“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Ensinaram a abaixar a cabeça em sinal de respeito. Repreendida, olhava para o chão. Ofendida, olhava para os pés do agressor.
Engraxava sapatos nas ruas. Homens de terno usam sapatos. Diziam que nunca viram uma menina engraxate. Seguia sons de passos que só os solados de couro faziam. Mapeava os ruídos enquanto engraxava, como um cego, vasculha o espaço com a sua audição. Traçava seus rumos num mundo sem horizontes. E se satisfazia com o ganho para o dia.
Quando saía pro trabalho, tomava um rumo a esmo. Depois se guiava pelos sons. Um dia foi parar no aeroporto. Tinha que fugir dos seguranças e conseguir um cliente ao mesmo tempo. Quando começava a engraxar, eles, constrangidos, não a expulsavam.
Nunca encarava ninguém. Para ouvir ou falar, pousava seus olhos no chão, nos pés de quem com ela falava. Aguçava os ouvidos para se fixar nas vozes. As formas como as coisas são ditas a atingiam em cheio no coração.
Sozinha no mundo, conseguiu latas de graxa, panos, escovas e construiu, com engenho, um suporte para pé. Pôs tudo numa mochila transada que encontrou no lixo. Desconfiaram que estava escondendo algo e a polícia a tomou. Teve que fazer sua caixa de engraxate, com cara e peso de caixa de engraxate. Viu que o mundo tem seus jeitos e modos e cobra uma normalidade de quem é pobre. Fugir disso era dificultar as coisas.
Saiu de casa ainda menina, numa madrugada de chuvisco gelado, depois de uma surra que levou do pai. Ele batia com mais força à medida que o palavrão que gritava ia ficando mais feio, sujo e indecente. Na rua, decidiu que não ia se deixar subjugar por homem nenhum. Ia vencer a maldição do pai e não ia acrescentar uma lagrimazinha sequer nos olhos lavados da mãe. Deus sabe o quanto foi difícil. Menina na rua era oferecimento, presa fácil. Uns, diretos, com dinheiro na mão, queriam comprar sexo. Outros, dissimulados, pediam para engraxar para espiar o decote, a menina de calça curta, sentada sobre a caixa, com as pernas abertas, sob um pé mirando o meio do seu corpo. Acompanhavam o seu movimento com as mãos a balançar seus peitinhos. Ela apressava serviço e avisava, sem levantar a cabeça: – não sou puta!
Na caixa, escondia a violência da rejeição, a fenda da ofensa, a ferida do insulto, a dor da separação, a solidão dos exilados e um enorme choro reprimido. Dividia sua errância com todos retirantes, imigrantes, forasteiros, perambulantes, náufragos em andrajos, perdidos e perplexos, todos, descosendo o destino que os atropelou. Caídos nessa cidade, estropiados, carregavam um mundo de histórias trágicas e tristes.
Todo dia, quando ia dormir, se via numa novela. Uma novela para fazer o pai amargar o remorso, reconhecer o seu valor, saber da sua luta para não entristecer a mãe. Na televisão, ela era só bondade: livrara-se do ódio, engraxava todos os sapatos masculinos desta cidade. Sapatos que andavam por aí, por todos os bairros e ruas, por velhos caminhos, como se novos fossem.
Queria mesmo era poder engraxar a sua vida, fazê-la parecer nova, apagar as feridas, dar um brilho naquilo que ela não podia trocar.
nota
NE – Oitavo texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6.Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.