANO, Luis. Cincuenta libros: el papel del pensamento/Fifty Books: The role of thought. Arquitectura Viva, Madri, n. 200, dez. 2017, p. 18-23 <https://bit.ly/42AxyZR; https://bit.ly/42BN7At>.
2
Participaram onze estudantes de graduação e pós-graduação e profissionais recém-formados da Universidade de Brasília, Unip-Campus Brasília e Universidade Federal da Bahia, aos quais registra-se o agradecimento dos autores: Anne Karoline da Silva del Corzo, Carolina Guida Teixeira, Cristina Besen Muller, Daniel Gutenberg Eloi Anchieta, Davi Alves da Silva, Pedro Henrique Passos de Macedo, Richardson Thomas da Silva Moraes, Ronaldo da Paixão Fonseca, Simone Buiate Brandão, Talita Rocha Reis e Udson de Aguiar Rodrigues.
3
FERNÁNDEZ-GALIANO, Luis. Op. cit.
4
CRUZ, Leandro. Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour publicam ‘Learning from Las Vegas’. In: Cronologia do Pensamento Urbanístico. Salvador, FAUFBA, 2013 <https://bit.ly/42Bk9k7>; JACQUES, Paola Berenstein; et. al. Fazer por desvios: nebulosas do pensamento urbanístico em torno do moderno, do popular e da participação. Modos de fazer mutantes, errantes, desviantes. In: JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva (Org.). Nebulosas do pensamento urbanístico, tomo II: modos de fazer. Salvador, EDUFBA, 2019, p. 20-151 <https://bit.ly/3BqyBzh>.
5
VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise. Las Vegas Zeichen. Berlim, Treppe B, 2022.
6
Exposição “From Las Vegas to Rome: Photographs by Iwan Baan”. Curadora Lindsay Harris. American Academy in Rome Gallery, Roma, 6 out./27 nov. 2022: <https://bit.ly/41Fy9b4>.
7
Disponível no YouTube: II Simpósio de Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, Faap, out. 2022. <https://bit.ly/3M7KZJr>.
8
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. 2a edição. São Paulo, Edusp, 1999.
9
PROSE, Francine. Para ler como um escritor: um guia para quem gosta de livros e para quem quer escrevê-los. Acréscimos à edição brasileira de Italo Moriconi. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
10
VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise. A significance for A&P parking lots, or Learning from Las Vegas. The Architectural Forum, Nova York, v. 128, n. 2, mar. 1968, p. 36-43. Republicação: VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise. Uma significação para os estacionamentos dos supermercados A&P, ou Aprendendo com Las Vegas. NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica 1965-1995. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 337-354.
11
SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert. On ducks and decoration. Architecture Canada, v. 45, n.10, out. 1968, p. 48-49 <https://bit.ly/3M44Xot>. Republicações: SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert (1968). On ducks and decoration. In: OCKMAN, Joan; EIGEN, Edward (Org.). Architecture culture, 1943-1968: a documentary anthology. Nova York: Columbia Books of Architecture/Rizzoli, 1993, p. 447-448; SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert. Gansadas y decoración. In: SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert. Aprendiendo de todas las cosas. Tradução de Xavier Sust e Beatriz de Moura. Coleção Cuadernos Ínfimos n. 24, 2a edição. Barcelona, Tusquets, 1979, p. 83-85.
12
VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Learning from Las Vegas. (edição fac-similar). Cambridge/Londres, The MIT Press, 2017; VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Learning from Las Vegas: the forgotten symbolism of architectural form. 2a edição (16a edição reimpressão da edição de 1977). Cambridge/Londres, The MIT Press, 1998; VENTURI, Robert; SCOTT BROWN, Denise; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da forma arquitetônica. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo, Cosac Naify, 2003 <https://bit.ly/3LYrXW0>.
13
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo, Editora Unesp, 2004.
sobre os autores
Leandro de Sousa Cruz é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – FAU UnB.
Elane Ribeiro Peixoto é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – FAU UnB.
Ana Flávia Rêgo Mota é mestre e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (FAU UnB, 2017; em andamento).
Isadora Banducci Amizo é mestre e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (FAU UnB, 2015; em andamento).
Julia Mazzutti Bastian Solé é mestre em Arquitetura e Urbanismo (FAU UnB, 2021).