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reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

português
A arquitetura habitacional cabo-verdiana é apresentada neste livro por meio de pesquisa das tipologias habitacionais, evidenciando a riqueza do saber local, dos modos de morar e da paisagem construída, constituindo novo debate sobre arquitetura africana.

english
The housing architecture of Cape Verde is presented in this book through research on housing typologies, valuing local knowledge, highlighting the richness of ways of living and the built landscape, constituting a new debate on African architecture.

français
L'architecture de l'habitat du Cap-Vert est présentée dans cet ouvrage à travers des recherches sur les typologies de l'habitat, mettant en lumière la richesse des modes de vie et du paysage bâti, constituant un nouveau débat sur l'architecture africaine.

how to quote

PENHA, Maria Estela Rocha Ramos. Por uma casa cabo-verdiana. Do abrigo ao lar. Resenhas Online, São Paulo, ano 22, n. 259.02, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/22.259/8855>.


A casa é o objeto material que expressa sentidos de quem a constrói, nas suas formas, funções, nas soluções que abarcam referências que denotam símbolos culturais, coloniais, institucionais, econômicos, entre outros. A casa, a arquitetura habitacional, é o objeto de investigação que culminou nesta obra de 326 páginas de trabalho árduo e de grande valor das autoras arquitetas Andreia Moassab (1) e Patrícia Anahori (2). Livro ricamente ilustrado e diagramado, com belas fotografias, cuidadosa qualidade gráfica e editorial, com apelo literário e artístico permeado de poemas como os de Amílcar Cabral ou trechos de músicas eternizadas por Cesária Évora. O livro é esteticamente apurado, ou como as autoras apontam, é um manifesto visual: um livro de afetividades e afetos, de cheiros e sabores, de cores e texturas.

Este livro é diferenciado entre as publicações recentes em arquitetura. É uma obra que trata da arquitetura africana, na particularidade da arquitetura habitacional cabo-verdiana, temática inédita. É publicado em português de Portugal, oferecendo maior acesso aos caboverdianos e aos falantes de língua portuguesa, ao mesmo tempo em que o crioulo (3), língua tradicional cabo-verdiana, costura os capítulos e reforça a identidade local, aconchegando e enaltecendo a força da cultura, significados dos modos de habitar e visões de mundo dos habitantes de Cabo Verde. No país insular, localizado a aproximadamente 500 km da costa ocidental do continente africano, arquipélago com nove de dez ilhas habitadas, as pesquisas que resultaram no livro foram desenvolvidas em seis ilhas (4): Santo Antão, São Vicente, São Nicolau, Sal, Boa Vista e Maio.

Cumprindo o que o título aponta, o panorama da arquitetura habitacional cabo-verdiana é proveniente do trabalho da parceria Cidlot/Uni-CV, entre o poder público, representado pelo órgão Centro de Investigação e Desenvolvimento Local e Ordenamento do Território – Cidlot, e a universidade, a Universidade de Cabo Verde – Uni-CV, na aproximação tão necessária entre universidade e comunidade. O trabalho teve início em 2009 com a realização de oficina preparatória com a participação de equipe multidisciplinar formada por técnicos, especialistas em patrimônio arquitetônico, arquitetos, engenheiros, sociólogos, incluindo as autoras, além dos moradores, sendo publicado com mais de dez anos de trabalho.

Tipologias habitacionais em Cabo Verde
Foto divulgação [Panorama da Arquitetura Habitacional em Cabo Verde, de Andréia Moassab e Patrícia A]

A organização do texto é bastante didática. A primeira parte do livro é dividida em dois capítulos e subcapítulos que apresentam dados gerais comparados entre as seis ilhas estudadas, com abordagens ao patrimônio arquitetônico, eficiência energética nas construções e a identificação de acesso diferenciado por gênero à qualidade das moradias e aos serviços básicos urbanos, sendo as mulheres em piores condições que os homens. O primeiro capítulo consiste na Arquitetura habitacional em Cabo Verde – do abrigo ao lar: kasa e un sbosu di memórias e os traços da casa berdiana: nu labanta un kasa baxu tardi; o segundo trata dos Contributos rumo a uma arquitetura sustentável: A arquitetura habitacional como património histórico (5) e Aportes para uma maior eficiência energética das habitações (6).

A segunda parte do livro é a mais volumosa e é organizada em diversos capítulos, oferecendo a descrição das tipologias habitacionais por ilha e visão global sobre os hábitos de morar predominantes em cada ilha pesquisada: Ocupação territorial e arquitetura como relação indissociável; A partilha da África e as implicações no território cabo-verdiano; A ocupação do território na virada dos séculos 20 e 21; os subcapítulos referentes às ilhas pesquisadas; e ainda as considerações finais (Si ka badu, ka ta biradu) e a apresentação das autoras (Ken ki konta kel kontu li).

A metodologia é cuidadosamente descrita. O trabalho de extensão do qual derivou o livro foi desenvolvido com caráter participativo no levantamento das tipologias por meio da valorização do saber local a fim de delimitar as tipologias habitacionais predominantes. A habitação é evidenciada como expressão cultural para a reflexão sobre a moradia no país, nos seus aspectos qualitativos e culturais, sendo cuidadosamente descrita sob visão etnográfica, em contato direto com os moradores das casas estudadas nas suas organizações espaciais e sociais, nas relações entre familiares e vizinhança. Os levantamentos foram realizados com entrevistas estruturadas, medições dos espaços, temperatura e umidade, fotografias para identificação da ocupação do espaço. Os hábitos de morar e os usos da casa são tratados como dados relevantes e reveladores da cultura da moradia, resultando em diversos registros: croquis, desenhos (plantas, cortes, fachadas), fotografas, cadernos de campo, relatório-síntese com informações que compuseram os diagramas visuais com indicação dos dados.

O resultado do trabalho de extensão, ao classificar, inventariar, descrever e analisar as tipologias habitacionais, das quais foram identificadas cerca de 11 tipologias arquitetônicas predominantes (7) nas seis ilhas levantadas, constitui também forma de compreensão social, espacial e territorial de uma sociedade. As autoras definem que arquitetura é então, um documento histórico. A obra vultosa, dado à escala abrangente, oferece conteúdo importante sobre a relação arquitetura, cultura e o quotidiano não apenas para os cabo-verdianos, tanto arquitetos como moradores em geral, mas também como referência para demais países africanos (e outros países), bem como para países com forte influência da diáspora africana, tendo pontos de tangencia à arquitetura habitacional autoconstruída ou autogerida no Brasil.

As arquitetas, com formações distintas e diferentes pontos de vista a partir de suas próprias vivências em Cabo Verde, oferecem distanciamento salutar para a análise crítica da produção habitacional. No entanto, é notável o vínculo que as aproxima e que revela afetividade ao objeto em questão. O texto leve e fluído é amplamente referenciado, com conceitos revisitados, ponderados e relativizados, denotando aprofundamento teórico, em diálogo inclusive com autores africanos, articulando tipologia arquitetônica e morfologia urbana e como estas constituem a identidade da paisagem construída.

Rua como espaço de socialização, Fundo Figueiras, Boa Vista
Foto divulgação [Panorama da Arquitetura Habitacional em Cabo Verde, de Andréia Moassab e Patrícia A]

A contribuição do livro à diversidade do fazer arquitetônico à maneira africana, na especificidade cabo-verdiana, reconhecendo que arquitetura também é produzida por não arquitetos, enaltece a relação existente com a natureza e no uso de materiais e tecnologias de baixo custo, bem como a valorização do esforço e da criatividade na moradia com rico resultado proveniente dos diversos modelos, formas, cores vibrantes, materiais, texturas, adornos e demais elementos decorativos como expressão cultural-estética na individualização das casas, cujos detalhes nas fachadas marcam singularidade decorativa na leveza dos rendilhados formados pelos elementos vazados ou nos materiais locais como pedrinhas, conchas ou fundos de garrafa no uso expressivo e criativo.

A abordagem técnica e científica é enriquecida de maneira multidisciplinar nas dimensões arquitetônica e territorial, com descrição das características climáticas e topográficas das ilhas de Cabo Verde, parte do Sahel, mediante o entendimento da arquitetura como resposta às condicionantes ambientais, indicando os principais materiais, técnicas e soluções construtivas utilizadas, imbricadas às condições sociais, culturais e económicas de um povo, visando compreender as resultantes tipológicas de habitação do país.

Os aspectos materiais e económicos são destacados pela utilização da cantaria (alvenaria em pedra), técnica portuguesa adotada historicamente pela disponibilidade de matéria prima com tendencia ao desaparecimento, bem como as coberturas de palha. As pesquisas indicam que o bloco-cimento e a telha de fibrocimento são os materiais construtivos mais utilizados atualmente, ainda que gerem custos ambientais e financeiros.

Na relação conforto e habitabilidade, Moassab e Anahori evidenciam outros aspectos para a ideia de conforto e constroem análises, apoiadas na literatura, do conforto em ambientes externos, sob o vento e à sombra, mas também nos ambientes internos, passeando por arquitetos teóricos modernistas nas suas noções de arte, da arquitetura moderna, da funcionalidade da máquina de morar e a impessoalidade destas casas, como espaços aquém do ‘espaço vivenciado’. Enfatizam também especificidades dos sentidos, tato, visão, olfato em relação à presença de objetos de família, de aromas que remetem à memória das emoções, ao afeto, conectando o ser humano à sua casa, na “criatividade e zelo na decoração das casas, mesmo em bairros carenciados”.

Habitação rural em Cabo Verde
Foto divulgação [Panorama da Arquitetura Habitacional em Cabo Verde, de Andréia Moassab e Patrícia A]

O olhar atento assinala diferenças de gênero no uso do espaço e revela as culturas e histórias locais, a interinfluência entre os meios rural e urbano, a organização do espaço doméstico interno e externo, espaços privados e semiprivados, dimensão, ocupação e distribuição espacial, os compartimentos com destaque para cozinha, circulação, varandas e terraços. Os quintais e demais espaços ao ar livre com plantas e animais constituem forte caraterística identitária. E levantando questões que remetem a valores civilizatórios e cosmogonias na diáspora africana, seriam os quintais espaços alinhados a dimensões e práticas ancestrais dos cabo-verdianos?

As autoras propõem diálogos entre as arquiteturas cabo-verdiana e de outras regiões do mundo. Para o leitor brasileiro, haverá facilidade em encontrar familiaridade nos modos de morar. Alguns termos são desconhecidos, como a cobertura de colmo, nomenclatura portuguesa, que é a cobertura executada com pentes de fibra natural (piaçava, sapé, palha santa fé, palha de coqueiro). Ou técnicas incomuns, como a inovadora cobertura em domo encontrada na Ilha de São Vicente, que propicia conforto térmico com ventilação constante pela sucção natural do ar quente para a parte mais elevada da cobertura. Ainda que haja diferenças, há muitas semelhanças, como o espaço exterior doméstico.

A proposta do livro é entrever o país de Cabo Verde pela perspectiva dos habitantes por meio da moradia, sendo a maior parte das análises em habitações autoconstruídas. A casa, a habitação, manifestação mais genuína de uma sociedade, como pontua Aldo Rossi, expressa a cultura de um povo. E este aspecto é também um diferencial do livro. A arquitetura habitacional é aqui refletida com olhar crítico à predominância do conhecimento eurocêntrico no campo da arquitetura, às estruturas espaciais do patriarcado e do racismo. Mas esta reflexão também aponta caminhos para maior sustentabilidade ambiental, econômica e social da habitação em Cabo Verde. As autoras consideram importante a adoção de medidas conjuntas para a geração de renda e pesquisa sobre materiais alternativos para a construção civil.

As arquitetas constatam mudanças radicais nos modos de habitar diante do rápido processo de transformação das habitações com a assimilação e dependência de materiais difundidos pelo mercado da construção civil, aos movimentos migratórios (emigração, imigração), à degradação ambiental, às políticas públicas habitacionais e de preservação, ao mercado imobiliário em Cabo Verde. Destacam a importância do direito à moradia, no sentido do direito de todos e todas a ter acesso a um lar e a uma comunidade seguros para viver em paz, dignidade e saúde física e mental, referindo-se às Observações Gerais n. 4 das Nações Unidas. Nesta linha, as autoras reforçam a importância da adequação cultural da moradia nas políticas nacionais à diversidade geo-histórica e material dos povos.

Por fim, o e-book, livro na versão digital, é disponibilizado gratuitamente pela Universidade de Cabo Verde, possibilitando maior disseminação da publicação, enquanto esperam-se recursos para a versão impressa. Há grande expectativa do lançamento do livro físico para que se possa folhear as páginas com as imagens da rica Arquitetura Habitacional de Cabo Verde.

Casario urbano em Cabo Verde
Foto divulgação [Panorama da Arquitetura Habitacional em Cabo Verde, de Andréia Moassab e Patrícia A]

notas

1
Andréia Moassab é brasileira, arquiteta e urbanista, mestre e doutora pela PUC/São Paulo, Brasil. Viveu em Cabo Verde onde foi coordenadora de investigação do Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento de Território da Universidade de Cabo Verde, de 2009 a 2012. É autora de vários livros, dentre dois premiados e coletâneas publicadas na África do Sul e Alemanha. Desde 2012, é docente do curso de Arquitetura e Urbanismo e dos mestrados em Políticas Públicas e Desenvolvimento e em Integração Contemporânea da América Latina, ambos na Universidade Federal da Integração Latino-Americana – Unila, no Brasil.

2
Patrícia Anahory é cabo-verdiana, arquiteta pelo Boston Architectural College e mestre em arquitetura pela Princeton University, Estados Unidos. Aprofundou a sua pesquisa sobre as práticas construtivas e culturais em diversos países no continente africano, tendo viajado durante quatorze meses pelo continente, com financiamento concedido pelo Prémio Rotch Fellowship (EUA). Foi diretora do Centro de Investigação em Desenvolvimento Local e Ordenamento de Território da Universidade de Cabo Verde, entre 2009 e 2012 e atualmente é curadora de arquitetura, atuando profissionalmente como projetista com obras em vários países.

3
Mesmo não se tendo a real noção dos significados dos dizeres ou ditados na língua crioulo, poderiam ser traduzidos em nota de rodapé de modo a não deixar curioso o leitor estrangeiro.

4
Há expectativas para a produção do segundo volume do livro, contemplando as três ilhas do arquipélago que ainda não foram pesquisadas no levantamento de campo: Santiago, Brava e Fogo.

5
Subcapítulo com contribuição de Ana Pons: Arquiteta, especializada na área de Patrimônio pela Universidade de Florença (Itália) e na de urbanismo pela Universidade de Buenos Aires (Argentina).

6
Subcapítulo com contribuição de Guilherme Mascarenhas: Licenciado em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade de Coimbra e Mestre em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade Técnica de Lisboa (Portugal).

7
Tipologias como unidade mínima da arquitetura: projeto de habitação social (apartamento; casas em linha; casa com varanda coberta); sobrado; casa tradicional (com varanda aberta); casa isolada; casa rural planta em “L”; casa rural com cómodos dispersos (em pedra e colmo); casa em pedra e colmo; casa térrea isolada (com água furtada); prédio/casa de 2 a 3 andares; casa térrea com água-furtada; prédio de 2 a 3 andares (anos 60); casas dúplex em linha; casas em linha (com variante telhado de duas águas e laje); casa térrea com varanda coberta; casa térrea elevada (com e sem uso do porão); casa contemporânea isolada; prédio contemporâneo; casas em linha com varanda aberta; casa tradicional com varanda coberta (variante com laje ou telhado); casa com varanda aberta; casa contemporânea com 01 ou 02 pisos; conjunto de casas; casa com varanda coberta; casa com expansão atual; casa nova 02 pisos.

sobre a autora

Maria Estela Rocha Ramos Penha é arquiteta (UFES), especialista em Tecnologias Ambientais (Universidade Anhanguera), mestre e doutora em arquitetura e urbanismo (PPGAU FAU UFBA). É autora de artigo no livro Por um ensino insurgente em arquitetura e urbanismo (2º lugar Prêmio ABEU 2021. Professora no curso de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário Unime, em Lauro de Freitas-BA, onde coordena o Escritório Modelo de Arquitetura e Interesse Social (EMAIS E+).

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