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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Segundo as autoras, a denominação de “cidade” para municípios com menos de 3 mil habitantes seria capaz de engendrar profundas modificações em seu espaço e representações. A inscrição de valores urbanos e práticas rurais configuraria uma paisagem rurbana

english
According to the authors, the simple denomination of "city" to urban centers with less than 3 thousand inhabitants would be able to create deep changes in its space and representations. Such urban values in rural environment would create a rurban place

español
Segun las autoras, denominar núcleos con menos de 3 mil habitantes, llamándolos de "ciudad" cambiaria sustancialmente su espacio y representaciones. El uso de valores urbanos y prácticas rurales configuraría un paisaje rurbano


how to quote

BARCELLOS DE SOUZA, Gisela; OLIVO, Carla Martins ; DIAS, Isadora Ruiz. O limiar da cidade. Tensões entre práticas rurais e urbanas na configuração e representação da paisagem de sedes de municipais de menos 3 mil habitantes. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 122.05, Vitruvius, jul. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.122/3479>.

Até o ano de 1938, a elevação de um vilarejo qualquer à categoria de vila ou cidade não obedecia a regras estabelecidas. O reconhecimento por parte do Estado do crescimento físico, populacional e econômico de uma freguesia era o que permitia a inscrição desta na cartografia do país como uma nova sede municipal, com autonomia política e administrativa independentemente de sua ascensão ao título de vila ou cidade. Entretanto, “nem sempre a elevação à vila ou mesmo à cidade expressava a existência de uma aglomeração de porte tal que a justificasse” (1); critérios imprecisos permitiam que núcleos urbanos consolidados permanecessem desconhecidos, enquanto outros de menor porte eram erigidos a vilas ou cidades.

Apesar das tentativas esboçadas durante a Primeira República (2), foi o Estado Novo quem construiu o dispositivo legal – o Decreto-Lei 311 de 1938, vigente até hoje – que permitiu estabelecimento de um sistema de regras objetivas para a divisão territorial. A partir de sua promulgação, toda sede municipal passou a ser denominada como cidade e toda a sede distrital como vila, independentemente do porte, densidade ou qualquer outra característica.

O antigo degradê que se estabelecia entre o arraial, a freguesia, a vila e a cidade desapareceu em benefício de uma definição pautada somente sobre bases administrativas. Surgiram, assim, cidades com proporções de freguesias e intimamente ligadas ao espaço rural que passaram a compor os dados estatísticos do Brasil urbano.

A inadequação e o anacronismo deste sistema de nomenclatura, inicialmente levantados por Eli da Veiga (3), têm sido constantemente reafirmados em pesquisas sobre o território e sobre os limites entre o rural e o urbano. O presente artigo visa caracterizar a configuração específica destes vilarejos nomeados de cidades. Interessa-se aqui sobre a forma como coexistem, entrelaçam-se e inscrevem-se nestas paisagens as práticas rurais e os usos urbanos. Postula-se a hipótese de que a inadequação da denominação das sedes destes municípios como “cidade” não seja inócua; esta seria capaz de engendrar profundas modificações em seu espaço e suas representações, possibilitando, através da inscrição no território de valores urbanos e de práticas rurais, a configuração de uma paisagem rurbana.

Para tanto, a pesquisa aqui exposta baseou-se na análise comparada da paisagem de quatro sedes de municípios de menos de 5 mil habitantes: Munhoz de Mello, com 3.401 habitantes (dos quais 2.527 são considerados urbanos); Iguaraçu, com 3.598 munícipes (entre os quais 2.814 residem na sede); Ângulo com 2.840 habitantes (dos quais 2.150 são ditos urbanos) e Pitangueiras com 2.418 munícipes (entre os quais 1.641 moram na sede). A escolha desta faixa populacional não foi arbitrária; além de representar os menores municípios brasileiros (4), as unidades administrativas compreendidas nesta dificilmente seriam denominadas urbanas em outros países (5).  

Os vilarejos estudados surgiram em meados dos anos 1940 – inscritos dentro do contexto geral da ocupação do Norte do Paraná –, como fruto de parcelamentos para fins urbanos realizados em glebas particulares. Em outras palavras, são empreendimentos individuais que se aproveitam da publicidade gerada pela rede de cidades fundadas pela Companhia de Terras Norte do Paraná para viabilizar a venda de propriedades urbanas em novos assentamentos. Estes loteamentos ora inserem-se na área de domínio desta empresa, sobre uma das propriedades rurais que foram por ela demarcadas – como no caso de Iguaraçu, Ângulo e Pitangueiras –, ora margeiam este empreendimento, inserindo-se sobre parcelamentos fundiários da Gleba do Interventor – como em Munhoz de Mello.

Estes povoados apareceram inicialmente como novos patrimônios e, posteriormente, aspiraram ao título de cidade; porém, uns o alcançaram antes de outros. Já em meados da década de 1950, Iguaraçu e Munhoz de Mello tornaram-se sedes municipais, desmembrando-se de Astorga – o primeiro desmembrou-se em 1954 e o segundo em 1956. Os vilarejos de Ângulo e Pitangueiras teriam que esperar a facilitação à emancipação municipal, ensejada no período pós-constituinte (6) para almejar à condição de cidade – ambos em 1993.

A compreensão do surgimento destes vilarejos no meio rural, sem o envolvimento do poder executivo municipal e desvinculados de qualquer tentativa de planejamento, passa por sua inserção no contexto ensejado entre promulgação da Lei das Terras (1850) e a regulamentação dos parcelamentos para fins urbanos através da Lei 6766 de 1979. A promulgação, em 1850, da Lei das Terras extingue o sistema de sesmarias, permite o aparecimento da figura do Patrimônio Leigo e consolida-se, na passagem entre o século XIX e o XX, através da suspensão do sistema de doações e foro (7). Desde então, os proprietários dispõem de suas terras, podendo loteá-las ou vendê-las isoladamente (ibidem), ou seja, o proprietário de uma gleba rural passa a dispor dela como de acordo com seus interesses particulares, destinando parte dela a um novo núcleo urbano, por exemplo. No entanto, esta possibilidade encerra-se com a proibição, no âmbito nacional, de loteamentos para fins urbanos em áreas rurais através da Lei 6766/79.

Antes da abordagem dos métodos aplicados em tal demonstração, é preciso proceder especificação dos conceitos empregados em nossa hipótese. O conceito de rurbano tem sido freqüentemente utilizado em pesquisas brasileiras recentes para descrever situações mistas entre o rural e o urbano com diferentes acepções (8). Entretanto, independentemente das precisões distintas que esse conceito possa vir a assumir sob a pena de distintos autores, empregar-se-o-á neste artigo segundo sua definição proposta por Freyre (1982), ou seja, como uma “situação mista, dinâmica (...) [como uma] terceira situação desenvolvida pela conjugação de valores das duas situações originais [o rural e o urbano]” (9). Ou seja, dar-se-á ênfase no rurbano como o resultado de um processo de hibridação no qual “estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (10).

Já o conceito de paisagem aqui empregado apóia-se em sua origem etimológica a partir da palavra pagus do latim do baixo império (11), que designava tanto o território no qual se habita, quanto a sua nação. Assim como a paisagem – incorporada no português no século XVI –, o vocábulo pagus deu origem também às palavras país e paisano, ambas registradas a partir do século XVII (12). Logo, percebe-se que a paisagem estabelece, em sua origem etimológica, uma relação íntima com o “habitar”, o “apropriar-se de”, o “pertencer a” um território e, consequentemente, com as diferentes práticas sociais que neste se moldam e são moldadas.

A análise da coexistência entre de práticas rurais e urbanas no território destes vilarejos pautou-se no método para o estudo da prática do espaço urbano proposto por Depaule (13). Para este, a prática deve ser reconhecida tanto em seus vestígios inscritos no espaço, quanto nas representações sociais que desta são feitas:

“[...] é possível reconhecer a prática em suas demarcações, ou seja, nas manifestações concretas através das quais ela se afirma e deposita seus vestígios que são sempre significativos; e, de outro lado, a palavra do habitante revela as diferenças práticas e simbólicas segundo as quais os lugares são vividos” (14).

Logo, na presente pesquisa desenvolve-se tanto o registro das relações entre as práticas rurais e os demais usos urbanos; quanto a verificação das representações dos moradores sobre este espaço e estas relações. A fim de contemplar o primeiro aspecto, realizou-se um levantamento in loco lote a lote, mediante o qual se registraram as diferentes práticas rurais e sua relação com os usos urbanos e, mais especificamente, com as instituições públicas municipais. O destaque especial para estas últimas deu-se devido ao fato de representarem o poder público municipal e da possibilidade de, por esta razão, condicionarem a localização das práticas rurais no território.  Para verificação do segundo aspecto, realizou-se uma entrevista aberta, previamente agendada, com 60 sujeitos (15 de cada cidade) (15) a fim de identificar suas representações sobre as práticas rurais e seu relacionamento com os valores urbanos.

Síntese das relações entre Práticas urbanas e Rurais nas cidades estudadas
Esquema das autoras


Tensões entre as práticas rurais e os usos urbanos na configuração da paisagem

A paisagem conforma e, ao mesmo tempo, é moldada pelas inscrições das práticas sociais. As relações que se estabelecem entre estas, todavia, nem sempre são harmoniosas. A ação do tempo faz com que algumas práticas sobreponham-se a outras em momentos distintos; os limites entre os depósitos destas e daquelas são territórios em contínua reconfiguração. Nos casos estudados verificam-se dois ciclos temporais distintos: um para os municípios existentes há mais de 50 anos; outro para os que recentemente se emanciparam. A diferença entre longevidade entre os ciclos temporais nos quais se dá o estabelecimento das tensões entre as práticas rurais, existentes nos vilarejos, e os valores urbanos que se inserem após a emancipação – um com meio século, outro com um quarto –, revela alguns traços distintos em suas paisagens.

A leitura da paisagem, possibilitada mediante o levantamento supracitado, fora, inicialmente, sistematizada em mapas temáticos que pormenorizavam todas as práticas observadas nos lotes urbanos destes vilarejos. Contudo, a fim de facilitar a análise dos dados levantados, elaboraram-se sobre estes mapas os esquemas gráficos apresentados na figura 4. Nestes, as relações verificadas são sintetizadas: (a) a coexistência de cultivos agrícolas e usos urbanos (hortas, pomares e pequenos cultivos realizados junto à residência); (b) a inexistência de cultivos (áreas em que há somente usos urbanos); (c) a destinação exclusiva do lote para cultivos agrícolas ou para pastagem de animais; as áreas de concentração de galpões agrícolas (garagens para maquinários e armazenamento de implementos agrícolas); (d) as porções onde se observou a presença de aviculturas e (e) as instituições públicas municipais. No caso de lotes em que não se observou nem práticas rurais, nem urbanas, estes foram classificados como vagos – representados em branco nos esquemas. Como pontos de referência para as análises, destacaram-se, nos esquemas gráficos, a centralidade comercial e a conexão regional (rodovias estaduais).

Numa primeira análise destes esquemas, percebe-se a semelhança entre as paisagens dos vilarejos estudados. Neles, as práticas rurais inscrevem-se em quase todo o território, coexistindo, majoritariamente, com usos urbanos no mesmo lote. São, notadamente, hortas e pomares que se localizam ao fundo do lote residencial. Eventualmente observam-se outras implantações – na lateral e, raramente, na frente do lote –, entretanto, além de ocorrerem em número significativamente menor, constata-se que estas jamais acontecem junto à avenida comercial destas cidades. Ou seja, garante-se, desta forma o ocultamento destas práticas sob uma fachada urbana voltada ao espaço público.

Os lotes sem nenhum tipo de prática rural são raros no tecido urbano. Estes constituem, em geral, aproximadamente, 3% do território urbanizado destes povoados – 2,6% em Ângulo; 3,1% em Munhoz de Mello e 3,6% em Pitangueiras. Somente em Iguaraçu o número de lotes destinados exclusivamente a usos urbanos ultrapassa esta proporção, chegando a 7,9% do total da superfície parcelada. Entretanto, mesmo nesta exceção, é significativo o fato de que as práticas rurais inserem-se em mais de 90% da área destas cidades. Averigua-se, também, que a inexistência da prática agrícola está geralmente associada lotes pequenos, de pouca profundidade.

Se, por um lado, a presença maciça da hibridação entre práticas rurais e urbanas constitui um traço característico comum às quatro paisagens estudadas; por outro, a forma como estas se distribuem no território permite o reconhecimento de certas dissonâncias entre estas. A destinação de lotes exclusivamente a atividades de cultivos agrícolas, por exemplo, manifesta-se de forma diferenciada em povoados recentemente erigidos à condição de cidade e nos que o foram há mais de 50 anos. Nos primeiros, esta ocorre prioritariamente de forma concentrada no território, situando-se junto a seus limites com o espaço rural e ocupando em torno de 13,5% da superfície urbanizada – 12,6% em Pitangueiras e 14,9% em Ângulo. Já no segundo caso, verifica-se uma maior dispersão no tecido urbano de lotes exclusivamente agrícolas, que representam somente 5,5% do total – 5,6% em Munhoz de Mello e 5,5% em Iguaraçu. Deve-se salientar que esta propriedade distintiva independe da densidade habitacional das sedes municipais: se Iguaraçu e Munhoz de Mello possuem dados semelhantes (27,3 hab/ha e 31,3 hab/ha, respectivamente), o mesmo não ocorre em Ângulo (20,3 hab/ha) e Pitangueiras (39,1 hab/ha), entre as quais a diferença de densidade é significativa.

A densidade habitacional, no entanto, parece ser um fator de coibição das práticas pecuárias no espaço urbano. Esta é uma possível explicação para o fato de não terem sido observadas em Pitangueiras – cidade com o menor tamanho físico e populacional, porém com a maior densidade dentre os casos estudados – nem aviculturas, nem locais de pastagens. No extremo oposto, Ângulo apresenta 2,6% de sua superfície urbanizada destinada exclusivamente a pastagens de animais de grande porte. Aviculturas também são observadas em seu tecido, normalmente associadas a usos residenciais e sempre afastadas do centro da cidade. Este padrão de localização é o mesmo observado em Munhoz de Mello e Iguaraçu, nos quais as áreas de avicultura são observadas em menor número. Nestas cidades a destinação de áreas para pastagem também ocorre: ocupa 1,4% da mancha urbana de Munhoz e 0,3% da de Iguaraçu. Esta prática distribui-se, nas três cidades em que foi verificada, em suas porções mais periféricas.

Assim como nas práticas pecuárias ou agrícolas exclusivas, os galpões para armazenamento de implementos agrícolas – geralmente edificados ao lado da moradia de seu proprietário – nunca estão junto à avenida principal destas cidades. Deve-se observar, no entanto, que estes se concentram em locais valorizados nas cidades recentes, a algumas quadras de seu centro, fato que não ocorre nas mais antigas. O número destas garagens é significativo em Ângulo (onde há 45 deles), contudo, não o é na mesma escala nas demais cidades – há 13 em Pitangueiras, 8 em Iguaraçu e 7 em Munhoz de Mello. É relevante destacar que, nesta última, a Prefeitura Municipal criou uma área institucional pertencente ao município própria para garagens de maquinário dos produtores agrícolas, o que, certamente, contribuiu para redução da necessidade de construí-las individualmente.

Ao contrário do centro comercial, que claramente constrange a inscrição de práticas rurais em seu entorno imediato, as instituições públicas municipais não parecem condicionar sua inserção. As atividades agrícolas e pecuárias se assentam de forma autônoma a estes equipamentos coletivos que representam o poder público municipal. Claramente, estes não possuem o mesmo papel da centralidade na estruturação urbana e das práticas sociais.

Representações da paisagem híbrida

Assim como na configuração da paisagem, a diferença entre sedes municipais recentes e consolidadas revela-se, também, nas representações que seus habitantes constroem a respeito destas. As práticas rurais inscritas dentro do território, porém, não são percebidas como um todo. Entre uma e outra se estabelecem juízos distintos que impossibilitam sua análise no conjunto. Logo, a análise das representações sociais, aqui apresentada, examina cada prática separadamente, buscando sintetizar os temas mais freqüentes nas entrevistas realizadas com os moradores.

De modo geral, pode-se afirmar que a diferença entre os ciclos temporais, observada na leitura da paisagem, manifesta-se, também, nas representações. Verifica-se nitidamente que, em municípios consolidados, é freqüente a associação da maior presença das práticas rurais ao passado; enquanto nos municípios recentes estas costumam ser rejeitadas com maior veemência. Para os primeiros, a coibição das inscrições rurais é um sinal dos tempos modernos; para os segundos, é uma condição para se tornar urbano.

Esta diferença é claramente perceptível na forma como são percebidas as destinações de lotes exclusivamente a cultivos agrícolas de subsistência. Apesar de ser mais freqüente em municípios recentes, nestes a utilização do lote urbano somente com a agricultura é vista como indevida. Para seus moradores, é necessária a distinção clara entre o espaço rural e a cidade. Estas práticas, portanto, dificultariam a constituição de uma ambiência urbana nas novas sedes: “(...) acho que tem que dividir as coisas, se é cidade é cidade, se é plantação é plantação.” (entrevista 14 - Pitangueiras). É freqüente a associação dessas práticas a uma situação de atraso de ordem econômica e social, que deveria ser rapidamente ultrapassada. Inadequadas ao espaço urbano, estes cultivos – vinculados ao passado rural – deveriam ser banidos: “às vezes, tem lugares que a gente vê que a prefeitura quer fazer uma obra, mas, por ter cultivos, principalmente nas cidades pequenas, acaba não realizando. Eles atrapalham, eles acabam atrapalhando o progresso” (entrevista 2 - Pitangueiras).

Já para os municípios consolidados, estas práticas são aceitas como situações temporárias. Prefere-se que haja uma plantação a existir entulho ou o lote subutilizado: “Eu acho assim, se o terreno está ali improdutivo, está ali só pra gerar mato, então que se cultive alguma coisa nele!(…) acho que está ajudando até no visual. Melhor do que ter mato” (entrevista 15 - Iguaraçu). Logo, ao contrário do que ocorre nos municípios recentes, nos consolidados a prática do cultivo agrícola contribui para melhorar aparência do vilarejo. A situação possivelmente conflituosa entre as representações de cidade e a paisagem híbrida que estas práticas rurais configuram é resolvida através da fórmula “cidade pequena”: “em cidadezinha de interior você vê acontecer isto” (entrevista 10 - Iguaraçu).

Em ambas as situações, os moradores percebem que estes cultivos agrícolas permitem um complemento alimentar e de renda à população mais carente. Entretanto, enquanto nas sedes novas esta situação é vista como precária, como um desafio a ser suplantado pela administração pública municipal; nas sedes erigidas na década de 1950 – apesar de menos freqüentes em seu tecido urbano – é comum que estas práticas sejam até mesmo celebradas: “nos bairros as pessoas plantam e vão vendendo para os vizinhos ali próximos. Então, quer dizer, é uma coisa interessante, porque você tem um produto fresco. Está gerando renda, né?” (entrevista 4 - Munhoz de Mello).

A possibilidade de uso de agrotóxico, no entanto, é uma preocupação comum às sedes novas e consolidadas. Caracteriza-se de um requisito para aceitação ou não em Iguaraçu e Munhoz de Mello: “Desde que não utiliz[e], assim, bastante defensivo agrícola” (entrevista 11 - Munhoz de Mello). Já nas cidades recentes, esta questão constitui um motivo a mais para sua coibição, pois, além de contaminarem o solo urbano, os cultivos agrícolas atrairiam animais, seriam focos de mau cheiro e possibilitariam, também, esconderijos para criminosos, para a venda e o consumo de drogas – questão apontada, sobretudo, em Ângulo.

Apesar de os entrevistados de Pitangueiras e Ângulo refutarem estas práticas rurais no perímetro urbano, em geral, estes se mostraram tolerantes a sua inscrição nas porções periféricas da cidade: “não bem dentro da cidade. (...) Na periferia” (entrevista 10 - Pitangueiras). Admite-se, portanto, que o vilarejo seja envolto por estas práticas: “porque a cidade é pequena, então, ela é rodeada de campo” (entrevista 2 - Pitangueiras). Entretanto, o local mais adequado para sua manifestação continua sendo no campo e, sobretudo, nas vilas rurais: “lá eles plantam café, plantam milho, para o sustento deles e para vender. Eles vendem na rua o que eles plantam ali” (entrevista 8 - Pitangueiras). Notadamente, verifica-se nas representações que estes cultivos não são admitidos nas porções centrais da cidade. Tem-se um zelo maior com a aparência do espaço urbano no centro: “nessa região aqui [na avenida comercial], perto da prefeitura, não (...) mais afastados do centro da cidade” (entrevista 5 - Pitangueiras).

Se a destinação exclusiva do lote divide as opiniões dos entrevistados, o mesmo não ocorre com os pomares, as hortas e outros pequenos cultivos que se situam junto às residências. É relevante ressaltar que, em geral, os entrevistados tiveram dificuldades de perceber esta prática, tão comum nos quatros povoados estudados, como rural. Correntemente, define-se sua existência como natural e, portanto, inquestionável: “Aqui quase todas as casas são assim. Geralmente o pessoal sempre quer uma hortinha pequena” (entrevista 15 - Iguaraçu). Nos municípios recentes, estas são defendidas e diferenciadas da utilização do lote exclusivamente para cultivos: “Pomar, hortaliças, ... é (sic) muito bom para saúde, eu não tenho nada contra não. (...) não atrapalha ninguém” (entrevista 1 - Pitangueiras).

Apesar de permitidos em Ângulo e Pitangueiras, os cultivos agrícolas junto às residências não devem prejudicar a aparência nestas sedes. Transparece nas entrevistas a necessidade de controle e vigilância destes espaços, para que não venham a interferir na ambiência almejada pelo povoado: “Se for um pomar bem organizadinho, né, bem cercadinho, não haveria problema não (...) é bonitinho você passar numa data e ver um vizinho ali cultivando umas alfaces né? Está cuidando do quintal. O que não, seria, também, uma coisa aberta né? Cercadinho com um muro, portão” (entrevista 3 - Pitangueiras). 

Se, na leitura da paisagem, a densidade habitacional pareceu determinante para a inscrição ou não de práticas pecuárias; o mesmo não sucedeu com as representações que destas são feitas. Novamente, ressaltou-se e ampliou-se a diferença entre cidades recentes e consolidadas. As práticas pecuárias, em geral, não são bem aceitas em ambos os casos. Os argumentos para justificar a sua coibição, contudo, não são os mesmos: enquanto nas primeiras afirma-se sua impertinência ao meio urbano; para as segundas são as novas leis que as proíbem.

Tanto em Munhoz de Mello e quanto em Iguaraçu, a criação de animais dentro da cidade é associada ao passado: “Aqui existia. Nós criávamos porco aqui, criávamos cabrito. Hoje é tudo proibido” (entrevistado 10 de Iguaraçu). As legislações e fiscalizações recentes, segundo os moradores, são as responsáveis pela coibição destes animais dentro da cidade, principalmente dos de grande porte. Entretanto, algumas dentre estas práticas – tais como a criação de galinhas para consumo próprio – ainda permanecem, mesmo que em vias de desaparecimento: “A gente já vê, assim, galinhas sim. (...) [Além de] animais que nem (sic) cavalos; até bois a gente vê também soltos, às vezes...” (entrevista 6 - Munhoz de Mello). A manutenção e a tolerância destas pautam-se em tênues acordos comunitários: “se não incomodar os vizinhos, não há problema” (entrevista 10 - Iguaraçu). Para tanto, fica claro neste pacto a necessidade de higiene no trato destes animais para se evitar o mau cheiro e atração de moscas e ratos.

A possibilidade destes acordos de vizinhança inexiste em Pitangueiras e Ângulo, onde as pecuárias, por menores que sejam, são sempre mal vistas. Além de questões relativas à higiene, ao ruído e ao odor que ocasionam essas práticas, os moradores também mencionam, correntemente, a possibilidade de invasão do terreno vizinho devido à ausência de controle destes animais: “Eu não tinha galinha, mas eu vivia com galinha pulando dentro do meu quintal, eu tinha birra daquilo” (entrevista 6 - Ângulo).

Dentre as características que aproximam as quatro cidades estudadas, está certa tolerância ao trânsito de cavalos no espaço urbano: “Não é certo, mas é aceitável dentro dos padrões, se você tirar o animal dele vai dar problema, vai dar problema de família, para arar um pequeno terreno, para fazer locomoção de um entulho” (entrevista 15 - Iguaraçu). Faz-se apenas uma objeção para que estes estejam sempre presos e não atrapalhem a circulação urbana. Outra questão que aproxima as cidades consolidadas e recentes é a oposição à presença de granjas próximas ao perímetro urbano – mencionada em Munhoz de Mello e Pitangueiras: “frango, por lei, está proibido de ter até 500m, tem que ser 500m longe da cidade, né? Por causa do odor que é muito forte” (entrevista 11 - Munhoz de Mello).

Nas representações dos galpões para o armazenamento de implementos agrícolas perceberam-se três situações distintas. Na primeira, válida para Munhoz de Mello e Iguaraçu, os moradores – apesar de ressaltarem o incômodo que estes podem gerar pela estocagem de agrotóxicos e pela emissão de odores e de ruídos matinais (quando as máquinas agrícolas são ligadas para se dirigirem à propriedade rural) – admitem sua existência em cidades pequenas, permitindo sua localização em qualquer lugar da cidade. A presença destes galpões no meio urbano é percebida como um mal necessário; a insegurança no meio rural faz com que os produtores venham morar na cidade e tragam consigo seu maquinário: “Em nosso país o governo não te dá saúde, não te dá escola, não te dá segurança, não te dá nada. O que tem que acontecer? Você tem que trazer o barracão para dentro da cidade” (entrevista 10 - Iguaraçu). 

Na segunda situação encontra-se Pitangueiras. Assim como nas sedes municipais anteriores, a presença de galpões agrícolas é pouco freqüente nesta cidade. Entretanto, ao contrário do que ocorre naquelas, em Pitangueiras os galpões existentes localizam-se em porções valorizadas o espaço urbano. Esta diferença se manifesta no fato de que, mesmo aceitando a presença destes galpões na cidade – e reconhecendo em parte os problemas anteriormente mencionados –, neste município prefere-se que estes se localizem longe do centro. Se implantarem-se na periferia, não há nenhum problema: “bom, eu acho que ela está livre para colocar, fazer o que ela quiser ali. Construir garagem, colocar maquinários” (entrevista 4 - Pitangueiras).

A terceira situação corresponde ao caso de Ângulo, no qual se constatou que há 45 garagens de maquinários. Nesta sede verificou-se uma grande oposição à presença destas edificações no espaço urbano, a qual, além de apoiar-se nos argumentos já mencionados, justifica-se também pela atração de insetos e ratos que estes ocasionam. Entretanto, percebe-se a situação como de difícil solução; malgrado os conflitos que estas edificações geram dentro da cidade, reconhece-se a necessidade de que estas fiquem junto à moradia dos proprietários rurais: “fica fora do alcance deles, entra a questão do roubo, então é uma questão delicada é complicada, mas não é certo” (entrevista 3 - Ângulo). Como alternativa, sugere-se que estas sejam bem fechadas e cuidadas – de forma a garantirem a higiene e evitarem o acesso de crianças – , assim como, que se localizem junto à periferia da cidade. Nas quatro cidades, parte dos moradores entrevistados levantou o fato de o trânsito de maquinários ser conflituoso com o espaço urbano.

Considerações finais

Embora tenham ascendido à condição de cidade em momentos distintos, nos quatro vilarejos estudados verifica-se a configuração de uma paisagem híbrida devido à coexistência entre as práticas agrícolas e os usos urbanos. A nomeação destes vilarejos de cidade engendra uma série de transformações em sua paisagem; a importância das práticas rurais tende a retroceder em prol do espaço público que aparece como o lócus da representação dos valores urbanos, sobretudo junto à centralidade.

Amplifica-se, desta forma, a tensão entre as práticas rurais e urbanas, levando ao ocultamento daquelas por uma fachada edificada. Este encobrimento se verifica, também, nas representações desta paisagem, visto que, de modo geral, seus habitantes negam o seu caráter misto, rurbano – que sucede em mais de 90% de seu território –, para afirmá-lo como exclusivamente urbano. 

A comparação desta tensão entre práticas rurais e urbanas em sedes municipais recentes e em consolidadas permite-nos, contudo, revelar alguns traços distintivos entre ambas as situações, para além destas características comuns supracitadas. Nas cidades recentes, as práticas rurais – apesar de mais freqüentes em suas paisagens – são, de modo geral, menos aceitas. Estas são percebidas como opostas à representação da noção de cidade que o vilarejo pretende almejar, como uma situação de atraso econômico e social que se deve suplantar.

Já nos municípios existentes há mais de 50 anos, esta tensão entre práticas e representações parece menos intensa. Muitas práticas rurais – associadas ao passado do povoado – são ainda aceitas e a coibição atual de algumas dentre elas é vista como conseqüência das novas leis. Inexiste nestas sedes uma preocupação tão grande quanto a observada nas recentes com a manutenção do caráter urbano da centralidade. As inscrições exclusivamente rurais são menos numerosas, porém encontram-se mais dispersas em seus territórios. As possíveis dissonâncias entre estas inscrições e a idéia de urbano são resolvidas através da formulação de uma definição própria de “cidade pequena”.

Malgrado estas dissonâncias, estas representações analisadas testemunham que as noções de urbano e de cidade alteram-se neste contexto rurbano. Em ambas, minoram-se os aspectos relativos a tamanho e densidade populacional, para afirmá-las, prioritariamente, como sinônimo de qualidade do trato dos espaços públicos.

notas

[Este artigo foi publicado nos Anais do VII Encontro Tecnológico da Engenharia Civil e Arquitetura, em novembro 2009, Maringá] 

1
MARX, Murilo. Cidades no Brasil: terra de quem?. São Paulo, Nobel/Edusp, 1991.

2
VEIGA, José Eli da. “Desenvolvimento Territorial do Brasil: do entulho varguista ao ZEE”. In: Anais do XXIX Encontro Nacional de Economia. Campinas, ANPEC, v. 1, 2001, p. 1-20.

3
Remete-se o leitor ao artigo de VEIGA, José Eli da. Op. cit., bem como ao livro do mesmo autor Cidades Imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas, Editora de autores associados, 2003.

4
Entre o total dos 5.507 municípios brasileiros, 3.887 deles, ou seja, aproximadamente 70%, possuem população inferior a 10 mil habitantes. Ver: VEIGA, José Eli da. Op cit.

5
A título de exemplo, em Portugal – país em que se continua com a figura da freguesia como a menor divisão administrativa –, a faixa entre 2 e 5 mil habitantes corresponde a que se denomina como freguesia semiurbana, ou seja, que corresponde a uma área não urbana. Cf. CSE, Conselho Superior de Estatística. “158ª Deliberação do Conselho Superior de Estatística”. In: Diário Oficial da República. Lisboa, Imprensa Oficial, IIª Série, 11 de Setembro de 1998.

6
BOUCHARDET, Suzanne. O processo de municipalização dos nos 90 e os novos municípios mineiros: Análise dos impactos das emancipações de distritos ocorridas em Minas Gerais na década de 90 sobre a distribuição dos benefícios sociais no Estado. Dissertação de mestrado Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho. Belo Horizonte, 2006.

7
MARX, Murilo. Op. cit.

8
Veja-se, por exemplo: VEIGA José Eli da. Op cit; CARNEIRO, Maria José. “Ruralidade: novas identidades em construção”. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, v. 11, p. 53-75, 1998; GRAZIANO SILVA, José. “O Novo Rural Brasileiro”. In: Nova economia, Belo horizonte, 7(1), maio de 1997, p.43-81.

9
FREYRE, Gilberto. Rurbanização: Que é? Recifem, Massangana, 1982.

10
CANCLINE, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo, Edusp, 2008.

11
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico. Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.

12
Idem, ibidem.

13
DEPAULE, Jean-Charles. “La pratique de l’espace urbain”. in: PANERAI et al. Analyse Urbaine. Paris, Éditions Paranthèses, 1999, p.159-185.

14
Idem, ibidem.

15
Os roteiros para realização destas entrevistas, bem como os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, foram aprovados, previamente, pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UEM (COPEP) na reunião do dia 5 de dezembro de 2008, Edital Nº.020/2008.

sobre as autoras

Gisela Barcellos de Souza é professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá, Mestre pela Université de Paris VIII, Doutoranda da Universidade de São Paulo 

Carla Martins Olivo é estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá

Isadora Ruiz Dias é estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá

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