A partir de uma constatação da atual espetacularização das cidades contemporâneas (1) procuro investigar o que considerei como um tipo de micro-resistência a esse processo: a própria experiência urbana e, em particular, a experiência corporal da cidade. Esse tipo de experiência urbana pode ser estimulada por uma prática que chamei de errâncias urbanas (2) que, por sua vez, resulta em diferentes corpografias. Uma corpografia urbana (3) é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem a experimenta.
O processo de espetacularização parece estar diretamente relacionado a uma diminuição tanto da participação cidadã quanto da própria experiência corporal das cidades enquanto prática cotidiana, estética ou artística no mundo contemporâneo. O fio condutor dessas idéias seria então a questão do corpo, ou como dizia Milton Santos, da corporeidade dos homens lentos, ou seja, a simples experiência corporal no cotidiano. Parto da premissa de que o estudo das relações entre corpo – corpo ordinário, vivido, cotidiano (4) – e cidade, pode mostrar alguns caminhos alternativos, desvios, linhas de fuga, micro-políticas ou ações moleculares de resistência ao processo molar de espetacularização das cidades contemporâneas (5).
A redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados (6). Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão. A cidade não só deixa de ser cenário mas, mais do que isso, ela ganha corpo a partir do momento em que ela é praticada, se torna “outro” corpo. Dessa relação entre o corpo do cidadão e esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea.
A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade, o que passamos a chamar de corpografia urbana. A corpografia é uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia), ou seja, parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente – o que pode ser determinante nas cartografias de coreografias ou carto-coreografias (7). Faz-se importante então diferenciar cartografia, coreografia e corpografia. A começar pela diferenciação de cartografia do projeto urbano e a partir daí a corpografia tanto da cartografia quanto da coreografia. Uma cartografia já é um tipo de atualização do projeto urbano, ou seja, uma cartografia urbana descreve um mapa da cidade construída e assim muitas vezes já apropriada e modificada por seus usuários. Uma coreografia pode ser vista como um projeto de movimentação corporal, ou seja, um projeto para o corpo (ou conjunto de corpos) realizar, o que implica, como no projeto urbano, em desenho (ou notação), composição (ou roteiro) etc. No momento da realização de uma coreografia, da mesma forma como ocorre com a apropriação do espaço urbano que difere do que foi projetado, os corpos dos bailarinos também atualizam o projeto, ou seja, realizam o que poderíamos chamar de uma cartografia da coreografia, ao executarem a dança.
Uma corpografia não se confunde, então, nem com a cartografia nem com a coreografia, e também não seria nem a cartografia da coreografia (ou carto-coreografia que expressa a dança realizada) nem a coreografia da cartografia (ou coreo-cartografia, a idéia de um projeto de dança criado a partir de uma pré-existência espacial). Cada corpo pode acumular diferentes corpografias, resultados das mais diferentes experiências urbanas vividas por cada um. A questão da temporalidade e da intensidade dessas experiências é determinante na sua forma de inscrição.
Através do estudo dos movimentos e gestos do corpo (padrões corporais de ação) poderíamos decifrar suas corpografias e, a partir destas, a própria experiência urbana que as resultou. Neste sentido, a compreensão de corpografias pode servir para a reflexão sobre o urbanismo, através do desenvolvimento de outras formas, corporais ou incorporadas, de se apreender o espaço urbano para, posteriormente, se propor outras formas de intervenção nas cidades. O estudo corpográfico pode ser interessante para se compreender as pré-existências corporais resultantes da experiência do espaço, para se apreender as pré-existências espaciais registradas no próprio corpo através das experiências urbanas. Esse tipo de experiência, do corpo ordinário e cotidiano, pode ser estimulada por uma prática que chamamos de errâncias. A experiência urbana mobilizadora de percepções corporais mais complexas poderia ser estimulada por uma prática de errâncias pela cidade que, por sua vez, resultaria em corpografias urbanas equivalentemente mais complexas.
Os praticantes ordinários das cidades atualizam os projetos urbanos e o próprio urbanismo, através da prática, vivência ou experiência dos espaços urbanos. Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. São as apropriações e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano. Para os errantes – praticantes voluntários de errâncias – são sobretudo as vivências e ações que contam, as apropriações feitas a posteriori, com seus desvios e atalhos, e estas não precisam necessariamente ser vistas (como ocorre com a imagem ou cenário espetacular), mas sim experimentadas, com os outros sentidos corporais. Os praticantes da cidade, como os errantes, realmente experimentam os espaços quando os percorrem e, assim, lhe dão “corpo” pela simples ação de percorrê-los. Estes partem do princípio de que uma experiência corporal, sensório-motora, não pode ser reduzida a um simples espetáculo, uma simples imagem ou um logotipo. Ou seja, para eles a cidade deixa de ser um simples cenário no momento em que ela é vivida. E mais do que isso, no momento em que a cidade – o corpo urbano – é experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, sobrevive e resiste no corpo de quem a pratica.
Os espaços menos espetaculares da cidade resistem, assim, nesses corpos moldados pela sua experiência, ou seja, resistem nas corpografias resultantes de sua experimentação, uma vez que esses corpos denunciam, por sua simples presença e existência, a domesticação dos espaços mais espetacularizados, sua transformação cenográfica. As relações perceptivas com a cidade, que derivam das experiências sensório-motoras dos espaços não espetaculares, em suas diferentes temporalidades, formariam então um contraponto à visualidade rasa da imagem da cidade-logotipo, da cidade-outdoor de cenários espetacularizados, desencarnados.
A corpografia urbana de resistência se dá quando um corpo experimenta um espaço urbano não espetacular, e isso ocorre mesmo involuntariamente. Diferentes experiências urbanas podem ser inscritas em um corpo, o que pode resultar em diferentes corpografias. Essas corpografias podem ser cartografadas, mapeadas, representadas ou ilustradas. Alguns artistas já fizeram esse tipo de representação mas são as próprias corpografias, já inscritas nos corpos como corporalidade, que nos interessam e estas não precisam ser representadas para se tornarem visíveis. Os gestos e movimentos do corpo que fez a experiência urbana já revelam suas corpografias. O estudo desses padrões corporais de ação podem resultar na compreensão do espaço urbano experimentado. O interesse principal da corpografia urbana para a compreensão dos espaços estaria tanto na análise das corpografias involuntárias quanto no seu exercício de forma voluntária, ou seja, na incitação de corpografias nos corpos daqueles que pretendem apreender os espaços urbanos de outra forma, de uma forma não espetacular ou de resistência, daqueles que pretendem estudar as cidades de uma forma corporal, ou seja, incorporada.
Uma experiência da cidade vivida (ou de seus espaços opacos segundo Milton Santos) que se instaura no corpo pode ser portanto uma forma molecular (8) (ou micro) de resistência ao processo molar (ou macro) de espetacularização urbana contemporânea, uma vez que a cidade vivida (ou seja, a cidade não espetacularizada) sobreviveria a este processo no corpo daqueles que a experimentam. Estas corpografias urbanas de resistência (9), que são estas cartografias da vida urbana não espetacular inscritas no corpo do próprio habitante, revelam ou denunciam o que o projeto urbano exclui, pois mostram tudo o que escapa ao projeto espetacular, explicitando as micro práticas cotidianas do espaço vivido, as apropriações diversas do espaço urbano que não são percebidas pelas disciplinas urbanísticas mais hegemônicas (preocupadas demais com projetos, projeções a priori, e pouco com os desvios a posteriori), mas que não estão, ou melhor, não deveriam estar, fora do seu campo de ação.
De forma análoga à proposta situacionista (10) de antídoto ao espetáculo através de um procedimento ou “método”, a psicogeografia, e uma prática ou “técnica”, a deriva, que estavam diretamente relacionados – a deriva sendo considerada como um exercício da psicogeografia –, as idéias de corpografia e de errância também poderiam ser vistas enquanto propostas de micro resistência à espetacularização urbana. A corpografia urbana seria uma forma específica, corporal, de psicogeografia, e a deriva uma das formas possíveis, um exercício entre outros, de errância urbana.
Errar, ou seja, a prática da errância, pode ser um instrumento da experiência urbana, uma ferramenta subjetiva e singular, ou seja, o contrário de um método (11) ou de um diagnóstico tradicional. A errância urbana é uma apologia da experiência da cidade, que pode ser praticada por qualquer um, mas que o errante pratica de forma voluntária. O errante é então aquele que busca o estado de espírito (ou melhor, de corpo) errante, que experimenta a cidade através das errâncias, que se preocupa mais com as práticas, ações e percursos, do que com as representações, planificações ou projeções. O errante não vê a cidade somente de cima, em uma representação do tipo mapa, mas a experimenta de dentro, sem necessariamente produzir uma representação qualquer desta experiência além, é claro, das suas corpografias que já estão incorporadas, inscritas em seu próprio corpo. Esta postura crítica e propositiva com relação à apreensão e compreensão da cidade por si só já constitui uma forma de resistência tanto aos métodos mais difundidos da disciplina urbanística – como o tradicional “diagnóstico”, baseado principalmente em bases de dados estatísticos, objetivos e genéricos – quanto ao próprio processo de espetacularização das cidades contemporâneas.
A questão central do errante estaria na experiência ou prática urbana ordinária, diretamente relacionada com a questão do cotidiano. Michel de Certeau, em seu livro A invenção do cotidiano, nos fala daqueles que experimentam a cidade, que a vivenciam de dentro, ou “embaixo” como ele diz, se referindo ao contrário da visão aérea, do alto, dos urbanistas através dos mapas. Ele os chama de praticantes ordinários das cidades. De Certeau nos mostra que há um conhecimento espacial próprio desses praticantes, ou uma forma de apreensão, que ele relaciona com um saber subjetivo, lúdico, amoroso. O autor nos fala de uma cegueira que seria exatamente o que garante um outro conhecimento do espaço e da cidade. O estado de espírito errante pode ser cego, já que imagens e representações visuais não são mais prioritárias para essa experiência cotidiana. A imagem espetacular, ou o cenário, só necessita do olhar.
A experiência urbana cotidiana pode se dar de maneiras bem diferentes mas é possível se observar três características, ou propriedades, mais recorrentes nas experiências de errar pela cidade, e que estão diretamente relacionadas: as propriedades de se perder, da lentidão e da corporeidade. Talvez a característica mais evidente da errância seja a experiência de se perder, ou como tão bem disse Walter Benjamin, da educação do se perder. Enquanto o urbanismo busca a orientação através de mapas e planos, a preocupação do errante estaria mais na desorientação, sobretudo em deixar seus condicionamentos urbanos, uma vez que toda a educação do urbanismo está voltada para a questão do se orientar. Em seguida, pode-se notar a lentidão dos errantes, o tipo de movimento qualificado dos homens lentos, que negam o ritmo veloz imposto pela contemporaneidade. E por fim, a própria corporeidade destes, e, sobretudo, a relação, ou contaminação, entre seu próprio corpo físico e o corpo da cidade que se dá através da ação de errar pela cidade. A contaminação corporal leva a uma incorporação, ou seja, uma ação imanente ligada à materialidade física, corporal, que contrasta com uma pretensa busca contemporânea do virtual, imaterial, incorporal. Esta incorporação acontece na maior parte das vezes quando se está perdido e em movimento lento.
No processo, que vai do se perder ao se (re)orientar, podemos identificar três relações espaço-temporais (temporalidades) distintas : orientação, desorientação e reorientação. Estas idéias também podem ser vistas através das noções de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. O desterritorializar seria o momento de passagem do territorializar ao reterritorializar. O interesse do errante estaria precisamente neste momento do desterritorializar, ou do se perder, este estado efêmero de desorientação espacial, quando todos os outros sentidos, além da visão, se aguçam possibilitando uma outra percepção sensorial. A possibilidade do se perder ou de se desterritorializar está implícita mesmo quando se está territorializado, e é a busca desta possibilidade que caracteriza o errante. Enquanto os errantes buscam a desorientação, a desterritorialização, e se reterritorializam, através da própria prática da errância, os urbanistas e as disciplinas urbanísticas em geral buscam, na maioria das vezes, a orientação e a territorialização, e assim, tentam anular a própria possibilidade de se perder nas cidades (12). A propriedade de se perder seria uma das maiores características do estado de corpo errante, esta propriedade é diretamente associada a outra, também relativa ao movimento: a lentidão. Quando estamos perdidos, quase automaticamente passamos para um movimento do tipo lento, uma busca de outras referências espaço-temporais, mesmo se estivermos em meios rápidos.
Para Deleuze e Guattari, a lentidão não seria, como pode-se acreditar, um grau de aceleração ou desaceleração do movimento, do rápido ao devagar, mas sim um outro tipo de movimento: “Lento e rápido não são graus quantitativos do movimento, mas dois tipos de movimento qualificados, seja qual for a velocidade do primeiro, e o atraso do segundo” (13). Os movimentos do errante urbano são do tipo lento, por mais rápidos que sejam, nesse sentido a errância poderia se dar por meios rápidos de circulação, mas esta continuaria sendo lenta. O estado de espírito errante é lento mas isso não quer dizer que seja algo nostálgico ou relativo a um passado quando a vida era menos acelerada, como buscam os adeptos do neo-urbanismo. Porém, esta lentidão também pode ser vista como uma crítica ou denúncia da aceleração contemporânea, aquela buscada pelos urbanistas neo-modernos, ávidos de meios de circulação cada vez mais velozes. Entretanto, a lentidão do errante não se refere a uma temporalidade absoluta e objetiva, mas sim relativa e subjetiva, ou seja, significa uma outra forma de apreensão e percepção do espaço urbano, que vai bem além da representação meramente visual. São os homens lentos, como dizia Milton Santos, que podem melhor ver, apreender e perceber a cidade e o mundo, indo além de suas fabulações puramente imagéticas.
Quando Milton Santos cita os homens lentos, ele se refere principalmente aos mais pobres, aqueles que não têm acesso a velocidade, os que ficam à margem da aceleração do mundo contemporâneo. O errante urbano seria sobretudo um homem lento voluntário, intencional, consciente de sua lentidão, e que, assim, se nega a entrar no ritmo mais acelerado (movimento do tipo rápido), de forma crítica. Sem dúvida, como nos indica Santos, os mais pobres, mesmo de maneira não voluntária, experimentam ou vivenciam mais a cidade do que os habitantes mais abastados, pois estes obrigatoriamente possuem o hábito da prática urbana no cotidiano, e assim desenvolvem uma relação física mais profunda e visceral com o espaço urbano (14). Os moradores de rua por exemplo poderiam ser vistos como homens lentos contemporâneos, pois são os que efetivamente praticam a cidade uma vez que habitam literalmente o espaço público urbano. O errante, diferentemente daquele que mora nas ruas por necessidade, erra por vontade própria, mas segue as formas de apropriação do espaço dos mais pobres, na maneira como estes reinventam, por necessidade, suas formas próprias de vivenciar e experimentar corporalmente a cidade.
A lentidão, enquanto propriedade da errância, da mesma forma que tem relação com a desorientação do se perder, está diretamente relacionada com a questão do corpo, ou como dizia Santos, da corporeidade (15) dos homens lentos. Esta corporeidade lenta seria uma determinação, ou um estado de corpo, que também nasce da desterritorialização – ou seja, também está relacionada a uma temporalidade própria (como o se perder e a lentidão). A cidade, através da errância, ganha também uma corporeidade própria, não orgânica (16), – que se opõe a idéia da cidade-organismo, que está na base da disciplina urbana e da própria noção de diagnóstico urbano – esta corporeidade urbana outra se relaciona, afetuosamente e intensivamente, com a corporeidade do errante e determina o que pode ser chamado de incorporação (17). A incorporação, diretamente relacionada com a questão da imanência, seria a própria ação do corpo errante no espaço urbano, a efetivação da sua corpografia, através da errância que, assim, também oferece uma corporeidade outra à cidade.
Apesar da íntima relação entre as principais propriedades da errância – desorientação, lentidão, corporeidade – , é a relação corporal com a cidade, na experiência da incorporação, que mostra de forma mais clara e crítica, o cotidiano contemporâneo cada vez mais desencarnado e espetacular. Esse encontro de determinações de corporeidades, do errante com a cidade – ou incorporação (relação do corpo com a ação, experiência corporal “outra”) – explicita a redução da cota de experiência urbana direta na contemporaneidade (18). As experiências de investigação do espaço urbano pelos errantes, através das errâncias e de suas decorrentes corpografias urbanas, apontam para a possibilidade de um urbanismo menos desencarnado, mais incorporado, ou seja, um pensamento e uma prática do urbanismo que utilizaria as errâncias e corpografias enquanto formas possíveis de micro resistência ao pensamento urbano hoje hegemônico, espetacularizado e espetacularizante.
Como vimos, o processo de espetacularização está diretamente relacionado ao empobrecimento da experiência na contemporaneidade. No urbanismo contemporâneo, a distância, ou descolamento, entre prática profissional e a própria experiência da cidade, se mostra desastrosa ao separar o espaço urbano de seu caráter corporal e sensorial. As corpografias urbanas voluntárias, decorrentes das errâncias, através da própria experiência ou prática da cidade, questionam criticamente os atuais projetos urbanos contemporâneos, ditos de revitalização urbana, que vem sendo realizados no mundo inteiro segundo uma mesma estratégia – genérica, homogeneizadora e espetacular – que pode ser chamada de branding urbano, ou seja a produção em série da cidade-imagem de marca. Ao provocar e valorizar a experiência corporal da cidade, as errâncias (desvios da lógica espetacular) poderiam nos ensinar a apreender corporalmente a cidade, ou seja, a (re)construir e, sobretudo, a analisar nossas próprias corpografias, o que efetivamente poderia nos levar a uma reflexão e uma prática mais incorporada do urbanismo. Contra o urbanismo espetacular hoje hegemônico, o estudo das corpografias urbanas, utilizando o próprio corpo enquanto resistência, principalmente através das errâncias, nos sugere o que poderia vir a ser um antídoto à espetacularização: um urbanismo “incorporado”.
notas
1
Ver nosso artigo “Espetacularização urbana contemporânea”. In FERNANDES, Ana; BERENSTEIN JACQUES, Paola. Territórios urbanos e políticas culturais, Cadernos do PPGAU/FAUFBA, número especial, Salvador, 2004.
2
Ver nosso texto “Elogio aos errantes” in JEUDY, Henri-Pierre; BERENSTEIN JACQUES, Paola. Corpos e cenários urbanos. Salvador, EDUFBA, 2006 (disponível em http://www.laboratoriourbano.ufba.br/territorios.htm). Ver também o breve histórico das errâncias urbanas em: BERENSTEIN JACQUES, Paola. “Elogio aos errantes. Breve histórico das errâncias urbanas”. Arquitextos, n. 053. São Paulo, Portal Vitruvius, out. 2004 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp256.asp>. De Henri-Pierre Jeudy, ver também JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005.
3
A 1ª versão do texto “corpografias urbanas” – com ênfase na idéia do corpo enquanto resistência – foi publicado no Cadernos do PPG-AU especial “Resistências em espaços opacos”, Salvador, 2007. Um desenvolvimento dessas idéias está em andamento – com ênfase na idéia da corpo enquanto fenótipo extendido – em co-autoria com Fabiana Britto (Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA) e será publicado no Cadernos do PPG-AU especial “Paisagens do corpo” (no prelo). Gostaria de agradecer Fabiana Britto pela leitura atenciosa, sugestões e correções nas diferentes versões deste texto.
4
Ou seja, o corpo enquanto possibilidade de resistência à espetacularização, o oposto do corpo mercadoria, imagem ou simulacro, produto da própria espetacularização contemporânea.
5
Ver encontro "corpocidade", Salvador, out. 2008. Ver www.corpocidade.dan.ufba.br.
6
Ver DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
7
Como no caso do “Corpo de dança da Maré”, ver em BERTAZZO, Ivaldo; VARELLA, Drauzio; BERENSTEIN JACQUES, Paola. Maré, vida na favela. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002. A corpografia resultante da experiência corporal dos moradores do complexo de favelas da Maré estabelece as condições disponíveis naqueles corpos para a prática de novas experiências corporais – as coreografias de Ivaldo Bertazzo, por exemplo, ou seja, a prática de vida no ambiente da favela inscreveu-se no corpo como memória de experiência urbana que configurou esses corpos caracterizando uma disponibilidade física singular. Ver o vídeo: Quando o passo vira dança, Rio de Janeiro, 2002 <http://www.youtube.com/watch?v=7I6CDo-Z70Y>.
8
Ver diferenciação de molar e molecular por Félix Guattari e Suely Rolnik em GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica, cartografias do desejo. Petrópolis, Vozes, 1986.
9
A (não) experiência urbana de espaços mais luminosos, cenográficos ou espetaculares também podem gerar corpografias (também espetaculares, superficiais), mas o que interessa aqui são as corpografias enquanto possibilidade de resistência à espetacularização, ou seja, o oposto do corpo mercadoria, imagem ou simulacro, produto da própria espetacularização contemporânea.
10
Ver IS, BERENSTEIN JACQUES, Paola (org.). Apologia da deriva. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003. A psicogeografia foi definida pelos situacionistas como um “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. E a deriva era vista como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência”. Ficava claro que a deriva era o exercício prático da psicogeografia, ou seja, uma técnica urbana situacionista para tentar desenvolver na prática a idéia de construção de situações através da psicogeografia. A deriva seria uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar sem rumo. A psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do caminhar na cidade. A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas pelas derivas situacionistas.
11
Segundo Deleuze e Guatarri: “Um ‘método’ é o espaço estriado da cogitatio universalis, e traça um caminho que deve ser seguido de um ponto a outro. Mas a forma de exterioridade situa o pensamento num espaço liso que ele deve ocupar sem poder medi-lo, e para o qual não há método possível, reprodução concebível, mas somente revezamentos, intermezzi, relances.” In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. São Paulo, Editora 34, 1996, p. 47.
12
O que, felizmente, nunca é completamente obtido (a anulação dessa possibilidade do se perder). Entretanto, o extremo do se perder estaria diretamente associado a questões puramente psicológicas, e até mesmo, a tipos específicos de loucura ou mania (dromomania).
13
Movimento e velocidade também precisariam ser diferenciados: “o movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade; a velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo, velocidade”. In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Op. cit, p. 52.
14
Ver essa questão de forma mais específica no livro coletivo Maré, vida na favela (op. cit.).
15
Vários autores para se opor a questão do “corpo”, principalmente no campo das artes, vão propor a idéia de “corporeidade”, às vezes mesmo como um “anticorpo”, como Michel Bernard, que define a corporeidade como “espectro sensorial e energético de intensidades heterogêneas e aleatórias”. In BERNARD, Michel. De la corporéité fictionnaire. In Revue Internationale de Philosophie, n. 4/2002 (Le corps).
16
Sobre essa idéia ver a noção de Corpo sem Orgãos (CsO) que Gilles Deleuze define a partir do termo de Artaud: “ O corpo sem órgãos é um corpo afetivo, intenso, anárquico, que só têm pólos, zonas, limites ou variações. É uma potente vitalidade não orgânica que o atravessa”. DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris, Minuit, 1993, p. 164.
17
Termo utilizado pelo artista Hélio Oiticica: “Incorporação do corpo na obra e da obra no corpo. In-corporação” (fala de Oiticica no filme HO de Ivan Cardoso), ver BERENSTEIN Jacques, Paola. Estética da Ginga. Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2001; ou o artigo “ Por uma inCORPOrAÇAO” in ERR, Belo Horizonte, nov. 2003.
18
Sobre a atual incapacidade de traduzir a existência em experiência ver AGAMBEN, Giorgio. Infância e história, a destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2005 (original de 1978) e o clássico BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo, Edusp, 1986 (original de 1933).
sobre o autor
Paola Berenstein Jacques é arquiteta-urbanista, professora do PPGAU-FAUFBA e pesquisadora do CNPq.