“Todo dia eu só penso
Em poder parar
Meio-dia eu só penso
Em dizer não
Depois penso na vida
Prá levar
E me calo com a boca
De feijão...” (Chico Buarque) (1)
O homem multitudinário
A obra de Fábio Penteado se caracteriza pela diversidade e singularidade, construídas em perfeita harmonia com os ideais que possibilitaram o surgimento e nortearam o desenvolvimento da arquitetura paulista a partir do meio da década de 50. Essa atitude projetual única resulta em obras cuja formalização indica a aceitação e o requerimento de sugestões arquitetônicas variadas, ora muito próximas, ora mais distantes dos cânones com os quais se convencionou identificar a arquitetura da Escola Paulista.
O início da carreira do arquiteto, em 1953, encontra um momento histórico convulso, acelerado e, por isso mesmo, estimulante. Pode-se dizer que a aceleração histórica experimentada pelo século XX atingiu todas as esferas da vida, causando efeitos de consequências paradoxais para o estar humano no planeta. A questão da explosão demográfica é um exemplo claro desta afirmação e se transformou em apreensão global, principalmente a partir da segunda metade do século. No Brasil, Penteado participa da transformação que converteu São Paulo na cidade mais populosa do país em um escasso período de tempo.
A atenção ao fator populacional não é, em absoluto, surpreendente neste contexto, porém o particular entendimento da situação humana na realidade metropolitana propicia o surgimento de uma arquitetura singular, também no discurso que a possibilita. No seu projeto, o termo multidão transcende a questão meramente quantitativa para assumir uma dimensão humana maior, ligada à condição individual no meio metropolitano. A multidão de Fabio Penteado cabe na existência individual do homem comum, massificado, do ser urbano submerso na infinitude da metrópole, da realidade do habitante que não chega a cidadão.
O entendimento da individualidade como conformadora do caráter multitudinário (2) é a pedra angular de toda a sua proposta arquitetônica. A oscilação humana entre o ser individual e o ser social, atesta sua posição dialética e denota a riqueza da personalidade, confirmando a importância de uma arquitetura que propõe espaços humanamente valorizados, não redutíveis a uma função. Não se pretende concluir aqui que todas as obras e projetos de Fábio Penteado possuem a capacidade de abrigar a multidão numericamente, fato improvável dentro das limitações e da especificidade dos encargos arquitetônicos, mas sim afirmar que sua arquitetura busca atender ao ser multitudinário individualmente, esteja ele sozinho ou em grupo. O olhar do arquiteto se dirige ao “homem comum”, típico componente da massa, e busca transformar seu caráter estatístico em atuação cidadã.
A liberdade do projeto humano está restringida pelas adversidades da vida real, e o espaço, como instância social inseparável das ações do homem incentiva ou proíbe ações emancipadoras. Sua obra representa o desejo de sair do privado em direção aos grandes espaços, de cambiar o individualismo pela individualidade, de transformar a vida em existência ativa.
A busca pelo espaço da multidão é, na realidade, a própria preocupação do arquiteto por revalorizar a convivência comunitária, perdida com o advento da grande cidade. O entendimento de que, tal como a cidade se converte em metrópole, a comunidade assume a dimensão multitudinária, possibilita o projeto de uma arquitetura que procura responder a essa nova escala sem perder de vista os valores individuais dos habitantes. Somente da vida cotidiana, onde a individualidade aparece e a personalidade humana sobressai, pode-se retirar o extrato do universo relacional que vivifica e conduz o projeto, acima do mero quantitativismo.
(Re) inventar o cotidiano
O olhar para o cotidiano da vida urbana reaparece a partir dos anos 60 como inspirador de uma modernidade renovada, distante da proposta meramente tecnicista dos primeiros modernos. A vida das ruas passa a ser reconhecida como a essência do significado urbano e o símbolo da sociabilidade das cidades. Nas grandes concentrações humanas, a alteração radical dos modos de vida e os espaços onde se manifestam diariamente denunciam a existência de uma relação ambígua entre a beleza da socialização humana e a alienação na qual se vê submersa. “Planejadores e até alguns assistentes sociais costumam entender que as modalidades formais de associações numa cidade derivam direta e consensualmente de convocações de encontros, da disponibilidade de locais de encontro e da existência de questões de interesse público óbvio. Talvez isso aconteça em subúrbios e cidades de pequeno porte, mas não nas cidades grandes” (3).
Os espaços de congregação multitudinária, de estádios esportivos a centros comerciais, não passam de lugares onde a massa é convidada a assistir passivamente; lugares nos quais a riqueza da convivência é oprimida por um grande número de indivíduos que, reunidos em um mesmo recinto, somente olham a si mesmos. A metrópole expande e diversifica a dimensão cotidiana através da multiplicidade de escalas e atividades que seus habitantes experimentam diariamente. As tarefas habituais se esparramam por áreas distantes, desconhecidas e anônimas, feições urbanas indesejáveis que contaminaram a realidade física de muitos bairros, lugares tradicionalmente representativos do reconhecimento e da vinculação interpessoal.
A cidade proveniente do desequilíbrio desestimula a convivência e privatiza a experiência sentimental, desestabilizando a relação entre a liberdade individual e o vínculo coletivo. Estabelecida corriqueira e diariamente, a experiência essencialmente urbana proporcionada pelo relacionamento social, cria no habitante urbano o sentimento de grupo e a noção de compromisso social, que o converte efetivamente em cidadão. A vivência cotidiana é o lugar de comunhão das individualidades, do encontro entre a necessidade humana de lutar a cada dia e seu desejo por uma vida comunal mais elevada. “As relações com o lugar determinam-se no cotidiano, para além do convencional. O espaço é o lugar do encontro e o produto do próprio encontro, a cidade ganha teatralidade e não existe dissociada da sociedade que lhe dá conteúdo” (4).
A percepção da vivência cotidiana como um meio que possibilita a liberação da consciência (5) desemboca em uma proposta arquitetônica que desconhece amarras programáticas e privilegia a conceituação do ideal. A arquitetura metropolitana que propõe Penteado procura os vínculos que unem os cidadãos à cidade, o habitante ao bairro. Reforça o sentimento de pertinência urbana ao projetar espaços significativos e simbólicos no contexto geral da urbe; resgata o valor sentimental e conceitual de vizinhança como símbolo da vida cotidiana diária, lugar de reconhecimento interpessoal e espacial, “espaço privado particularizado” (6). Sintetiza-se na busca de coesão social em todos os níveis e dimensões da vida urbana.
“Os centros comunais começarão a construir-se apenas se deixem de considerar as cidades como meras aglomerações de lugares de trabalho e de sinais de trânsito. Começarão a surgir assim que os homens sintam de verdade o isolamento a que estão condenados em meio de uma multidão apertada; o anseio de uma vida mais rica, ou seja, de uma vida comunal, é algo que já não pode sufocar-se. Tudo isto guarda estreita relação com certo sentido da distensão, com o impulso até outro influxo vitalizador que não seja o trabalho ou a família, até una experiência que seja capaz de expandir os limites da vida privada” (7).
Exercícios de liberdade
A dimensão pública da arquitetura, objetivo sempre buscado no trabalho de Fábio Penteado, encontra-se com um especial desafio e apresenta uma peculiar resposta ao afrontar o projeto do Clube Harmonia (8).
Etimologicamente, a palavra clube significa a associação de pessoas com determinadas características comuns, com a finalidade de poder compartilhá-las entre seus membros. Esta diferenciação, útil para o desenvolvimento de muitas atividades especializadas, assume um viés arrogante e negativo quando aplicada a questões referentes a condições socioeconômicas.
O Jardim América, bairro nascido da conjunção de empreendimento imobiliário privado e inspiração na cidade jardim (9), alberga a sede do clube e indica sua destinação. A implantação desta zona da cidade de São Paulo representou em si mesma a criação de um “clube” dentro do tecido urbano, uma parte da cidade relativamente restrita e destinada a uma vizinhança selecionada de alto padrão de renda. É normal, portanto, que este tipo de empreendimento escolha este tipo de região para instalar-se. Ainda hoje a dinâmica não parece haver-se alterado significativamente. Menos normal será a solução proposta por Penteado para abrigar o centro de relações sociais da vizinhança, cada vez menos simpática a estabelecer contato com as ruas e a realidade da cidade.
O arquiteto reconhece o isolamento de um determinado grupo como um dos objetivos centrais requeridos no programa de um clube privado. “O Brasil era o país com o maior número de clubes do mundo - não sei se mudou agora -, o sujeito um pouco mais rico já se separa, para a filha não casar com um sujeito mais pobre” (10). Diante dessa incômoda constatação, conflituosa com seu ideal arquitetônico e social, procura na antítese dessa realidade o partido que norteia a concepção do projeto. “A praia de Copacabana é um clube. Um milhão, dois milhões de pessoas vão e, mesmo sem infraestrutura, convivem num nível de cortesia. Ou qualquer pequena praça pública, onde você chega e senta num banco, e não sente constrangimento” (11). O Harmonia nasce conceitualmente da idealização do espaço público, da praça, como o espaço que melhor abriga o grande clube onde a característica comum, nada distintiva ou exclusivista, é pertencer à multidão, sozinho ou em grupo.
O edifício é uma ampla praça coberta, limpa e aberta aos quatro lados através de painéis móveis de fechamento. A luz zenital, proveniente da cobertura em domos translúcidos, reforça essa sensação de abertura espacial ao oferecer internamente a noção de passagem do tempo e aproveitar o jogo de luzes e sombras oferecido pelo caminhar das nuvens. A planta não propõe obstáculos, senão abertura. O edifício se comporta como uma “passagem” que conecta idealmente a rua à piscina, o público ao privado.
Uma sucessão de desníveis, vencidos por grandes escadarias, descortina a quem entra a luz que desce da cobertura e dinamiza o espaço interno, marcadamente horizontal. A progressão sequencial de níveis e o posicionamento do setor reservado ao jogo do bridge sobre a entrada, situada na cota mais baixa do terreno, revela uma composição espacial em planos, cuja leveza é reforçada pelo efeito diáfano da luz. “O Artigas disse uma vez que ele chegava quase a ser um metadesenho. Se puxar uma linha, cai” (12). Essa limpeza visual ressalta a presença de uma parede ondulante de características esculturais, em meio ao grande espaço. Esse muro de concreto aparente que esconde a cozinha aparentemente emerge do subsolo, onde se encontra parte do setor de apoio ao restaurante.
Funcionalmente, o projeto procura atender à diversidade de usos que podem exigir as atividades do clube sem fragmentar o espaço, criando um ambiente amplo e acolhedor, pensado para grandes reuniões ou para o convívio cotidiano, “confortável para duas ou duas mil pessoas” (13). Essa unidade contraria, ao menos poeticamente, o fechamento e o isolamento que a própria ideia de clube representa.
Uma grande caixa fechada de concreto aparente protege um amplo ambiente de convívio no interior, coberto por uma grelha de matriz miesiana, e resolve o projeto com o mínimo de elementos que caracteriza a silenciosa arquitetura da Escola Paulista, da qual se torna uma de suas obras paradigmáticas (14). Dentro dessas características comuns que marcaram a produção dessa geração – mas que não representam toda sua diversidade expressiva – o Harmonia encontra na FAU-USP seu eco espacial mais notável. Porém agora a atmosfera se apresenta mais intimista, espontânea e permissiva, através da cobertura relativamente baixa, da abertura lateral por painéis e da luz que proporcionam. O clube - tal como a FAU -, internamente é “feito” de luz; configura um “reverso do espaço” e aí reside a poética de sua arquitetura (15).
“Este exercício de liberdade não surge dissociado de uma visão política mais ampla – encerrado ludicamente em si mesmo-, mas se baseia na aguda consciência da necessidade de elaborar uma arquitetura para a multidão, problema que a explosão demográfica coloca como premência cada vez maior. Não é a produção de modelos tipológicos – solução racionalista cujas limitações já são bem conhecidas – que interessa a Fábio Penteado, mas a proposição de obras que sirvam de ponto de partida para a discussão de teses conceituais” (16).
No concurso nacional para o Centro Comercial do Portão, em Curitiba, o conceito da praça é explorado em toda sua plenitude espacial e simbólica. Novamente contrariando a lógica esperada de um mercado coberto à maneira de pavilhão, Penteado organiza a arquitetura a partir da praça, dispondo radialmente dois corpos edificados que “abraçam” o espaço aberto resguardado entre eles.
Uma composição simples e dinâmica, conseguida pelo jogo entre as coberturas assimétricas dos edifícios e pelo movimentado desenho que conforma os degraus no piso, anima a materialização do projeto. O arquiteto buscou, através da assimetria característica dos pavilhões, evocar uma imagem de naturalidade, típica dos mercados de rua, como se a disposição das lojas fosse fruto de um agrupamento espontâneo, não planejado. Materiais, instalações e estruturas aparentes, confirmam o caráter direto e econômico do projeto, além de ilustrar sua filiação aos termos gerais que regiam o gosto arquitetônico da época.
A essa simplicidade propositiva corresponde um espaço público generoso, aberto e multifuncional. Muito além da destinação comercial primeira, o projeto oferece ao bairro e à cidade um novo espaço público. O ambiente, dinamizado pela atividade das lojas, atrai para a praça um sem número de atividades não programadas e de personagens sociais não necessariamente interessados em comprar. Neste caso, o mercado é o indutor da convivência e o catalisador de um novo espaço social, idealizado na praça. Essa abertura de possibilidades cria um ambiente democrático e inclusivo, onde novas atividades sugerem novas trocas interpessoais, ultrapassando a mera necessidade de consumir (17). O mercado fecha suas portas; a cidade não.
Ao abrigar o mercado, o projeto instiga a praça a reviver uma de suas características mais ancestrais. Essa revalorização funcional e simbólica clarifica a flexibilidade do conceito espacial adotado e atinge a própria origem histórica das cidades. O mercado e a praça, desde a antiguidade, mantêm uma relação simbiótica, compartilhando significados e funções presentes na origem mesma da urbanidade. A atividade comercial dependia do espaço comum aberto, que por sua vez, encontrava vida na movimentação mercantil.
Esse resgate busca na raiz brasileira dessa relação simbólico-funcional seu canal direto de comunicação com o usuário, representada pelas feiras-livres que costumavam preencher o espaço público para vender seus produtos há até não muito tempo. Hoje reminiscentes, as feiras costumavam ser um atrativo eventual, criador de uma convivência natural entre os moradores de onde se instalavam, e reforçavam o sentido de comunidade ao revelar-se como o centro simbólico da localidade, que se reunia em torno a sua presença.
O tipo de crescimento urbano e a transformação dos estilos de vida quase extinguiram esse tipo de mercado popular das grandes cidades brasileiras, passando a ser associado à certa imagem de arcaísmo, contraposta à modernidade urbana representada pelos supermercados. Penteado resgata esse valor comunitário contido na junção praça-mercado; enaltece sua dimensão democrática; representa esse resgate através do retorno de personagens como o engraxate, o vendedor de passarinhos, e da figura do cego tocador de sanfona e seu cachorro, transformados em emblema do projeto. “Tudo isto viverá na ‘praça’ com todo um colorido típico, dando a esta praça, um espírito verdadeiramente brasileiro” (18).
O Hospital Escola da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo é uma obra que trabalha diretamente com a imensidão da escala metropolitana. Este “hospital de multidão”, calculado para atender um público potencial de 1.000.000 de pessoas, testifica o tamanho da necessidade de serviços e equipamentos públicos na metrópole e revela como Penteado busca trabalhar a grande escala sem oprimir o usuário que utiliza a arquitetura.
A obra opta pela horizontalidade que marca, além do volume, a organização funcional da instituição. Tecnicamente, estudos e análises avalizam a organização horizontal do hospital; culturalmente, simplifica o deslocamento do usuário, geralmente pobre e retraído; humanamente, minimiza a angústia própria dos ambientes hospitalares ao eleger a amplitude e fluidez espacial. Deitada sobre a paisagem, contrasta com o entorno desordenado e caótico; estabelece um ponto de calma no horizonte da metrópole; pousa delicadamente seus arcos no solo, adaptando-se às formas da topografia. A arquitetura da Santa Casa é resultado dessa síntese entre preocupações técnicas, culturais e psicológicas, a fim de garantir o melhor desempenho social do equipamento.
Tal como numa pequena cidade, a praça é o elemento que organiza e referencia os demais espaços, que orbitam ao redor de sua presença. Dentro do mega-hospital ela atua na consciência do indivíduo, que reconhece o espaço naturalmente, como se já o fosse familiar. Essa procura pela espontaneidade, deliberada por Penteado, reconhece o poder simbólico, de dimensão inclusiva, que o espaço público contém e se vale disso para combater o retraimento e a angústia, típicos do ambiente hospitalar.
A proposta de criar uma grande área verde ao redor do edifício, o “Parque da Saúde”, é uma tentativa de responder à carência urbana generalizada, dotando a cidade de dois equipamentos públicos de uma só vez: o hospital e o parque. Essa opção é parte da busca por conferir naturalidade e humanidade ao conjunto, buscando romper com a imagem convencional, plena de aflições, das instalações de saúde.
Dividido em três níveis, com a praça central ajardinada como elemento aglutinador, o programa se distribui contido em um grande invólucro de concreto aparente, pontuado em seu interior pela presença de pátios ajardinados e pela situação luminosa da praça, sob domos de iluminação zenital. O piso superior abriga a zona crítica, destinado a internações e cirurgias. Amplos corredores funcionariam como “ruas públicas”, segundo o arquiteto, pois uma variedade de serviços e procedimentos dividiriam o espaço e reforçariam a sensação de naturalidade do ambiente.
Passados muitos anos entre o projeto e a conclusão da obra, em 1972 após uma longa paralisação, o edifício foi inaugurado como Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães, nunca tendo funcionado como hospital. O prédio tem a entrada restrita e vigiada e a área destinada ao Parque da Saúde é hoje um grande, quente e seco estacionamento. Nada das intenções de naturalidade e permeabilidade presentes no belo projeto sobreviveram à realidade de uma metrópole que desdenha o espaço público.
Também ficaram congelados na beleza dos desenhos a capela projetada para a Santa Casa e o posterior Monumento à Justiça, idealizado por Penteado em 1991/92, já para a reconversão do hospital em fórum criminal. A capela é uma poesia, onde um pequeno espaço diáfano se compõe de planos assimétricos que repousam em uma grande viga central ordenadora. No monumento que representa a justiça, peso e leveza combinam-se numa composição elegante, dinamizada pelo corpo central alveolado, quase “indesenhável”, segundo o próprio arquiteto.
Essas tristes constatações permitem afirmar que existe uma distância considerável separando a intenção da realidade. O “Hospital de multidão” nunca teve a chance de testar sua bela proposta no campo da dura realidade. A Santa Casa é um projeto que, ainda que materializado, nunca se concretizou.
A metrópole paulistana, cunhada pelo trabalho e distante dos centros do poder político nacional, relegou a representatividade das instituições públicas a um papel subordinado à simbologia do poderio econômico privado. “As sedes de governo em São Paulo brincam com o ridículo. Nunca houve um espaço público que pudesse representar condignamente, em termos de arquitetura, o governo de uma cidade. Essa é a história de São Paulo. Ao contrário do Rio, que sempre teve natureza e espaços arquitetônicos interessantes, São Paulo nunca os apresentou” (19).
O projeto da equipe de Penteado, vencedor do concurso para a nova sede administrativa do Estado de São Paulo, procura nos traços característicos da cultura paulista o meio de construir a imagem da instituição que governa o motor econômico do Brasil. Grandiosidade, simplicidade, racionalidade e modernidade são os elementos que, em conjunto, materializam o edifício-símbolo e sintetizam a história construída para explicar São Paulo.
Parte integrante da criação do Parque Metropolitano, gigantesca infraestrutura urbana idealizada pelo governo, a obra concentraria toda a máquina administrativa estadual. O expressivo contingente humano que utilizaria este equipamento, entre trabalhadores e usuários, e seu relativo isolamento da trama urbana sugeriu a criação de uma “cidade” com vida própria e funcionamento autônomo. O trabalho do arquiteto parte da premissa de que somente a vida conferida pela presença humana anima o artefato arquitetônico. Espaços genuinamente urbanos são criados pelo projeto no nível do solo, configurado como uma sequencia de “ruas” e “praças”, dotadas de instalações comerciais e equipamentos culturais compartilhados por funcionários e visitantes, aberta ao parque e com funcionamento independente das funções administrativas do edifício.
Nessa “cidade administrativa” convivem harmoniosamente expressividade arquitetônica potente e espontaneidade cotidiana, junção extremamente conveniente a um edifício público. A abertura física da arquitetura propõe a participação do usuário, descomprime o trabalhador em sua jornada diária e é sugestiva e atraente ao visitante ocasional. A intenção era oferecer um conjunto que “polarizasse o caminhamento de lazer das multidões e se integrasse num centro de convivência natural dessas multidões” (20).
O grande logro do projeto é reunir sob o mesmo grande teto atividades humanas e objetivos arquitetônicos variados. Estimula o contato entre a população e a administração com naturalidade; trabalha magistralmente a grande escala, de forma que à distância o prédio se afirma solenemente na paisagem, ao passo que de perto se transforma em espaço público franco e acolhedor; atualiza a sintaxe da conversa entre o cidadão e a coletividade.
O edifício opta por acomodar-se horizontalmente na paisagem, explorando através da grande escala a perspectiva aberta que o terreno oferecia. Uma grande cobertura alongada unifica uma série de seis blocos intercomunicados, compostos por planos formando pirâmides invertidas, forma que permite resguardar o espaço livre no nível do solo. O amplo espaço urbano recriado receberia a luz direta do céu através de grandes aberturas feitas na cobertura. A escala, a repetição dos blocos, organizados sob uma superestrutura conectora extensível, a recriação de um trecho urbano autônomo e até mesmo o trem de superfície previsto para integrar o conjunto, estabelecem pontos de contato com a linguagem arquitetônica “megaestrutural”, muito difundida a partir de mediados dos anos 60.
O CAE encontra no espaço público de uso cotidiano - na rua, na praça ou ainda no seu híbrido, o calçadão – o partido com o qual constrói a arquitetura. A atividade administrativa recusa o hermetismo e se abre à dinâmica da vida urbana que viveria no que Penteado (bem) denominou “rua de animação”.
A proposta arquitetônica de Fábio Penteado oferece complexidades que exigem uma análise mais detida sobre deu processo de ideação. Sua obra pode e deve ser entendida sob a mirada da produção paulista que se desenvolve a partir de mediados dos anos 50, o que se revela claramente nas obras apresentadas por este artigo, mas a liberdade propositiva que se encontra em seus projetos sugere um olhar atento ao contexto dessa produção. A dificuldade que supõe enquadrá-la ao pacote dogmático que se criou ao redor da “Escola Paulista”, da qual foi parte integrante ativa, denota uma diversidade propositiva e formal no contexto dessa produção maior que a superficialidade das sistematizações permite enxergar. Essa singularidade, perfeitamente harmoniosa com a proposta do grupo de arquitetos da época, é uma das delícias que oferece a mirada à sua trajetória. Olhar para a arquitetura de Penteado não significa somente requerer o reconhecimento da diversidade da arquitetura paulista, mas também permite reorganizar a posição dos atores e do significado comum desse grupo. Tal como bem define Baxandall, através da metáfora do jogo de bilhar, a cada movimentação “[...] cada bola está numa nova posição e numa nova relação com todas as demais bolas” (21). Propõe-se enxergar essa arquitetura paulista como uma multidão, onde o fator comum presente nas singularidades possibilita que atuem mancomunadamente.
notas
1
"Cotidiano", canção gravada no álbum Construção, 1971.2
“La multitud se compone de un conjunto de singularidades, y aquí entendemos por singularidad un sujeto social cuya diferencia no puede reducirse a uniformidad: una diferencia que sigue siendo diferente” […] “En La medida en que La multitud no es una identidad (como el pueblo) ni es uniforme (como las masas), las diferencias internas de la multitud deben descubrir ‘lo común’ que les permite comunicarse y actuar mancomunadamente”. In: HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitud. Guerra y democracia en la era del Imperio. Barcelona, Random House Mondadori, 2004.3
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p.61.4
CARLOS, Ana Fani Alessandri. “Notas sobre a paisagem urbana paulista” In: São Paulo: signos e personagens, Revista da Biblioteca Mário de Andrade, 1996.5
“Fábrica de preconceitos, essa natureza inferior que mutila a consciência do homem e cria a submissão aos mecanismos de manipulação, o cotidiano é também o lugar da descoberta. Aí o homem se recusa a reproduzir como certos os comportamentos impostos pela sociedade de massas” In: SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7ed. São Paulo, Edusp, 2007, p. 71.6
“El barrio puede entonces entenderse como esa porción del espacio público en general (anónimo, para todo el mundo) dónde se insinúa poco a poco un espacio privado particularizado debido al uso práctico cotidiano de este espacio”. In: MAYOL, Pierre. In: CERTEAU, Michel de. La invención de lo Cotidiano 2: habitar, cocinar. México, Universidad Iberoamericana, 1999, p. 8.7
GIEDION, Sigfied. Arquitectura y comunidad. Buenos Aires, Nueva Visión, 1963, p. 48. Tradução livre do autor.8
Este artigo analisa a segunda proposta feita por Penteado para a sede do Harmonia. Uma primeira não construída foi vencedora do concurso promovido pelo clube em 1960.9
O Jardim América foi projetado em 1913, pelos célebres arquitetos ingleses Raymond Unwin e Barry Parker, sendo o primeiro empreendimento nos moldes da cidade-jardim de Ebenezer Howard na América Latina. Foi levado a cabo pela companhia City of São Paulo, de capital majoritariamente estrangeiro e detentora de extensas áreas nos arredores da cidade.10
PENTEADO, Fábio. Entrevista concedida ao autor em 17/01/2008.11
Idem.
12
Idem.
13
Idem. 14
A sede da Sociedade Harmonia de Tênis foi tombada delo Condephaat em 1992.15
“Pero, quizás, es en la masa interna donde radica la originalidad profunda de la arquitectura como tal. Al dar una forma definida al espacio hueco, crea verdaderamente su universo propio.” […] “si se piensa bien, la maravilla más singular consiste en haber creado y concebido un reverso del espacio” In: FOCILLON, Henri. La vida de las formas y elogio de la mano. Madrid, Xarait, 1983, p. 27.
16
CZAJKOWSKI, Jorge, apud PENTEADO, Fábio. Ensaios de arquitetura. São Paulo, Empresa das Artes, 1998, p. 175.
17
“Las necesidades urbanas específicas consistirán seguramente en necesidades de lugares cualificados, lugares de simultaneidad y encuentros, lugares en los que el cambio suplantaría al valor de cambio, al comercio y al beneficio. ¿No será también necesidad de un tiempo para estos encuentros, estos cambios?” In: GIEDION, op. cit., p. 124. 18
Memorial do projeto.
19
PENTEADO, Fábio. Entrevista concedida à Adilson Melendez e Fernando Serapião, publicada na revista PROJETO&DESIGN, nº 290, abril de 2004.
20
Memória do projeto.
21
BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo:, Companhia das Letras, 2006, p. 103. O autor utiliza a referida alegoria para explicar seu rechaço ao conceito de influência, compartilhado pelo autor deste artigo, segundo o qual se estabelece uma relação ativo/passivo imobilista que tende a negar o elemento vivo e intencional do suposto influenciado.
sobre o autor
Ivo Renato Giroto é Arquiteto e Urbanista pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); possui especialização em Pós-modernidade: composição e linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Master Oficial em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña (UPC); Doutorando em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña (UPC)