Por que associar Lina Bo Bardi ao tropicalismo? Lina foi tropicalista? Penso que não e que sim. Comecemos pelo não.
Lina chega ao Brasil em 1946, logo após o final da Segunda Grande Guerra. Nos anos anteriores, durante a guerra, havia trabalhado em Milão com o arquiteto Gió Ponti em projetos de interiores, exposições e em revistas, como ilustradora e articulista. Só não havia feito arquitetura stricto sensu, porque a Itália do início dos anos 40 estava marcada pela destruição do que pela construção.
Nascida e criada em Roma, Lina se forma arquiteta pela Escola Politécnica nos duros anos do regime fascista de Mussolini. Recém-formada, deixa a família e segue para Milão – pólo de resistência cultural – em busca de realização profissional, luta política e liberdade. Em pouco tempo inicia sua militância na resistência ao nazifascismo ingressando na juventude comunista.
O trabalho no escritório de Gió Ponti a introduz num ambiente intelectual e artístico de vanguarda, em meio ao movimento racionalista da arquitetura, ao nascimento do cinema neo-realista, à literatura de resistência, aos artistas surrealistas, aos dadaístas... Além de Ponti, Lina convive com Pagano, De Chirico, Elio Vitorini, Bruno Zevi e Roberto Rosselini, entre outros. Torna-se, assim, filha legítima das vanguardas históricas européias, que tinham em seu ideário a ruptura como palavra de ordem. Ruptura com os valores do passado, com as tradições, com a própria história, numa incansável busca do novo. Em várias ocasiões, até sua morte, em 1992, Lina dirá que “a verdadeira vanguarda do início do século XX, aquela russa, francesa, ... internacional, não havia ainda perdido a metáfora”.
Dado esse quadro sucinto da formação de Lina, voltemos ao Brasil para apontar as enormes diferenças de origem e proposições que separavam as vanguardas da Europa das do Brasil – terra que Lina abraça como sua até o fim da vida.
Essa reflexão é necessária porque a vanguarda brasileira do começo do século XX, de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e todo o grupo, foi a grande referência dos tropicalistas dos anos 60. O Movimento Antropofágico da Semana de 22 não foi um mero desdobramento ou um caso regional do fenômeno definido pelas vanguardas européias, como quis a crítica conservadora da época.
Em seu ensaio sobre memória e globalização, o filósofo Eduardo Subirats define bem os diferentes movimentos: “As vanguardas históricas européias expressam, em primeiro lugar, uma desesperadora crise civilizatória local, definida pela irrupção histórica das massas proletárias, pela liquidação da cidade tradicional, pelas guerras e a violência industrial. Semelhante crise não se dava nas culturas da América Latina,... onde o industrialismo era recebido como uma promessa de riqueza social, e não como uma realidade angustiante e ameaçadora que augurava um século de destruição ambiental e extermínio étnico. [...] A vanguarda européia exprimiu fundamentalmente uma angústia existencial com respeito a um passado que, de um lado, a afogava e, de outro, temia perder. Ninguém exprimiu essa dramática vontade de liquidar violentamente o passado tão bem como Marinetti ou Mondrian. Já artistas como Rivera, Huidobro, Oswald de Andrade ou Mário de Andrade, foram ao encontro das tradições antigas, das línguas e símbolos populares, como fontes de renovação, para criar, num diálogo ininterrupto com elas, o novo, o futuro. [...] Paradoxalmente, o novo era o que estava dado, o que existia desde sempre, visto que o espírito libertário, a inovação sem fronteiras, a surrealidade e o mundo de sonhos já existiam na América muito antes da chegada dos europeus. O novo era o velho, e só faltava desnudá-lo” (1).
Com essas questões na ordem do dia, nossos pioneiros modernos de São Paulo e do Rio de Janeiro entram em cena e colocam o país no circuito cultural mundial. Foi um importante passo para a superação do período colonial na cultura e nas artes brasileiras, incluindo aí a arquitetura. Assim, o movimento moderno brasileiro, apesar de fortemente influenciado pelo movimento europeu e contemporâneo a ele, desenvolve fisionomia própria e bastante distinta daquele. Além do mais, seguiu seu rumo a pleno vapor sem os traumas da guerra. E é nesse outro modernismo que Lina mergulha quando chega ao Brasil – com toda a erudição de sua formação européia –, em busca de liberdade de criação e da possibilidade de construção de um mundo novo para um povo novo.
Nesse sentido, a Lina européia não era tropicalista e nem poderia ser. Mas e a Lina “brasileira”, aquela que se reinventa ao descobrir o Brasil? Voltamos à pergunta do início: Lina foi tropicalista? A resposta agora é: sim, Lina foi uma tropicalista pioneira.
Ao desembarcar aqui em 1946, Lina é recebida pela nata da vanguarda artística e intelectual brasileira, como Lúcio Costa, Burle Marx, Oscar Niemeyer, Portinari, Oswald de Andrade, Vinicius de Morais e tantos outros. No Novo Mundo ela se apaixona pela exuberância da natureza tropical – a verdura – e pelo povo brasileiro, com sua descontração e um certo quê de ingenuidade, “ainda não contaminado pela soberba e pelo dinheiro”, como costumava dizer.
Começa então a realizar seus primeiros projetos arquitetônicos, como a Casa de Vidro, e uma rica produção de mobiliário. Em todos esses projetos já se vê claramente o impacto do encontro de sua formação erudita com a busca das fortes raízes culturais brasileiras: racionalismo e economia de meios com falta de recursos tecnológicos, Bauhaus no trópico, asas à imaginação. Lina estava definitivamente na América do Sul. Não mais carregava nos ombros o peso do Velho Mundo. Não precisava mais lutar contra o passado opressivo de milênios de história. Aqui tudo era novo ou por inventar. Aqui sua luta seria travada em outro front.
Em 1951 Lina se naturaliza brasileira, abrindo mão da cidadania italiana e adotando como terra natal todas as cidades brasileiras, “das mais ricas e lindas às mais pobres e insignificantes”. No final dos anos 1950, vai para a Bahia e descobre lá um Brasil até então desconhecido da maioria dos brasileiros. Era o Brasil da pobreza de meios e bens materiais, por um lado, e rico de seiva criativa e alegria de viver, por outro. O país da “aristocracia do povo”, do povo novo. Viaja por todo o Nordeste brasileiro. Atua como arquiteta, antropóloga, artista, cenógrafa, designer e jornalista. Converte-se numa agitadora cultural por excelência.
Nesse momento a Bahia passava por uma intensa transformação no campo cultural, liderada pela universidade do reitor Edgard Santos, que tinha em seus quadros intelectuais de grande importância, alguns europeus que, como Lina, haviam adotado o Brasil para desenvolver seus projetos com a liberdade que a Europa da época não oferecia. Estavam ali o maestro Koellreuter, nos Seminários Livres de Música, Yanka Rudska, na Escola de Dança, Martim Gonçalves, na Escola de Teatro, Pierre Verger, na fotografia e na etnografia, Agostinho da Silva, na literatura e na filosofia, entre outros.
Com apoio do governo do estado, Lina funda e dirige o Museu de Arte Moderna da Bahia e, em seguida, o Museu de Arte Popular, no Solar do Unhão. Lado a lado, a chamada “alta cultura” – com exposições memoráveis de Van Gogh, Renoir, Degas – e a chocante crueza da produção popular brasileira, dos artistas anônimos. Nas palavras de Lina, “a produção de uma massa que inventa, que traz uma contribuição indigesta, seca, dura de digerir [...] onde cada objeto risca o limite do nada da miséria”. Em meio a tudo isso, os artistas locais, os estudantes e o povo.
E é nesse ambiente efervescente, de uma Bahia que tomava a dianteira cultural no Brasil, que se forma a geração de tropicalistas. Todos freqüentavam as exposições de Lina. Glauber Rocha foi seu assistente no Museu de Arte e ali escreveu o roteiro do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Rogério Duarte, Hélio Eichbauer relembram até hoje o forte impacto que ela teve no cenário baiano. Pela primeira vez o Brasil pôde ver num museu, com dignidade, a obra do seu povo pobre e oprimido, a revelar suas entranhas e sua enorme capacidade criadora. Afrontavam-se preconceitos e barreiras culturais num ambiente de elite.
Em 1963, Lina apresenta a exposição inaugural do Museu de Arte Popular, intitulada “Nordeste”. Com ela, dá seu golpe fatal, mostrando que beleza, sofisticação, inteligência, criatividade e domínio técnico não eram atributos exclusivos e nem posse da classe dominante ou dos detentores do poder econômico. Era um gesto estético e político. Estaria ali, na escolha e na maneira de expor, no questionamento da existência de alta e baixa culturas, na busca de uma civilização construída sob novos paradigmas, o prenúncio do movimento tropicalista.
Exuberância, choque, revelação e recriação compunham a essência desse movimento, e estavam também presentes em todas as exposições de Lina, em forma e conteúdo. Eram anjos barrocos ao lado de ex-votos; folhas de pitanga no piso, como nos terreiros de candomblé; dourados de seda contracenando com o mais primitivo barro; colchas de retalho do Brejo da Madre de Deus revelando nossas heranças das finas técnicas do reino do Daomé; trajes de orixás quase parangolés. Nada de folclore, nada de gadgets, nada de romantismo, nada de bagaço; rigor, simplicidade, dignidade e sofisticação acima de tudo.
Lina então foi uma tropicalista?
Ela foi a mãe de um certo tropicalismo. A resposta é não e sim, sim e não, e isso não faz a menor diferença. O que importa é que Lina Bo Bardi ajudou a construir o ideário tropicalista, formou uma geração e lutou nesse nobre front contra uma das mais perversas de nossas heranças do passado colonial escravocrata: o complexo de inferioridade que, ainda hoje, habita nossas mentes.
notas
1
SUBIRATS, Eduardo. A penúltima visão do paraíso. São Paulo, Studio Nobel, 2001, p. 156-7.
sobre o autor
Marcelo Ferraz é arquiteto formado pela FAU-USP em 1978, é sócio do escritório Brasil Arquitetura, onde tem realizado vários projetos com premiações no Brasil e exterior. É também sócio fundador da Marcenaria Baraúna, onde desenvolve projetos de mobiliário, desde 1986.