“A estética não existe no vazio”
Eric Hobsbawn
Casa, lar, residência, habitat, ninho, morada...
Não há dúvidas quanto à importância da casa no “quadro” atual da arquitetura brasileira. Há tempos, a “casa” tornou-se um assunto difundido para muito além do campo disciplinar, sendo tratada, discutida e estudada por múltiplos profissionais. A casa continua sendo celebrada por revistas, sendo hoje incrementada por programas de TV e por ampla difusão nos suportes digitais. Como desdobramento deste processo, uma vasta gama de aspectos correlatos ao habitat e ao espaço doméstico podem ser aventados, suscitando questões a enfrentar: como usar o espaço, como transformar, como mobiliar, como organizar, como otimizar o espaço, etc. Para indagar, o que é o morar brasileiro e o que é a casa brasileira hoje?
Aqui, interessa especular sobre o morar brasileiro a partir da casa, entendendo-se “casa” como lar, como ambiente da vida privada, como dimensão física, plástica e sensível do morar, qualquer que seja sua configuração: seja um apartamento, uma residência, um bangalô, um barraco ou uma mansão. Para Juhani Pallasmaa a casa é o fator primordial para estabelecer padrões e referenciais de espaço, de materialidade, da relação do corpo com o mundo, constituindo-se como um laboratório de construção da subjetividade do indivíduo. Nessa perspectiva, a casa se converte num ambiente gerador de experiências e correlações entre o indivíduo e a coletividade, pela gama de valores – morais, sociais, culturais – que são construídos e/ou praticados (1). Assim, interessa refletir sobre as transformações do espaço doméstico em meio aos processos de transformação tecnológica que temos vivido nos últimos anos, considerando também as modificações dos usos e das funções dos ambientes da casa, a invenção de hábitos, a transformação dos referenciais estéticos e a consolidação de modos de vida bastante indicativos sobre nossa contemporaneidade.
A problematização da casa como assunto complexo para o campo da arquitetura já foi objeto de investigações sistemáticas que lhe referenciam, como a contribuição de Marlene Acayaba na abordagem das residências paulistas, assinalando sua importância na configuração do espaço da cidade e da paisagem urbana, a relação da implantação com a topografia, a solução formal e estrutural da casa, bem como as questões do programa arquitetônico (2). Mais recentemente, a produção dos primeiros dez anos do século XXI chamou a atenção do historiador Roberto Segre, apontando a falta de interesse da crítica de arquitetura pelo tema da casa na produção atual da arquitetura brasileira. Para ele, a casa estava marginalizada, quando deveria ser tomada como instância de experimentação e investigação sobre técnica, espaço e questões sociais, antropológicas e culturais – mesmo reconhecendo o grande déficit habitacional a ser enfrentado pelo campo da arquitetura (3). A questão da casa está, portanto, no cerne da produção contemporânea e precisa ser problematizada e enfrentada à altura de sua complexidade, de modo inescapável.
Casa X cidade
As transformações da casa estão correlacionadas com as transformações da vida urbana. Mais do que ecoar questões do Movimento Moderno e da premência em solucionar a questão da habitação em larga escala, as relações mútuas entre casa e cidade instigam a entender a cidade como extensão normal do espaço residencial para todas as classes sociais, configurando enfim, “a cidade para todos” defendida por Paulo Mendes da Rocha (4), como aspiração constante e norteadora de uma agenda mais ampla sobre a cidade, mas que precisa ter respaldo em políticas urbanas e políticas habitacionais efetivas, como uma questão de Estado, não como moeda de troca nos lances do jogo partidário. Ao mesmo tempo, as filas, a falta de estacionamentos, o trânsito e a dificuldade de ir e vir, a preocupação com o sentido difuso de “violência urbana”, jornadas de trabalho flexíveis, comodidades tecnológicas e serviços de entrega a domicílio – flores, supermercado, pizzaria, farmácia, locadora... – são alguns dos fatores que acentuam o ato e o valor de permanecer em casa.
Enquanto a agenda da “cidade para todos” não se efetiva, a casa segue sendo valorizada como local singular da vida e do convívio, idealizada como refúgio para os amigos, para a intimidade, em oposição ao descaso, às mazelas e às falhas da cidade. O adensamento urbano, a transformação de porções do território da cidade ou a transformação de terrenos de indústrias desativadas com novas propostas habitacionais, a mistura (mixing!) de funções e a convivência de novas tipologias residenciais com edifícios ou quarteirões históricos são algumas das estratégias em voga nas experiências internacionais a fim de não valorizar a casa isolada no lote como forma inteligente de promover o morar, nem tampouco otimizar a infraestrutura instalada – metrô, água, luz, etc (5).
Aqui, o desdobramento desta valorização da casa é a crescente oposição entre a casa e a cidade, contrapondo o mundo individual à esfera da sociabilidade coletiva, não tomando a cidade como local da convivência, da troca, da diversidade e do pleno exercício de interação social – sendo o condomínio fechado o paradigma do processo de cisão social. Há um processo de exacerbação do convívio restrito aos grupos sociais que frequentam uma casa, em que a convivência se transforma num evento inserido num processo de espetacularização da vida privada. Como consequência, a etiqueta parece deixar de ser apenas um fator de distinção social e um conjunto de regras que facilitam o convívio para se tornar um pesadelo individual e coletivo.
Cada coisa em seu lugar
Neste processo de valorização da casa, novos usos demandam novos lugares, enquanto novos hábitos de consumo e sociabilidade se consolidam diante da avalanche tecnológica, da proliferação de equipamentos e das necessidades simbólicas da vida de cada morador, casal ou família. Apesar dos esforços insistentes da publicidade, parece que está superada a panaceia de automatização total do ambiente doméstico, distanciando nosso imaginário da casa futurista da casa dos Jetsons (6). As vantagens de poder programar a cafeteira, acender luzes ou acionar a máquina de fazer pão remotamente cai por terra diante dos riscos eminentes de apagões (7) de toda sorte a que estamos sujeitos. Além das falhas humanas e do nível-limite em que toda infraestrutura de água, luz, esgoto e telefonia parece estar operando, vale lembrar a cena antológica do filme Mon Oncle (Meu Tio) de Jacques Tati, em que o casal Arpel fica preso na garagem e precisa que seu cãozinho acione o sensor para abrir o portão e libertá-los!
A incorporação de novos hábitos como trabalhar em casa, cozinhar e receber amigos, ter espaços para hóspedes, ou para práticas de hobbies, etc, ampliaram as possibilidades do programa residencial e transformaram a nomenclatura dos ambientes, ainda que muitas funções sejam perenes e intrínsecas ao morar. Lareira, sala rebaixada, bar, paredes chanfradas, jardim de inverno, sauna, banheira de hidromassagem, quadra de tênis há muito foram substituídos ou convivem com um rol de novos itens no programa, tais como cozinha/espaço gourmet e adega. A sala de ginástica se transformou em fitness center, enquanto que escritório passou a ser home office. A sala de visitas foi substituída pelo living e hoje é uma sala de estar dentre outras salas, enquanto que a sala de TV se fortaleceu como home theater. Mesmo a churrasqueira foi atualizada com a incorporação do forno de pizza. A piscina deixa de ser retangular ou circular e adquire formas variadas, incorporando “borda infinita”, “deck molhado”, raia olímpica (ou ½ raia quando não cabe!); surgiu a “brinquedoteca” e há muito tempo o parquinho virou playground! (8)
Além das floreiras, pérgulas e canteiros, os jardins podem incorporar – vindo direto da cultura oriental – um ofurô. Os problemas com o trânsito e a mobilidade urbana pouco afetaram a vontade de ter mais e mais vagas de garagem. Tornou-se comum ter banheiro integrado ao dormitório e a suíte, antes restrita ao casal, tornou-se privilégio de todos! É patente o crescimento do número de banheiros e da transformação do quarto de empregada, usado como “coringa” da planta de apartamento para expansão do dormitório, da lavanderia, ou para abrigar adega, despensa, rouparia... Diante de necessidades efetivas, constata-se a profusão de modismos e novos símbolos de status social que fica evidente numa verificação dos equipamentos oferecidos nas propagandas de novos edifícios nos jornais dominicais, transformando serviços coletivos em vantagens exclusivas.
Quem não comunica, se trumbica
A casa também é um assunto para programas de televisão (9) – e aqui penso especialmente em: Decora, Santa ajuda e Casa brasileira (10). Estes programas tratam da casa das mais variadas maneiras, explicando como arrumar estantes, como otimizar uma sala ou organizar armários. Através de diversos profissionais e de sua qualidade, o programa Casa Brasileira consegue estabelecer um trânsito de nomes e referências arquitetônicas que nem sempre estão à disposição para consumo mais imediato através das revistas. Ao mesmo tempo em que uma gama de valores estéticos são construídos e/ou divulgados, torna-se possível fazer considerações históricas sobre a casa brasileira, tratando de obras e arquitetos importantes e atuantes, valoriza-se o design dos móveis brasileiros, divulgando novas referências visuais, sem ocultar a lógica do consumo para transformar a casa num lugar melhor, ou mais pessoal, tangenciando o mundo das celebridades. Ao trazer os arquitetos para televisão e popularizar a discussão de problemas espaciais a partir da casa, apresentando soluções para problemas nas escalas do espaço interior e da configuração de ambientes – qualificando os espaços cotidianos da vida doméstica – este programa torna a arquitetura algo mais próxima, mais rotineira e ao alcance de todos, tornando-a menos hermética.
Mas esta não é a primeira vez que os arquitetos estão na TV. Já nos anos 60, a inserção plena dos arquitetos como agentes do campo cultural se articula com as manifestações da Arte Concreta e da Bossa Nova, exponencializando-se em Brasília. Tão sintomático desta ambição em demarcar seus domínios vanguardistas é a participação dos arquitetos na televisão – que era o meio de comunicação de massa e o vetor por excelência da consolidação de uma sociedade de consumo. A fim de consolidar a sua própria inserção popular e ampliar o alcance de seu próprio campo profissional, os arquitetos defendem sua para a sociedade com o programa “Arquitetos na TV”. Tratava-se de um programa semanal, cujo objetivo era a “utilização da TV por uma classe como a dos arquitetos para entrar em contato com o grande público” que deveria informar aos espectadores o que se passava “no mundo da arquitetura” e assim, a sua maneira, agenciava a cultura erudita, a cultura popular e a cultura de massas. O programa havia iniciado sua transmissão em abril de 1961 e estava sob a chancela do IAB, mais precisamente, sob o comando de Eduardo Kneese de Mello e Fabio Penteado. Uma nota da revista Módulo informa que além de arquitetos como Henrique Mindlin e Marcelo Roberto, já haviam participado deste programa personalidades como o Ministro Lauro Escorel (11). Ainda há muito que pesquisar sobre isso, mas o fato de os arquitetos almejarem conduzir um debate de grande alcance sobre questões de arquitetura para um público absolutamente diverso, organizado pelos próprios arquitetos, ainda hoje parece algo extraordinário.
Nesta escala de alcance, deve ser recobrado um evento de decoração que se fortaleceu desde que foi criado, no final dos anos 80, para se tornar um fenômeno nacional, com edições regionais e locais: a Casa Cor. Se, naquele momento, tratava-se de uma forma de divulgação de serviços de decoração, hoje seria ingênuo não vislumbrar a complexidade de sua presença no campo da arquitetura e o imenso potencial comercial intrínseco a essa marca (12). Soma-se ao interesse difuso pela casa o fortalecimento do mercado editorial das revistas, diluindo fronteiras estéticas e técnicas entre as revistas para especialistas e revistas de decoração voltadas para diferentes segmentos sociais. Assim, projetos podem ser publicados em mais de uma delas, atingindo públicos distintos. Difícil não especificar as ditas revistas para especialistas – tais como AU – Arquitetura e Urbanismo, Projeto Design, Finestra, Monolito – ao mesmo tempo em que outras revistas também são destinadas aos profissionais, sendo por eles dirigidas, tais como Arquitetura & Construção, Casa e Jardim, Casa Cláudia, Casa Vogue, Kaza, Bamboo, Decorar mais por menos, Wish casa, e muitos outros títulos (13). Somam-se a esse conjunto as revistas que tratam de casa de modo geral, ou de temas específicos: piscina, banheiros, salas, armários, churrasqueira, etc. Por fim, ainda existem manuais práticos, como por exemplo: Guia Manual do Construtor – Projetos, que divulgam dezenas de modelos – aliás, as plantas! – voltados para as “demandas da classe C”.
Os meios virtuais da internet, através de blogs, sites e ambientes de discussão, relacionados às revistas, aos debates acadêmicos ou aos próprios arquitetos e escritórios ampliam exponencialmente a questão da casa, do morar brasileiro e difundem obras construídas ou em projeto no Brasil e no mundo. Somem-se a isso os sites de teor mais acadêmico, os grupos de discussão de assuntos mais específicos – história, crítica, patrimônio, cidade, etc – e a divulgação de eventos. Dentre os sites destacam-se o Vitruvius, “especializado em arquitetura, urbanismo, arte e cultura, e disponibilizado na rede mundial internet pela Romano Guerra Editora desde o ano 2000” (14). Em função da maior relevância que os concursos de arquitetura vêm adquirindo, o portal Concursos de Projetos atua desde 2008, a fim de “reunir e socializar projetos, ensaios, artigos, regulamentações e ideias, assim como promover a reflexão e o debate relacionados aos concursos de projeto como instrumentos de promoção da qualidade na arquitetura e nos espaços públicos” (15).
O expressivo crescimento do mercado editorial de arquitetura e urbanismo nas ultimas décadas também evidencia no grau da circulação de ideias através do número de títulos sobre as chancelas de arquitetura, urbanismo, cidade, paisagismo, decoração e, claro, sustentabilidade, com livros monográficos sobre arquitetos, livros de história e crítica, sobre cidades e tantas abordagens e recortes, que se ampliam com a facilidade de importar livros (16). Diante desse excesso de informações – obras, os nomes dos arquitetos, dos designers, os materiais e seus usos, etc. –, tudo isso define um universo complexo de referências que as revistas, de certo modo, filtram, organizam e vendem, garantindo a legitimidade dos valores em voga, periodicamente, ao alcance da mão em qualquer banca. O interesse difuso por arquitetura e decoração é tão expressivo que o jornal Folha de São Paulo lançou a Coleção Folha Design de Interiores, em 2013 (17).
Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...
Uma prova eloquente das transgressões entre as fronteiras simbólicas de interesse popular ou mais profissional, que abrange diferentes segmentos sociais e diferentes públicos, motivada pela simultaneidade de ações dos meios de comunicação é a publicação da residência da consultora de moda, Gloria Kalil (18) e seu marido, o professor de filosofia da USP, Sergio Cardoso, nas revistas ProjetoDesign, Bamboo e Arquitetura & Construção, quase que simultaneamente (19). Projetada pelo escritório SPBR de Angelo Bucci, trata-se de uma casa de grande impacto formal, com desafios técnicos enormes para resolver um programa residencial excepcional, destinada a clientes bastante esclarecidos. Contudo, uma vez publicada, a casa se torna uma referência legítima no imaginário e no repertório que se oferece a quem vai construir, acerca do que é uma casa brasileira contemporânea (20).
Essa divulgação da casa, do escritório e das soluções propostas em revistas é uma consequência publicitária inevitável – sendo em alguns casos desejável – para atrair novos clientes. No segundo pós-guerra a revista americana Arts & Architecture, sob coordenação de John Entenza, promoveu um programa de protótipos habitacionais de baixo custo, articulando interesses do público consumidor com as possibilidades de produção da indústria. Deste programa, conhecido como Case Study Houses, participaram arquitetos hoje consagrados pela historiografia, tais como Ralph Rapson, Ray & Charles Eames, Eero Saarinen, Craig Ellwood, Pierre Koenig, Richard Neutra, dentre outros. Mesmo que muitos projetos não tenham sido edificados, o programa converteu-se numa experiência paradigmática da cultura americana sobre a questão da habitação, uma vez que através da casa, do morar e do modo de vida americano, promovia um conjunto difuso de valores da cultura americana (21).
Batizada oficialmente como “Casa de fim de semana em São Paulo” no site do escritório responsável, a casa deve servir como segunda casa do casal: uma casa de veraneio em São Paulo, ou conforme a proprietária: “uma casa de final de semana no meio de tudo”, cujo tema (ou “sonho”) era ter uma piscina e um jardim. A casa é apresentada com um conjunto de fotografias e desenhos que pouco varia de uma revista para outra. Contudo, o nível de informações e a abordagem do projeto é diverso, adequando-se ao vocabulário e ao público de cada revista. Deste modo, a ProjetoDesign traz uma reportagem com comparações da casa e outra obras, explora o tema do projeto: uma casa que resulta da vontade de ter uma piscina e um jardim, com um tom informal de quem conversa com o arquiteto, mas promove abordagens intelectualmente mais sofisticadas que as demais. Já a Arquitetura & Construção traz frases dos proprietários (os clientes) e também as impressões do arquiteto, com frases ou com uma pequena entrevista, alem de indicar um link para assistir um vídeo da casa. Diante de uma obra com certa complexidade para ser lida em plantas e cortes, as plantas possuem mais contraste e, assim como algumas fotos, também apresentam textos com informações relevantes. Já a Bamboo traz apenas uma entrevista-padrão como nas demais obras de seu anuário, mas complementa a apresentação das fotos com frases de Angelo Bucci sobre a casa: “esses clientes decidiram ficar em São Paulo e provar que é possível encontrar na metrópole o que ela aparentemente nos nega”, que aponta para a franca relação com a paisagem urbana.
Se por um lado esta casa não funciona como residência constante, nela existem ambientes denominados quartos, salas, banheiro, cozinha... e um apartamento para o caseiro. Mas a negação do programa comum da casa e o mote inventivo do projeto precisam ser destacados, desde as chamadas das reportagens: “A praia é aqui”, “Fugir sem fugir”, “É uma piscina. E um jardim.”, reforçando a singularidade da casa, de sua solução e, por extensão, de seus moradores. O destaque que a piscina possui é evidente nas fotos e na abordagem da casa, sendo destacada nos desenhos. A casa possui uma riqueza de espaços e transições espaciais muito marcantes, com caminhos e escadas que instigam a exploração do terreno. O jogo com a topografia e os diferentes estratos das atividades domésticas revelam muito do processo projetual e da autoria. A piscina sonhada no chão foi elevada até a altura máxima permitida pela lei para aproveitar a insolação – convertendo-se numa caixa d`água em que é possível nadar – mas também subordinando todas as demais funções. O esforço estrutural para deixar a piscina flutuando se revela no dimensionamento da estrutura. Os jardins definem ambientes externos contínuos aos espaços internos. O uso de mosaico português branco e decks no piso acentua a presença do concreto armado como fator principal da concepção – estrutural e plástica – da casa (22).
Apesar de possuir arranjos espaciais complexos, a casa atinge um ar de informalidade, que em parte é obtido pelas escolhas dos materiais e seu tratamento, incluindo o predomínio da cor branca. Há uma atenção com a qualidade das esquadrias, do guarda-corpo, do corrimão. Seria fácil adjetivar a casa como minimalista – sem fazer analogias com Issey Miyake – mas também seria pouco produtivo. Rem Koolhaas recobra que o âmbito de atuação da arquitetura é sempre o da transformação (23). Distanciando-se da sanha dos rótulos e das limitações classificatórias – eventualmente úteis, mas sempre limitadas – resta olhar a obra. Esta casa expõe possibilidades de especulação da arquitetura contemporânea e amplia os limites de atuação profissional e de reflexão sobre o morar brasileiro atual, mesmo que em seu momento inaugural cause estranheza, desafiando os significados e escala de valores já legitimados.
Mas a vida é real e é de viés
É possível pensar na publicação desta casa para poder refletir sobre as transformações atuais do campo da arquitetura, recobrando inclusive o que as revistas publicavam há 10 ou 20 anos, pois menos do que mera mudança, as questões estéticas não existem no vazio (24). Há pouco mais de vinte anos o campo arquitetônico debatia o resultado do concurso para o pavilhão do Brasil em Sevilha (25). Neste processo histórico, uma linguagem arquitetônica formulada por: colunas com capitéis, pilastras, decorações e toda uma ornamentação – denominada de “neoclássica” pelo mercado imobiliário – composições de quadrados, triângulos, círculos e toda sorte de tratamentos gráficos de fechada, uso de cores e referenciais plásticos figurativos – com inegável filiação pós-moderna – vêm sendo substituída por uma outra linguagem arquitetônica (26). Trata-se de uma linguagem que opera com volumetrias mais puras, que valoriza o uso de materiais aparentes em que o próprio material define valores plásticos, ampliando a gama de materiais utilizados. O concreto volta a ser destacado não apenas como estrutura, sendo também valorizado por seus atributos plásticos (27).
Diante desta patente alteração de normalidade nas referências arquitetônicas que circulam em larga escala através das mídias, o mínimo a ser feito é indagar se estamos diante de mera reposição sazonal de valores estéticos, ou não. Se estaríamos mesmo, ainda diante do vestígio de algum tipo de “revival” – seja brutalista, seja modernista – ou não. Ou se, de fato, nos situamos em meio a um processo mais complexo de transformações dos paradigmas.
A arquitetura moderna brasileira do século XX logrou um êxito considerável por seu caráter genuíno, tornando-se um fenômeno bem sucedido, por ser tão paradoxalmente moderna e internacional, quanto nacional – expondo inclusive as fraturas do Projeto Moderno, conforme chave defendida por Otilia Arantes (28). No debate atual, os desafios às mudanças de parâmetros se impõem para estabelecer um sentido de contemporaneidade legítimo, em meio às mudanças tecnológicas e suas implicações sociais e culturais. Para alcançar um sentido de contemporaneidade que seja tão próprio, neste século XXI, é preciso razão e sensibilidade não apenas para enfrentar criticamente nossas heranças arquitetônicas, mas também para reconhecer valores residuais e arcaicos diante da avalanche de valores emergentes.
A produção atual das casas brasileiras revela questões difusas sobre os espaços do morar brasileiro: espaços amplos, espaços abertos, predomínio dos ambientes de convívio e recuperação nos nexos da varanda; uso de sistemas de ventilação sem parafernália tecnológica, mas que demandam cuidadosos dispositivos de fenestração, com esquadrias generosas. Telhado não é pecado. Há uso de treliças de madeira, uso de elementos vazados – o cobogó; destaque no uso da luz natural, importância da integração com jardins e com a paisagem (seja urbana ou rural); valorização do mobiliário brasileiro e de seus designers – Sergio Rodrigues e irmãos Campana à frente! Nota-se o uso de uma gama muito mais variada de materiais com mais experimentação, misturas e relações tectônicas – destaque para as madeiras, elementos cerâmicos e vidros. Há expansão do uso do aço, com perfis estruturais, chapas, telas e toda sorte de dispositivos para fixação. As estruturas metálicas convivem com o concreto armado, reinante como material absoluto.
Se formalmente há um predomínio nas soluções de volumetria prismáticas – malditas como “caixinhas” – por outro, há crescente valorização das superfícies, inclusive para melhorar as soluções das “caixinhas”. A valorização no tratamento das superfícies pode engendrar novas especulações e arranjos formais, seja tanto para repensar a oca indígena, como para enfrentar criticamente o complexo repertório formal de Oscar Niemeyer. Ademais, “caixinhas” bem desenhadas demandam mão-de-obra bem treinada para construir e executar a alvenaria, a carpintaria, a pintura, o paisagismo, etc. Portanto, uma indústria da construção é, no mínimo, instigada a participar deste processo econômico: acompanhando e criando demandas.
Se na história da arquitetura do século XX a residência unifamiliar também ensejou especulações sobre outras formas e escalas de morar, a situação atual da produção brasileira perece ser ainda mais reveladora. Ademais, demanda habitacional é o que não falta no âmbito nacional, pois com um déficit de 7 milhões de unidades habitacionais, a questão da moradia é um problema crucial a ser enfrentado com tenacidade maior que programas governamentais de ocasião. Tal perspectiva exige políticas sistemáticas de planejamento urbano para antever e propor soluções em diferentes escalas de projeto, que deve encontrar amplo interesse na agenda contemporânea, bem como apoio das instituições representativas do campo da arquitetura e do urbanismo. A problemática da habitação como fator de transformação da cidade se apresenta como uma questão a ser enfrentada com maior seriedade. Longe de ser uma questão meramente quantitativa, será preciso reconhecer que a moradia contemporânea deve contar com os inúmeros recursos da cidade: escolas, parques, transporte público, equipamentos coletivos, etc. para suprir essa necessidade. Uma vez que para tal solução em escala não faria sentido pensar em unidades isoladas, atuar sobre a cidade em função da questão da habitação pode abrir uma perspectiva de transformação social, econômica e cultural efetiva, reformulando e repensando a casa, o habitat e o morar brasileiro.
Por definirem a paisagem urbana e poderem engendrar a transformação efetiva do território das cidades, somente a produção arquitetônica do morar brasileiro pode arcar com as responsabilidades de problematizar, construir e transformar um campo do conhecimento através das casas e das múltiplas configurações dos espaços habitacionais no Brasil, resolvendo não apenas problemas pontuais de uma família, mas agindo como infraestrutura radical para efetivar uma revisão dos parâmetros de ocupação e uso do solo. Para tanto, tal campo profissional deve ter em seu horizonte o domínio pleno sobre sua ação, como condição inexorável para atuar com autonomia junto a todas as forças ativas e transformadoras que constroem nossa contemporaneidade.
notas
NA
Versão revista e ampliada do artigo homônimo submetido ao Enanparq 2014.
1
PALLASMAA, Juhani. Phenomenology of Home. In ARETS Wiel; DOCTER, Rob; ZAREA-POLO, Alejandro (Org.). The Berlage Survey of the Culture, Education, and Practice of Architecture and Urbanism. NAi Publishers/Berlage Institute, 2011, p. 385.
2
ACAYABA, Marlene. Residências em São Paulo 1947-1975. São Paulo, Romano Guerra, 2011.
3
SEGRE, Roberto. Casas brasileiras. Rio de Janeiro, Viana & Mosley, 2010.
4
Trata-se de uma expressão recorrente de Paulo Mendes da Rocha, correspondente a um texto homônimo de sua autoria, em que ele manifesta seu entendimento da cidade: é o lugar onde o conhecimento se estrutura entre campos diversos de atividades humanas.
5
SEGATINI, Maria Allesandra. Contemprarty Housing. Milano, Skira, 2008.
6
The Jetsons foi uma série animada de televisão produzida pela Hannah-Barbera nos anos 60. ver: <http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Jetsons> ou <http://www.hannabarbera.com.br/jetsons/jetsons.htm>.
7
Trata-se de um feliz neologismo para o termo blackout, que mesmo adaptado para “blecaute” caiu em desuso.
8
A nomenclatura em inglês predomina, evidenciando a prodigiosa imaginação dos corretores e muitas outras questões comerciais: garage band, fitness center, pet care, espaço gourmet, varanda gourmet e todas suas variações.
9
A reportagem “Casa na TV” aponta os seguintes programas: “Discovery Home & Care”, “Design divino”, “Cada coisa em seu lugar”, “irmãos a obra”, “Million Dollars Decorators”, “Secrets from a stylist”, dentre outros.
10
Tratam-se de três programas do canal GNT, sendo que o Casa Brasileira teve suas edições lançadas em DVD em 2012 e 2014. Casa brasileira – 1ª e 2ª temporadas. DVD GNT/Globo, Dir.: Alberto Renault, 2012; Casa brasileira – 3ª temporada, férias, especial Oscar Niemeyer. DVD GNT/Globo, Dir.: Alberto Renault, 2014.
11
Trata-se de uma nota presente na edição nº 28, da revista Módulo. Nela informa-se a existência de um programa semanal de TV: “Arquitetos na TV” exibido em São Paulo pelo então Canal 9 que entrava no ar às 20h.
12
Vide o site: <http://www.casacor.com.br/#>.
13
Nota-se que apesar dos recursos gráficos incríveis que estão hoje à disposição, há uma simplificação inacreditável dos desenhos apresentados nas revistas, com representações genéricas, sendo comum usar lupa para lê-los!
14
Ver Contato Vitruvius <http://www.vitruvius.com.br/institucional/contact>.
15
Ver <http://concursosdeprojeto.org/apresentacao/>. Existem muitos outros sites que poderiam ser apontados: <http://www.archdaily.com.br/br>, <http://mdc.arq.br/>, <http://archinect.com/>; <http://www.architectmagazine.com/>.
16
Sintomático desse processo é o lançamento do livro monográfico de Lina Bo Bardi em 1993.
17
Dentre os 20 temas da coleção figuram: “moderno”, “clássico”, “toscano”, “ecológico”, “minimalista”, “urbano”, “high-tech”, “surrealista”, “étnico” e “rústico”, dentre outros.
18
Gloria Kalil é autora de livros e editora do site Chic, ver: <http://www.chic.ig.com.br/>
19
Ver Arquitetura & Construção, dez/2013; Projeto n. 407, jan-fev/2014; Bamboo – anuário 2014.
20
Adianto que a casa está sendo tomada como pretexto para tratar diversas questões. Não me interessa, ao menos agora, explorar o projeto especificamente.
21
SMITH, Elizabeth A. T. Case Study Houses – the complete CSH program 1945-1966. Colônia, Taschen, 2009.
22
Para mais informações, o Memorial do site <http://www.spbr.arq.br> apresenta texto em inglês!
23
KOOLHAAS, Rem. Supercritical. London, Architectural Association, 2010, p.13.
24
Sobre o contexto social/cultural/econômico que gerou o Art Nouveau, ver: HOBSBAWM, Eric. Tempos fraturados. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p.142.
25
Destaca-se que Angelo Bucci fazia parte da equipe vencedora, junto com Alvaro Puntoni, Jose Oswaldo Vilela e colaboradores. In NOBRE, Ana Luiza; WISNIK, Guilherme; MILHEIRO, Ana Vaz. Coletivo. 36 projetos da arquitetura paulista contemporânea. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 36 e seguintes.
26
Sobre as linguagens pós-modernas ver JENCKS, Charles. Arquitectura internacional. Barcelona, Gustavo Gili, 1988.
27
Para dirimir dúvidas sobre estes aspectos ver: Casa e jardim – nov. 2013, “Esconde ou assume?”.
28
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. São Paulo, Edusp, 1998.
referência bibliográfica
ASCHER, François. Os novos paradigmas do urbanismo. São Paulo, Romano Guerra, 2010.
“Casa na TV”. Folha de S.Paulo, Classificados, domingo, 09/06/2013, p. F1.
COHEN, Jean-Louis. O futuro da arquitetura desde 1889: uma história mundial. São Paulo, Cosac Naify, 2013.
“Dança das cadeiras”. Folha de S.Paulo, Ilustrada, 05/01/2014, p. C1.
DOCOMOMO Journal nº.46 – “Designing modern life”, 2012.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LEMOS. Carlos A. C. A casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989.
Monolito nº. 14 – Casa de arquiteto. São Paulo, Monolito, 2013.
STEVENS, G. O círculo privilegiado: fundamentos sociais da distinção arquitetônica. Brasília, EdUnB, 2003.
TAFURI, Manfredo. Teorias e história da Arquitectura. Lisboa, Editorial Presença, 1988.
revistas
Arquitetura & construção, dez/2013
Projeto Design nº.407, jan-fev/2014
Bamboo – anuário 2014. jan/2014
Módulo nº. 28, 1961
filmes
Mon oncle. DVD. Dir.: Jacques Tati (1956). Continental Home Video.
websites
<http://www.vitruvius.com.br/>
<http://concursosdeprojeto.org/>
<http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Jetsons>
<http://www.hannabarbera.com.br/jetsons/jetsons.htm>
sobre o autor
Eduardo Pierrotti Rossetti é arquiteto e urbanista graduado na FAU/PUC-Campinas (1999); Mestre em arquitetura e urbanismo (FAU-UFBA/2002) e Doutor em arquitetura e urbanismo (FAU-USP/2007). Atualmente é professor e pesquisador do Curso de Arquitetura e Urbanismo do UniCEUB (Brasília) e está credenciado como Pesquisador-colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília –PPGAU-FAU-UnB, onde desenvolveu pesquisas de Pós-Doutorado (2008-2010). Atuou como técnico na Superintendência do IPHAN no Distrito Federal (2009-2011) e integrou o Corpo Docente da Escola da Cidade (São Paulo, 2005-2008). É autor de diversos artigos sobre arquitetura, com destaque para o livro “Arquiteturas de Brasília” (2012).