“Disseram no Brasil que a forma do edifício ecoa a arquitetura brasileira dos anos cinqüenta".
Christian de Portzamparc (1)
Inaugurada e inclusa, a Cidade da Música do Rio de Janeiro transformou-se, inesperadamente, numa campeã de matérias jornalísticas. Infelizmente, nada do que tem sido escrito recentemente diz respeito às qualidades (ou à eventual falta de qualidade) do projeto arquitetônico, de autoria do arquiteto francês Christian de Portzamparc (Casablanca, 1944). Por regra, a imprensa tem abordado o grande complexo cultural sob um único prisma: as supostas irregularidades cometidas ao longo de sua construção. Bem entendido, tais matérias não são assinadas por arquitetos. Como de costume, os arquitetos estão – salvo raríssimas exceções (2) – calados.
Embora previsível, o mutismo do meio arquitetural brasileiro com respeito à Cidade da Música do Rio de Janeiro é particularmente incômodo, além de eloqüente. Pois, do ponto de vista da arquitetura brasileira, esse não é – ou pelo menos não deveria ser visto como – um projeto qualquer.
Arquitetos brasileiros gostam de pensar que, diferentemente de tudo ou quase tudo que se fez no Brasil em matéria de arte moderna, a chamada “arquitetura moderna brasileira” foi uma realização estética e cultural verdadeiramente excepcional, desde logo em virtude de sua festejada repercussão internacional. É isso, pelo menos, o que vimos repetindo desde 1943, ocasião em que o Museu de Arte Moderna de Nova York/MoMA supostamente se rendeu à força e à originalidade da arquitetura nacional.
Sabe-se hoje o quanto essa percepção se deveu à força das idéias do grande campeão da arquitetura moderna brasileira, Lucio Costa (1902-1998). O fenômeno não passou despercebido ao tirocínio da historiografia da arquitetura brasileira. Desde meados da década de 1990, ela tem sido bastante pródiga em identificar (em alguns casos, de denunciar) a “trama narrativa” ou a “montagem discursiva” da arquitetura moderna brasileira, localizando nos enunciados de Costa a origem do tropo discursivo (3).
Por outro lado, a historiografia brasileira parece pouco atenta a uma outra dimensão do fenômeno arquitetura moderna brasileira: como a percepção ou imagem dessa arquitetura marcou uma infinidade de arquitetos europeus formada ao longo dos anos 1960 (4).
Minha própria percepção do fenômeno se deu fora do Brasil, no início dos anos 1990, quando trabalhava no escritório parisiense de Christian de Portzamparc. De imediato, chamava a atenção como, naquele ambiente de trabalho, eram constantes as menções a arquitetos brasileiros. Niemeyer, Reidy, Costa – esses e outros nomes povoavam conversas e projetos. E isso sem falar dos nomes que eu mesmo desconhecia. Lembro de uma menção a Bina Fonyat (um arquiteto cuja existência eu simplesmente ignorava à época) e de como tive vergonha de dizer que não conhecia seu projeto para o Teatro Castro Alves, em Salvador. Já nessa época Portzamparc viajava muito ao Brasil (quase sempre de férias, em companhia de sua mulher, a arquiteta Elizabeth de Portzamparc); cada uma dessas viagens era marcada pela descoberta entusiasmada de um novo aspecto da arquitetura brasileira.
Depois, houve um episódio muito marcante para mim, quando, após dois anos de escritório, decidi deixar a França. No dia de minha volta, de um telefone público no aeroporto Charles de Gaule, telefonei para Portzamparc. Eu estava apreensivo e ele seguramente percebeu isso; então, me disse a frase que jamais pude esquecer:
“você pode ser algo que eu sempre quis ser, mas que, no entanto, jamais poderei ser: um arquiteto brasileiro” (5).
Isso foi em março de 1993. Portzamparc tinha à época 49 anos; ainda não tinha recebido o renomado prêmio Pritzker, mas, desde a inauguração de sua Cité de la Musique de Paris (1990), já era bastante conhecido fora da França. Dentre outras coisas, ele se destacava como integrante de um grupo específico de arquitetos europeus – aqueles que, tendo vivido intensamente os anos 1980 (leia-se, a avassaladora voga do pós-modernismo), agora, no início dos anos 1990, sentiam-se cada vez mais atraídos pela arquitetura européia do entre-guerras e pela arquitetura brasileira dos anos 1950. Fazia parte, portanto, do grupo (chamado num primeiro momento de “neo-modernos”) que, no início dos anos 1990, começava a reabilitar a arquitetura do movimento moderno.
Rem Koolhaas também podia ser incluído no grupo. Em 1993, Koolhaas não era a celebridade que é hoje; não tinha tantos textos publicados (embora já tivesse publicado Delirious New York) e, sobretudo, suas idéias apenas começavam a ganhar o impacto que tem hoje no debate internacional.
Para mim, no entanto, Koolhaas fazia parte de uma categoria especial de arquitetos: aqueles que, de manifestamente, cultuavam a arquitetura moderna brasileira. Eu, afinal, não esquecera o que ele dissera numa entrevista de 1990. Como Portzamparc, Kollhaas também tinha um sonho impossível de realizar:
“até os catorze anos de idade [...] queria ser uma espécie de arquiteto brasileiro” (6).
Como na maioria dos depoimentos dados pelos integrantes desse grupo, o tom da fala de Koolhaas era confessional; deixava perceber um misto de melancolia e esperança. Como se uma grande afinidade unisse sua própria juventude à força ingênua, selvagem, descompromissada – à inocência e à paixão da arquitetura moderna brasileira.
Significativamente, era um tom bastante diverso daquele adotado por boa parte dos integrantes da geração precedente. Para estes, Brasília, sobretudo, era tudo menos frescor, vitalidade, promessa. Ao contrário: não passava de um equívoco, e podia mesmo ser tomada como um embuste, uma tentativa de desviar os olhos da irracionalidade de fundo que caracterizava o processo da modernidade em geral e o movimento moderno em particular.
Um personagem do romance Les belles images, de Simone de Beauvoir (espécie de quintessência do intelectual europeu da geração que precede a de Portzamparc e Koolhaas) ilustra bem essa postura. Para Gilbert, Brasília era sobretudo sinônimo de exclusão social; afinal, a cidade não havia sido feita para aqueles que a haviam construído com seus próprios braços. Morar na periferia, em “casas de madeira” era a única alternativa que lhes restava:
“Eles não tinham escolha [...] O preço do aluguel em Brasília está muito além de suas possibilidades” (7).
Para a geração seguinte, no entanto, a experiência – a aventura! – da arquitetura moderna brasileira podia ser vista e admirada de um ponto de vista completamente diferente. E isso não obstante a consciência das mazelas sociais da empreitada. Com a palavra, uma vez mais, Koolhaas:
“Penso que Brasília indubitavelmente tenha sido o mais completo depoimento da cidade moderna. [...] pouco após a inauguração de Brasília, ficou claro que, além de Brasília, ainda havia uma contra Brasília: as invasões. Fato esse que aqui na Europa foi relatado como o fracasso da verdadeira Brasília. Para mim o importante é a tentativa” (8).
Brasília era inspiradora, e não apenas para arquitetos, mas também para futuros cineastas. Foi isso precisamente o que admitiu recentemente um contemporâneo de Portzamparc e Koolhaas, o cineasta alemão Win Wenders:
“Minha história com o Brasil começou quando eu era criança. E não tinha a ver com filmes, mas com cidades. Eu era apaixonado pelo Niemeyer e impressionado com a idéia de construir uma cidade no meio da selva – ou, pelo menos, era assim que sua obra era apresentada na Alemanha. Na parede do meu quarto tinha todas as informações e imagens que podia ter sobre Brasília” (9).
Imagino que, como Portzamparc e Koolhaas, há por aí toda uma plêiade de arquitetos europeus formada nos anos 1960 cujos projetos trazem a marca da arquitetura moderna brasileira. Imagino também que, mais do que um determinado repertório, o que marca a produção desses arquitetos é, digamos, o espírito de nossa modernidade arquitetural – aquilo que outro estrangeiro, o antropólogo norte-americano James Holston, chamou “o espírito de Brasília” (10).
II
Se, como creio, essa é uma interessante pesquisa acadêmica a ser feita, o projeto arquitetônico da Cidade da Música do Rio de Janeiro é, desde logo, um estudo de caso excepcional, por diversas razões. A primeira delas tem a ver com a nacionalidade de Portzamparc.
A densidade das relações culturais entre Brasil e França é conhecida. Quando veio pela primeira vez ao Brasil, em 1935, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss tinha em mente a realização de uma etnografia de povos indígenas. No entanto, o interesse de seu relato de viagem, o livro Tristes trópicos, não reside apenas no estudo que empreende dos hábitos e costumes de cadiuéus, bororos e nambiquaras. Tão ou mais interessante é a etnografia que faz da elite brasileira – uma elite que tomava a França do século 19 como modelo de civilização.
Não surpreende, pois, que, mais ou menos no mesmo momento em que Lévi-Strauss se dá conta das afinidades muito particulares que ligam a elite brasileira a uma certa cultura letrada francesa, Lucio Costa (assim como Affonso Eduardo Reidy, um brasileiro nascido... na França!) se volte para a Paris em busca de um norte para a nova arquitetura brasileira. As circunstâncias que resultaram na vinda de Le Corbusier ao Brasil em 1936 são, hoje, razoavelmente conhecidas (11) Sobretudo, sabe-se que foi graças a Lucio Costa que, como percebeu o historiador Giulio Carlo Argan, o Brasil fez sua opção pela França, em detrimento da vertente alemã do movimento moderno (12). Especialmente interessante, no entanto, é perceber como, aos olhos de Costa, toda a formação da arquitetura brasileira podia ser interpretada em termos de uma dívida contraída para com a França.
Significativamente, é para a França que Costa se volta quando, em 1951, sente-se seguro o bastante para tratar da história da arquitetura moderna brasileira em termos de uma inapelável vitória (13). Aos olhos de Costa, a vitória em questão significava, acima de tudo, que “a dívida contraída com o velho professor” havia sido “fiel e honrosamente saldada no prazo vencido de um século” (14). O velho professor, no caso, era ninguém menos que Grandjean de Montigny, o arquiteto francês, integrante da chamada Missão Francesa, que, no segundo quartel do século 19, havia introduzido o ensino formal de arquitetura no Brasil.
Como se vê, para Costa, a grande realização da arquitetura moderna brasileira era, em grande medida, esta: havia sido capaz de inscrever-se numa tradição da qual faziam parte ícones franceses como Grandjean de Montigny e Le Corbusier. (Significativamente, Costa sempre insistiu no fato de que, não obstante ter nascido em território suíço, Le Corbusier era, na verdade, francês) (15).
Os episódios que ilustram a solidez e a persistência das relações França-Brasil no território da arquitetura são incontáveis. Não seria possível enumerá-los aqui. No que se refere à relação Costa-Le Corbusier, podemos concluir lembrando apenas que, quando da morte do francês, em 1965, o traslado de seu corpo desde Roquebrune, na Côte d’Azur, onde morreu, até Paris ficou a cargo de... Lucio Costa, e que o décor do funeral, ocorrido na Cour Carré do Museu do Louvre, foi concebida por... Maria Elisa Costa, filha de Lucio.
III
Quarenta anos separam a morte de Le Corbusier e o projeto da Cidade da Música do Rio. Nesse entretempo, os vínculos entre a produção francesa e a brasileira fraquejaram. Em muitos momentos, prevaleceu o desinteresse mútuo. A produção francesa dos anos 1960 e 1970 não era muito animadora. A nossa própria produção tampouco entusiasmava os franceses. Foi sobretudo com a renovação da arquitetura francesa, iniciada no primeiro governo François Mitterrand, que o interesse mútuo ganhou novo fôlego.
Não foi contudo para a arquitetura contemporânea brasileira que a nova geração francesa voltou os olhos a partir dos anos 1980. Se, por aqui, vicejavam pós-modernistas e “regionalistas-críticos” (vale lembrar que a atual voga da arquitetura paulista ainda não havia começado, é Severiano Mario Porto quem, no final dos anos 1980, encarna o papel de grande expoente da arquitetura contemporânea brasileira), na França, para além de Zanine (16), os olhos estão voltados para... Niemeyer, Reidy, Costa.
A familiaridade com a obras de Niemeyer (que chegou a manter um escritório em Paris, onde desenvolveu projetos como a sede do Partido Comunista Francês, localizada na mesma cidade) e o fato de o arquiteto brasileiro estar vivo e trabalhando talvez tenham ajudado. Num ambiente de crescente insatisfação com a arquitetura produzida nos anos 1970 e 1980 (leia-se, a arquitetura pós-modernista), a boa e velha arquitetura niemeyeriana podia, em todo caso, ser vista agora menos como anacronismo (ou solipsismo, ou teimosia, ou ignorância, ou auto-suficiência, ou carrancismo, ou vulgaridade) e mais como evidência em favor do argumento do moderno como “projeto inacabado” (17).
Bem entendido, a superação do pós-modernismo empreendida por arquitetos como Portzamparc não implicava um retorno puro e simples ao credo modernista. Sua visão de cidade, sobretudo, era radicalmente diversa da versão mais difundida do urbanismo moderno – com sua ojeriza à rua e à quadra tradicionais. Nesse sentido, aliás, o abandono da estética pós-modernista era uma espécie de aprofundamento da experiência contemporânea. Uma experiência forjada tanto pela percepção inicial dos limites do movimento moderno quanto pela posterior curiosidade acerca de seus significados alternativos e suas potencialidades inexploradas.
Ainda assim (ou por isso mesmo), a relação que os novos mantinham com os mestres modernos era de enorme interesse e admiração. Testemunhei isso pessoalmente, quando, em 1998, junto com João Pedro Backheuser, levamos Portzamparc para conhecer Niemeyer. Foi um encontro revelador. O francês estava visivelmente nervoso; ia, afinal, conhecer o arquiteto que, segundo dizia, havia sido decisivo em sua opção pela arquitetura; trazia consigo um grande volume monográfico sobre seu trabalho – um presente a ser oferecido ao mestre. A dedicatória foi escrita em português e nela Portzamparc afirmava que fora vendo imagens das obras de Niemeyer que decidira estudar arquitetura – uma declaração que, alguns anos depois, fez questão de tornar pública:
“Como muitos arquitetos de minha geração, comecei a descobrir o Brasil pelo cinema, e depois pela arquitetura, em fotos e livros, antes mesmo de iniciar meus estudos de arquitetura. E foi vendo imagens de Niemeyer que tive vontade de me tornar um dia, como ele, arquiteto” (18).
Como não conhecesse o trabalho de Portzamparc, Niemeyer começou a folhear o livro burocrática e silenciosamente. Mas isso durou pouco; logo percebeu que entre as formas da arquitetura do francês e sua própria obra havia uma enorme familiaridade. E então, diante de uma foto que destacava um aspecto particularmente niemeyeriano da obra do colega, foi enfático:
“– C’est beau ça!” (“Que bonito isso!”).
IV
Como era de se esperar, na obra de Christian de Portzamparc, Niemeyer não foi capaz de ver outra coisa senão a si mesmo. Mas, e Portzamparc, o que viu e ainda hoje vê na obra de Niemeyer, de Reidy, de Costa? Acima de tudo, creio, uma potencialidade – como se os feitos dessa arquitetura pudessem dar lugar a realizações inesperadas, novas, atuais. Nesse sentido, creio que o projeto da Cidade da Musica do Rio de Janeiro se pretende didático – exemplar que é de um modo de reprocessar uma certa tradição moderna. O uso extensivo, laborioso e exuberante do concreto armado (expressão do que Portzamparc vê como uma verdadeira “cultura” brasileira do concreto armado); a exaltação do pilotis “brasileiro”; a valorização de uma certa cultura da sombra e, de modo geral, do dado climático como fator determinante da forma; a adequação ao Plano Piloto da Barra da Tijuca, de autoria de Lucio Costa; a aposta renovada em uma arquitetura concebida segundo os princípios da forma compositiva; a crença na força emancipadora da beleza, ou, nos termos de Argan, da conjugação de técnica e beleza – essas e outras características indicam que, como em nenhum outro projeto precedente de sua autoria, Portzamparc quis e pôde demonstrar (graças, bem brasileiramente, à presença do Estado como agente promotor e de um administrador voluntarioso como idealizador), para bem ou para mal, o que é ainda possível fazer de uma certa herança moderna.
Vem daí, me parece, a dificuldade dos arquitetos brasileiros de lidar com esse projeto. Porque, antes de tudo, ele é fruto de uma desenvoltura para com a tradição da arquitetura moderna brasileira diametralmente oposta da inibição reverente com que nós outros ainda hoje olhamos para o que Abilio Guerra chamou de “a esfinge silenciosa” (19). Essa desenvoltura tem uma explicação: não é apenas a proximidade mas também a distância o que aproxima Christian de Portzamparc de Niemeyer, Reidy, Costa. Por maior que seja sua admiração por nossos pais fundadores modernos, aos olhos de Portzamparc eles pertencem a outro tempo. Mais do que a distância temporal, é a percepção de uma crise e do esgotamento (por parcial que seja) de um credo o que permite a aproximação do arquiteto francês de hoje de seus heróis modernos. O projeto da Cidade da Música do Rio de Janeiro exprime essa distância: a arquitetura moderna brasileira está em seu horizonte, mas a consciência (no caso de Portzamparc, a vivência pessoal) da crise do moderno impede qualquer veleidade, qualquer fantasia de continuidade fluida e não-problemática entre o passado e o presente. A arquitetura moderna brasileira pode ser cultuada, citada, parafraseada, mas o será sempre do ponto de vista da alteridade (ou pelo menos de uma certa alteridade), não da identidade. O nervosismo de Portzamparc diante de Niemeyer era mais que compreensível: não estava apenas diante de um ídolo; estava diante de um fantasma.
A questão que fica em aberto é: em que medida esse projeto participa do desejo de transformação e de construção do futuro intrínseco ao movimento moderno em geral e à arquitetura moderna brasileira em particular (sob muitos aspectos, específicos a um e outro)? Uma questão que traz consigo duas outras: (1) em que medida é possível ou justificável retomar a estética moderna (o vocabulário, a sintaxe, os dispositivos espaciais e formais, as técnicas construtivas) sem, de algum modo, retomar (ainda que sob nova perspectiva) as questões que, outrora, deram origem a essa estética? (20) Acaso seriam essas questões passíveis de atualização ao contexto contemporâneo, internacional e brasileiro? (21)
A esse respeito, uma primeira constatação: de toda evidência, o projeto da Cidade da Música do Rio de Janeiro não poderia estar mais distante das veleidades sócio-transformadoras próprias do Movimento Moderno – ou, pelo menos, de sua vertente alemã. Ou alguém imagina que sua presença irá contribuir, minimamente que seja, para a transformação das relações sociais e condições de vida das populações brasileira, fluminense, carioca, barratijucana?
Dizer de um projeto que não tem um élan sócio-transformador não compromete todavia sua descendência moderna – não obrigatoriamente, pelo menos. Pois nem toda a arquitetura feita com a bandeira do movimento moderno se quis propriamente “sócio-transformadora”. Afinal, não se pode esquecer que uma boa parte de tudo o que se fez, legitimamente, em nome da arquitetura moderna não visava propriamente a transformação “social”. Era esta, aliás, uma das questões essenciais e polêmicas herdadas do debate das vanguardas: como articular a dimensão íntima e pessoal da experiência da forma e do espaço modernos com a demanda de universalização dessa mesma experiência. Para Walter Gropius, tratava-se de operar na esfera da produção – não apenas massificando e estandardizando uma produção industrial dotada de qualidade, mas formando (esta, precisamente, a pedagogia de sua Bauhaus) artistas que fossem artesãos, e artesão que fossem artistas. Le Corbusier, alternativamente, apostava sobretudo na força potencialmente contagiante da boa forma, vale dizer, de uma beleza cuja simples presença no espaço público seria capaz de comover (e assim transformar) todo e qualquer indivíduo que a avistasse.
Nessas perspectivas, parece claro que entre o projeto da Cidade da Música e a tradição da arquitetura moderna brasileira existe, acima de tudo, uma afinidade conceitual; e que o núcleo dessa afinidade é, como se poderia prever, o pensamento de Le Corbusier e sua idéia de que “é ao indivíduo que se deve levar a arte” (22) Não por acaso, a eleição, por parte de Lucio Costa, no início dos anos 1930, do pensamento de Le Corbusier como referência teórica da nova arquitetura brasileira (em detrimento das idéias de Gropius) tinha, dentre outros, este significado: fornecia os fundamentos teóricos para a definição de uma arquitetura moderna que, conceitualmente, relativizava os aspectos “sociais” da modernização e que, apostando na experiência individual, autônoma e emancipadora das formas construídas no espaço, estava por isso mesmo autorizada a ser mais individual que societal, mais fenomênica que processual, mais criação, experiência e presença que produção, desenvolvimento e progresso (23).
Visto sob esse prisma, o projeto da Cidade da Música – com sua presença audaciosa, grandiloqüente e desconcertante em meio à paisagem, digamos, pós-moderna da Barra da Tijuca – como que renova ou resgata o traço quiçá mais marcante da arquitetura moderna brasileira: a crença na capacidade potencialmente sublimadora da forma arquitetônica excepcional no espaço da cidade. (Curiosamente, tal característica faz desse um projeto simultaneamente mais e menos brasileiro: a timidez e a tibieza que caracterizam nossa arquitetura contemporânea atestam que, para bem ou para mal, esse traço de nossa produção moderna foi inteiramente esquecido por nossas novas gerações – tendência, diga-se de passagem, que só deve se agravar com o cada vez mais onipresente e enfadonho argumento em prol de uma arquitetura “sustentável”).
É esta uma crença pertinente? Há algo no mundo contemporâneo que a justifique? Quem traz no currículo setenta anos de “arquitetura moderna brasileira” e cinqüenta de Brasília, tenderá, provavelmente, a responder que não. Não porque uma parcela significativa dessa produção não tenha sido verdadeiramente excepcional. Apenas, sua eficácia foi e continua sendo pífia: para além dos próprios arquitetos (não todos), a arquitetura moderna brasileira não foi capaz de “sublimar” mais do que um punhado de almas sensíveis (ia dizer “artistas”, mas o tempo em que artistas brasileiros em geral tinham alguma sensibilidade ou mesmo atenção para o que se passa no universo da arquitetura acabou faz tempo). Brasília, corolário do projeto moderno brasileiro, está lá para confirmar: a cidade onde, em tese, a qualidade excepcional da arquitetura seria capaz de definir uma outra experiência do espaço e uma nova cultura urbana não difere em nada ou quase nada das demais cidades brasileiras. Mantida a duras penas pela ação pertinaz do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Iphan, sua arquitetura média é igual ou pior que a arquitetura contemporânea brasileira em geral. A Brasília “patrimônio histórico da humanidade” é também a triste e monumental mortalha de uma arquitetura moderna que apostou todas as suas fichas na força potencialmente emancipadora da beleza. Apostou e perdeu.
Por outro lado (e justamente por tudo isso), em um contexto contemporâneo como o nosso, em que as construtoras e seus obscuros arquitetos, de mãos dadas com Estado, mercado e terceiro setor, dão às cidades brasileiras o aspecto mais lamentável que se pode imaginar, é difícil não se comover coma inesperada aparição e – que nos seja permitido dizê-lo sem reservas – a extraordinária beleza da Cidade da Música de Christian de Portzamparc. Sua presença otimista e corajosa (e por isso mesmo também um pouco melancólica) tem ares de enclave, de cabeça-de-ponte estrategicamente lançada na guerra de reconquista de um território há meio século perdido ao inimigo. Sim, meio século. Meio século de projetos insignificantes, inexpressivos, inconsistentes, canhestros, desprezíveis, lastimáveis, bisonhos – aeroportos, bolsas de valores, câmaras municipais, delegacias de polícia, escolas, fóruns, garagens, hospitais, igrejas, jardins, lojas, moradias, necrotérios, oficinas, prefeituras, quartéis, repartições públicas, shopping centers, teatros, universidades, velódromos, zoológicos (fico devendo a letra x). Há exceções? Claro que sim. Alguma que, como essa Cidade da Música (ou como o Pedregulho de Reidy), tenha de fato marcado positivamente a paisagem do Rio de Janeiro? Não creio.
V
Até muito recentemente os arquitetos brasileiros viviam se perguntando o que havia acontecido com a “arquitetura moderna brasileira”. Constatando a inexpressividade internacional da produção nacional contemporânea, eles procuravam compreender – estupefatos, atarantados, condoídos – como e em que momento a coisa desandara. Não foram poucos os que localizaram no Golpe de 1964 a origem do problema.
O prêmio Pritzker atribuído a Paulo Mendes da Rocha (2006) restabeleceu o amor próprio e o bem-estar nacionais. Retrospectivamente, foi possível reconstituir o fio condutor que liga o período de ouro da arquitetura moderna brasileira e a produção (uma vez mais, internacionalmente reconhecida) contemporânea. Partindo-se de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, tornou-se possível, agora, chegar – continuamente, coerentemente – a Mendes da Rocha e seus discípulos, passando-se, prazenteiramente, por Reidy (este, agora, o elo fundamental) e Vilanova Artigas. A arquitetura moderna brasileira se mudou para São Paulo. Tudo bem. Continua sempre sendo brasileira. Continua sempre sendo moderna. Continua sempre sendo a mesma.
Não surpreende que nessa narrativa grandiosa, redentora e atávica, não haja espaço para a invasora presença da Cidade da Música do Rio de Janeiro.
notas
NA - este artigo é uma versão ligeiramente modificada de artigo homônimo publicado em Arquitextos n. 12, Porto Alegre, Propar UFRGS, 2008, p. 122-135; foi escrito tendo como base anotações feitas para a conferência “A incômoda beleza da Cidade da Música do Rio de Janeiro”, feita no auditório da Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, em 27 de agosto de 2008, no âmbito do II Seminário Docomomo Sul. Agradeço a leitura e os valiosos comentários de Carlos Eduardo Dias Comas.
1
PORTZAMPARC, Christian de. Filiations franco-brésiliennes... Du Rio d’Agache à la Cidade da Música. Bresil France architectures. Les Cahiers de la recherche architecturale et urbaine, Paris, Éditions du Patrimoine, mai 2006, p. 150.
2
Destaco os textos de Fernando Serapião e Ana Luiza Nobre. Ver: SERAPIÃO, Fernando. A ópera do pequeno príncipe. Piauí, Rio de Janeiro, dez. 2008, p. 20-26 <www.revistapiaui.com.br/edicao_27/artigo_835/A_opera_do_Pequeno_Principe.aspx>; NOBRE, Ana Luiza Minha Cidade, ano 9, vol. 8, p. 249. São Paulo, Vitruvius, mar. 2009. www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc249/mc249.asp>.
3
GUERRA, Abílio. Lucio Costa – modernidade e tradição: montagem discursiva da arquitetura moderna brasileira. Campinas (SP), Tese de Doutoramento, Departamento de História da UNICAMP, fevereiro de 2002. MARTINS, Carlos Alberto F. A constituição da trama historiográfica da arquitetura moderna brasileira, Revista da Pós - número especial: o estudo da história na formação do arquiteto, São Paulo, FAU-USP, s/ r. [1994].
4
Especificamente sobre o lugar dessa arquitetura na historiografia da arquitetura moderna, ver TINEM, Nelci. O alvo do olhar estrangeiro. O Brasil na historiografia da arquitetura moderna. João Pessoa: Manufatura, 2002.
5
LEONÍDIO, Otavio. “Geração Migrante – Depoimento 2. Em Paris, chez Christian de Portzamparc”. Arquitextos, 030.02. São Paulo, Vitruvius, nov. 2002 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq030/arq030_02.asp>.
6
KOOLHAAS, Rem. De Brasília ao futuro. Projeto, São Paulo, n. 133, 1990.
7
BEAUVOIR, Simone. Les belles images. Paris, Gallimard, 1966, p. 11.
8
KOOLHAAS, Rem. Op. cit.
9
Preciso filmar Brasília, Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 agosto 2008, p. C12.
10
HOLSTON, James. O espírito de Brasília. In: NOBRE, Ana Luiza et al. Um modo de ser moderno. Lucio Costa e a crítica contemporânea. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 159-177.
11
LISSOVSKY, Maurício; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. Colunas da educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, Iphan, 1996; SANTOS, Cecília Rodrigues dos et al. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela/Projeto, 1987.
12
ARGAN, Giulio Carlo. Arquitetura moderna no Brasil, Comunità, Roma, n. 24, 1954, p. 48-52. Apud XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 174.
13
Cf. MARTINS, Carlos A. F. Arquitetura e Estado no Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 1987, p. 169.
14
COSTA, Lucio. Arquitetura brasileira. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, 1952.
15
COSTA, Lucio. Presença de Le Corbusier. In: COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.
16
A cuja obra o Museu de Artes Decorativas de Paris dedica, em 1989, uma retrospectiva intitulada “L'Architecture et la Forêt”.
17
HABERMAS, Jurgen. A modernidade como projeto inacabado, Arte em Revista, n. 5, 1987.
18
PORTZAMPARC, Christian de. Op. cit. 137.
19
GUERRA, Abílio. A esfinge silenciosa, Jornal de Resenhas, Discurso Editorial/Usp/Unesp/Folha de S.Paulo, nº 51, 12 jun. 2000, São Paulo, p. 2.
20
TJ Clark formulou essa questão nos seguintes termos: “if I understand modernism to be a form of art somehow deeply attuned to certain facts and possibilities of modern life (of the form of life called modernity), then do I not think that the life we are living now is sufficiently different from that lived by Manet or Picasso or Pollock to deserve a new description – even if I may think it has not yet got one?”. CLARK, TJ. Modernism, postmodernism, and steam. October, n. 100, spring 2002, p. 161.
21
V. GUMBRECHT, Hans U. Em 1926. Vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 317.
22
LE CORBUSIER. A arte decorativa. São Paulo: Martins Fontes, 1996[1925], p. 189.
23
LEONÍDIO, Otavio. Crítica e crise: Lucio Costa e os limites do moderno. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 12, n. 14, dez. 2006, p. 153.
sobre o autor
Otavio Leonídio, arquiteto, doutor em História, professor da PUC-Rio.