De dentro e de fora
Expressões do tipo fazer sucesso lá fora são freqüentemente usadas no Brasil para descrever a qualidade do que se produz aqui dentro. De certa forma, é como se fosse necessário esse reconhecimento externo, este certificado internacional de qualidade, superior ao reconhecimento do próprio país. No caso da arquitetura, são freqüentes as duas faces deste dilema: de um lado, a ansiedade de ver-se nesse espelho externo da mídia internacional, de outro a urgência de afirmação da própria brasilidade de nossas demandas, desafios e contextos.
Enquanto revistas francesas, italianas, norte-americanas, espanholas, inglesas e japonesas são devoradas com voracidade pelos arquitetos, publicações nacionais lutam pela pura sobrevivência e não conseguem “vender” mais do que informações locais, traduzindo a posteriori os assuntos de destaque dos chamados “países desenvolvidos”. Diriam alguns que continuamos antropófagos culturais, festivos comedores de tendências estrangeiras, só que agora sem ritual algum.
No entanto, somos também consumidos pelo resto do mundo. Muito já se falou sobre um tempo passado das décadas de 40 e 50 quando éramos, nós arquitetos brasileiros, uns dos mais dinâmicos grupos exportadores de arquitetura. Um tempo onde as revistas nacionais antecipavam aquilo que seria publicado alguns meses depois nas melhores revistas da Europa e dos EUA.
Ao longo do tumultuado século XX, saímos de consumidores passivos de uma modernidade incipiente (até os anos 30) para produtores, ainda que periféricos, de um modernismo elegante (anos 40 e 50) que entra em crise e se isola (anos 60 e 70) para em seguida sermos de novo consumidores, agora de pós-modernismos (anos 80), e enfim re-descobertos na última década com gosto de revivalismo.
Os caminhos da imagem da arquitetura brasileira neste século, aqui dentro e lá fora, funcionam como um jogo de espelhos que refletem e refratam ao mesmo tempo. Refletem no sentido de espelhar à distância aquilo que aqui acontece, devolvendo imagens locais dentro de uma moldura de legitimação. Mas deve-se notar que toda imagem no espelho é invertida e a maioria delas é influenciada pelas cores do próprio espelho, no caso, as culturas outras de onde se fala. Esse olhar estrangeiro filtra aquilo que vê pelas nuanças de sua retina, ora ressaltando um aspecto, ora diminuindo outro. Assim, a imagem refletida é também sempre refratada, deslocada, desviada, distorcida.
Este artigo é resultado parcial de uma pesquisa em andamento que parte desta necessidade de reflexão ou de re-descoberta da arquitetura brasileira, usando esta visão do estrangeiro formada por pouco mais de mil artigos publicados no exterior.
Metodologia
Usando-se o Avery Index da Columbia University como base de dados, uma busca de artigos sobre arquitetura brasileira publicados fora do Brasil gerou um total de 1007 artigos, de 1906 a 2000. Esta abordagem quantitativa serve de pano de fundo para levantar questões relativas à arquitetura brasileira e sua imagem vista através das lentes do estrangeiro. Estas 1007 entradas foram organizadas em uma planilha segundo título do artigo, autor, arquiteto, edifício, cidade, periódico, país, língua e data da publicação. À análise quantitativa das informações deve-se sobrepor a análise qualitativa dos diversos momentos e contextos históricos paralelos, e dos próprios caminhos trilhados pela arquitetura brasileira deste século.
Para que pudéssemos compreender este conjunto de informações, adotou-se uma estratégia de cortes analíticos. Estes cortes ou inserções pretendem reduzir dimensionalmente a complexidade dos dados, trabalhando nesta primeira investigação com apenas uma ou duas variáveis de cada vez. Num momento posterior pretende-se cruzar variáveis para que relações mais complexas entre os arquitetos e as estratégias e políticas editoriais possam ser investigadas.
Primeiro corte: publicações por data
O gráfico ao lado [figura 1] mostra o número total de artigos publicados no exterior para cada triênio desde o início do século. Uma primeira observação revela aquilo que todos já sabemos: que a arquitetura brasileira foi amplamente divulgada no exterior nos anos 40 e 50, menos um pouco nos anos 60, menos ainda nos anos 70 para voltar às revistas em meados dos anos 80 e principalmente nos anos 90. Importante seria analisar esta curva em função de vários fatores estruturais e conjunturais, internos e externos. O primeiro fator conjuntural externo relevante é o final da Segunda Guerra Mundial (1945) quando à demanda reprimida de artigos e revistas de arquitetura vem somar-se o encantamento com a arquitetura moderna brasileira que já vinha ocupando espaços no exterior desde o Pavilhão Brasileiro da feira mundial de Nova York (1939, Costa e Niemeyer). Em meados dos anos 60, o enfoque da arquitetura internacional se volta para uma crítica aos ideais modernistas (Archigram, Venturi, Tendenza, Metabolistas) e a arquitetura brasileira deixa então de fascinar a mídia estrangeira.
Em termos de conjuntura interna, o período de maior qualidade do modernismo brasileiro coincide com o boom de publicações dos anos 50, mas o desaparecimento dos anos 60 e 70 não pode ser tomado simplesmente como perda de qualidade. No final dos anos 80, a conjuntura internacional passa a re-visitar e re-avaliar o modernismo e é grande o número de artigos sobre a arquitetura brasileira neste sentido. Os anos 90 reforçam esta tendência que se soma à visibilidade crescente de arquitetos fora do eixo Rio-São Paulo.
Em termos estruturais, percebe-se que entre um momento e outro as revistas mudaram, o que antes eram predominantemente reportagens sobre obras e projetos diversos dá lugar a números temáticos com textos analíticos acompanhando obras de poucos arquitetos e/ou regiões. A abrangência e universalidade do projeto modernista é substituído pelo enfoque individualista e localizado da contemporaneidade. É interessante notar também que os períodos de crescimento econômico não parecem ter paralelo com a curva de publicações, mas é visível a relação entre um grande número de artigos e os períodos democráticos (1945-1963 e 1985-2000) enquanto a pior depressão (que pode ser traduzida por isolamento/fator nacional ou falta de interesse/fator estrangeiro, ou ambos) se dá justamente no intervalo entre 1964 e 1985.
Segundo corte: país de publicação
Os EUA apresentam o maior número (275) de publicações sobre arquitetura brasileira, com a França tendo também um grande número (203), seguidos por 138 artigos em revistas italianas, 96 em periódicos ingleses e 77 em alemãs. Por ser o Avery uma compilação norte-americana, é possível que o número de artigos em língua francesa, italiana e alemã seja até um pouco maior. Fora o eixo EUA-Europa aparecem a vizinha Argentina e o distante Japão com um número significativo de artigos.
O mapeamento destes dados revela ainda três grandes vazios: Rússia, China e Leste Europeu. Dadas as relevantes tradições arquitetônicas destas regiões, principalmente Hungria, Checoslováquia e Rússia, presume-se que a total ausência de artigos sobre o Brasil nesta amostragem provenientes destes países seja uma deficiência da própria base de dados do Avery.
Mais interessante do que o número absoluto de artigos publicados é perceber a dinâmica destes números no tempo. O gráfico ao lado [figura 2] mostra o número de artigos por país e década e nos revela algumas informações interessantes. Enquanto os EUA aparecem como o primeiro país a publicar significativamente a arquitetura brasileira já em meados dos anos 40 (reflexo da política de boa vizinhança de Truman/Rockfeller), é também o primeiro país a deixar de divulgar a arquitetura brasileira ainda nos anos 50.
Em publicações francesas o interesse cresce um pouco atrasado em relação aos EUA em decorrência provavelmente das dificuldades da guerra e da reconstrução, mas se sustenta até meados dos anos 60, crescendo de novo nos anos 80 e surpreendentemente caindo de novo na última década do século, ao contrário de todos os outros países. Inglaterra e Itália tem um número crescente de publicações nos anos 40 e 50, que em seguida caem quase a zero nos anos 70 e voltam a crescer bastante nos anos 90, juntando-se a publicações espanholas, holandesas, japonesas e argentinas que formam este boom do final do século.
Terceiro corte: local da obra ou projeto no Brasil
O mapeamento no Brasil das obras e projetos citados revela, como era de se esperar, uma forte concentração no eixo Rio-SP [figura 3]. Brasília vem em seguida com Curitiba e Belo Horizonte bem atrás. A partir dos anos 80 percebe-se uma maior diversidade regional, com maior visibilidade para Salvador, Recife, Fortaleza e Manaus, que acompanha de certa forma a re-articulação da prática da arquitetura no país nas últimas duas décadas. Entre os edifícios mais citados, destacam-se dois projetos de Affonso Reidy, o MAM e o conjunto Pedregulho, ambos no Rio de Janeiro. Também bastante publicados no exterior são os edifícios da Pampulha e o Museu de Niterói, de Niemeyer, o SESC da Pompéia de Lina Bo Bardi e o Aeroporto Santos Dumont, dos irmãos Roberto.
Causa estranhamento a ausência dos edifícios de Brasília e de outras referências nacionais como a FAU-USP de Vilanova Artigas ou o MASP de Lina Bo Bardi, ou até mesmo o Ministério da Educação de Lúcio Costa e equipe, entre os mais citados. Pelas características preliminares deste levantamento no Avery Index onde apenas a ficha de cada artigo foi computada, é bastante provável que quando no futuro pudermos examinar com profundidade cada um dos 1007 artigos, outros edifícios venham a se juntar aos mais citados.
Quarto corte: publicações por arquiteto
Para melhor investigar a variável arquiteto, fez-se necessário dividir a totalidade dos nomes em dois blocos que representam de forma aproximada duas gerações brasileiras. Entre a primeira geração de arquitetos modernistas brasileiros, Oscar Niemeyer é sem surpresa o mais citado, em expressivos 121 artigos. Burle Marx, Lina Bo Bardi, Affonso Reidy, Rino Levi, Lúcio Costa e os irmãos Roberto vem em seguida, nesta ordem. É importante notar que enquanto Reidy, Levi, Costa e os irmãos Roberto foram citados principalmente nos anos 40 e 50, Burle Marx e Lina Bo Bardi têm sido ainda mais presentes em publicações recentes. Outros arquitetos desta primeira geração com um número significativo de artigos no exterior sobre suas obras são Jorge Moreira, Sérgio Bernardes, Warchavchik, Artigas, Francisco Bolonha e Atílio Correa Lima. Notar a concentração desta primeira geração no eixo Rio-SP, embora tenham deixado obras por todo o país.
No grupo que arbitrariamente denominei de segunda geração para facilitar a compreensão, o destaque fica com Paulo Mendes da Rocha, Severiano Porto e Marcos Acayaba. Em seguida também citados pelo menos quatro vezes vem Carlos Bratke, Gerson Castelo Branco, Éolo Maia e Sylvio Podestá, João Filgueiras Lima, Walter Toscano, Luis Paulo Conde, Croce-Aflalo-Gasperini, Jaime Lerner, Roberto Montezuma e Zanine. Fica evidente neste grupo a pulverização regional dos arquitetos cujos escritórios representam diversas regiões do país, em contraste com a primeira geração que se concentrava no eixo Rio-SP.
Quinto corte: publicações por autores e periódicos
A variável periódicos mostra uma liderança da revista francesa Architecture d'aujourd'hui com mais de 150 artigos publicados sobre a arquitetura brasileira, seguida de longe pelas inglesas Architectural Review e a italiana Domus. Tomar qualquer tipo de conclusão baseada apenas nesses números seria precipitado, já que nesta fase da pesquisa não dispomos ainda de informações sobre linha editorial ou comercial dos periódicos constantes do Avery Index. O que se percebe comparando os artigos dos anos 50 com os mais recentes é uma mudança na forma como as publicações expõem arquitetura em geral, não apenas a brasileira. Enquanto a maioria dos artigos dos anos 40 e 50 eram mais informativos e expositivos, revelando para o público as obras e projetos desenvolvidos no Brasil e se atendo a informações sobre programa, área, materiais construtivos e funcionalidade, os artigos das últimas décadas são bem mais analíticos. A suposta isenção da reportagem dá lugar à perspectiva crítica assumida pelo autor. Essa tendência coincide com o desenvolvimento da arquitetura como disciplina acadêmica e campo do conhecimento e nesse sentido passa a ser importante então discutir e investigar os autores dos artigos.
Uma breve panorâmica da variável autor revela a presença, também no cenário internacional, dos dois mais importantes críticos brasileiros das últimas duas décadas, Hugo Segawa e Ruth Verde Zein. Entre os dois professores brasileiros, coloca-se o crítico Paul Meurs, com um número significativo de artigos publicados sobre arquitetura brasileira na Holanda. Também entre os que mais publicam estão Carlos Eduardo Comas e Roberto Segre, com vários títulos publicados em periódicos da América Latina. Oscar Niemeyer e Lúcio Costa são os únicos a se destacarem como arquitetos e também como autores.
Considerações finais
Muito tem se falado sobre a crise da arquitetura moderna brasileira dos anos 70 e sobre a vitalidade e diversidade contemporâneas. A análise dos acontecimentos recentes é sempre difícil, pela falta de distanciamento e clareza, mas esse levantamento no Avery Index aponta claramente para uma volta do Brasil às publicações internacionais desde meados dos anos 80.
Das questões panorâmicas aqui levantadas a maioria não é surpresa e vem apenas confirmar empiricamente aquilo que já sabíamos, como o vazio de publicações dos anos 70 e o aumento da diversidade regional das últimas décadas. Mas a questão no meu modo de ver mais significativa e que merece ser debatida com cuidado é o fato de a curva de publicações não encontrar paralelo com a variação do crescimento econômico, mas sim coincidir com os períodos democráticos. Fica para o debate e investigações futuras a tese de que em relação à imagem da arquitetura brasileira no exterior, democracia parece ser a variável mais importante.
notas
1
Uma versão mais abrangente deste trabalho foi apresentada no XVI Congresso Brasileiro de Arquitetos, Colóquio Arquitetura Brasielira Re-descobertas, Cuiabá, setembro de 2000
sobre o autor
Fernando L. Lara é arquiteto, professor da PUC-Minas e doutorando pela University of Michigan