Existe certo consenso quanto ao aumento da pobreza nas cidades brasileiras. De fato, ao comparar dados de 1977 com os de 2002, Delma Neves indica que os índices aumentaram. De 40 milhões declarados pobres naquele ano para 60 milhões em 2002 (1).
Os recentes estudos a respeito do tema indicam que se desenvolve hoje com mais clareza uma busca por entendimento a respeito das questões que envolvem a pobreza urbana, o urbanismo, as políticas públicas e o desenvolvimento social.
A desigualdade social costuma ser analisada em termos das diferenças entre ricos e pobres e pensada, sobretudo, enquanto desigualdade de renda e de educação (2). Vale, no entanto, lembrar que nem todos os pobres são iguais e que é importante reconhecer a existência de desigualdades dentro da pobreza, sobretudo quando se pensa na desigualdade entre os diferentes espaços sociais e territórios de uma cidade (3).
Atualmente, nas cidades brasileiras, observamos um aumento visível de uma nova forma de pobreza. Referimo-nos a ela como uma forma que habita parques, praças, jardins, áreas verdes e, principalmente, as calçadas das ruas. Para se entender o que venha a ser esta nova pobreza, procuramos entender quais seriam suas características principais.
As definições acerca da questão modificaram-se bastante nas últimas décadas, acompanhando, de certa forma, as mudanças sócio-culturais e econômicas do país. Por outro lado, os conceitos também se modificaram, seguindo o desenvolvimento desse estudo nas Ciências Sociais, e no quadro das experiências de implantação ou omissão de Políticas Públicas.
No âmbito nacional, o estudo da pobreza na rua é relativamente recente, salvo no casos de alguns pesquisadores (4) que cuidam do assunto há mais tempo e desenvolveram pesquisas a respeito do tema, traçando um panorama mais atual do que ocorre nas cidades.
Um artigo interessante para o entendimento do tema foi o trabalho realizado recentemente por Edmond Preteceille e Lícia Valladares, em que é abordada a heterogeneidade da pobreza nas áreas das favelas. O estudo traz à luz questões que nos fazem refletir sobre a visão de uma heterogeneidade dos pobres. A desigualdade social costuma ser analisada em termos das diferenças entre ricos e pobres e pensada sobretudo enquanto desigualdade de renda e de educação (5).
No entanto, vale lembrar que nem todos os pobres são iguais e que é importante reconhecer a existência de desigualdades dentro da pobreza, sobretudo quando se pensa na desigualdade entre os diferentes espaços sociais e territórios de uma cidade (6).
Neste caso, os dados indicam que a pobreza, no Rio de Janeiro não está circunscrita às favelas, havendo diversas localizações para sua ocorrência. Por outro lado, observa-se que existem diferenças hierárquicas, de localização, dentre outras que os tornam diferentes entre si. Este fato também pode ser comprovado, talvez em menor grau, com relação aos moradores de rua. Coexistem diferenciações entre os moradores de rua e dentro destas, há uma variada composição de fatores como localização, hierarquia, renda, educação, tempo moradia na rua, status.
Considerando-se num plano mais geral os motivos que levam ao aumento da pobreza urbana, dentre eles podemos destacar a situação econômica, a falta de políticas públicas para a habitação de baixa renda, políticas públicas nacionais para geração de renda e emprego, além de políticas nacionais de segurança pública.
No mapa 2 (7) temos uma visão geral da ocupação que é feita pelos moradores de rua no centro da cidade do Rio de Janeiro. O motivo de encontrarmos essa grande ocupação dos moradores de rua nesta área se deve principalmente a: I. Segurança. A área em questão é iluminada o suficiente para impedir violências e agressões de outros grupos; II. É estrategicamente posicionada a fim de facilitar o acesso à distribuição de alimentos, donativos e auxílio das diversas entidades como a Fundação Leão XIII, Médico Sem Fronteiras, a Sociedade Muçulmana, o Salão Violeta, dentre outras que diariamente os auxiliam e III. Estar na área central da cidade, próximos de bares, lanchonetes, restaurantes, escritórios, lugares que oferecem maiores possibilidades de permanência na cidade. Estar no centro da cidade do Rio de Janeiro propicia, além das vantagens acima, estar próximo e em um ponto eqüidistante para caminhar, fazer as trajetórias para a busca por alimentos, equipamentos, ajuda e ainda para o trabalho. Também há de se observar que a área central da cidade é a região que talvez ofereça o maior número de parques, áreas verdes, praças, jardins, enfim, toda a diversidade de espaços públicos de que a cidade dispõe. O poder público tem mais tolerância, permite ou pelo menos “suaviza” a fiscalização nestes espaços. No mapa 3, observamos a ocupação feita pelos moradores nessa área central da cidade. Vemos que a maioria dos espaços públicos está ocupada pelos moradores de rua. No mapa, as áreas em verde correspondem aos espaços públicos (parques, praças, largos e etc.), as áreas em amarelo indicam as calçadas, e as áreas em branco, as ruas. Observem que praticamente em todas as áreas verdes há uma ocupação. Além de praças que são temporariamente ocupadas, temos as calçadas que no mapa podemos identificar com clareza. Além da área focal da pesquisa em questão podemos observar que calçadas são ocupadas em diversos pontos da área central da cidade. Deve ser, ainda, observada a ocupação que os moradores de rua fazem na cidade através dos seus usos e trajetórias cotidianas. Os usos estão diretamente ligados à apropriação desses espaços e às necessidades básicas de sobrevivência tais como a higiene pessoal e a alimentação, além da busca por renda em trabalhos precários e temporários, que permitem muitas vezes auferir o rendimento que lhes possibilita maior chance de sobrevivência nas ruas. Ao observarmos a apropriação feita pelos moradores de rua na área focal da pesquisa, verificamos que estes fazem uso de áreas públicas bastante diferenciadas. No mapa 4 é visível que há uma grande concentração na Avenida Presidente Vargas, no trecho compreendido entre as Ruas Uruguaiana e Miguel Couto.
A apropriação espacial é feita sob diversas formas. Em amarelo está delineada a ocupação do espaço público que é feita após as 19:00 horas e durante os finais de semana. Esta ocupação é feita basicamente pelos moradores de rua quando estes se utilizam dos dutos de ventilação do metrô para secarem suas roupas. Há também o uso desta área (em amarelo no mapa) para higiene pessoal, uma vez que a Rua Uruguaiana disponibiliza uma torneira com saída de água onde é possível tomar banho. Há ainda, na Rua Miguel Couto, a distribuição de alimentos e donativos, que é feita quase todos os dias.
Ainda neste mapa, podemos observar que a área focal da pesquisa é ocupada basicamente por comércio que em sua maioria fecha às 19:00 horas e por bancos que às 16:00 horas cessam seus expedientes. É interessante notar que onde os serviços e o comércio fecham mais cedo, há uma maior facilidade de apropriação feita pelos moradores de rua. Os locais onde os serviços ou comércio têm horários que ultrapassam o horário padrão, ou onde existe movimento de pessoas, a apropriação é pouca ou até mesmo inexistente - como no local onde se encontra o Hotel Guanabara, na esquina com a Avenida Rio Branco, cuja frente não é ocupada devido ao movimento de pessoas e à forte iluminação. O mesmo ocorre na esquina da Rua Uruguaiana com a Avenida Presidente Vargas, onde a lanchonete fecha somente após as 22:00 horas, dificultando a ocupação nesta área.
A reunião do grupo neste local, todos os dias, formando quase que um compromisso diário, de certa maneira reproduz o mundo existente em casa e criam um território. Sobre isto, Da Matta (8) nos fala:
“Rua e casa se reproduzem mutuamente, pois há espaços na rua que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou pessoas, tornando-se sua ‘casa’, ou seu ‘ponto’” (9).
Ao retomarmos a afirmação acima sobre a apropriação, podemos afirmar que essa apropriação pode ser chamada de temporária, pois durante o dia o local é ocupado por outros personagens, já à noite serve de abrigo para os moradores de rua . Um dos materiais utilizados nessa ocupação temporária é o papelão, o grande favorito entre os moradores de rua. Entre as vantagens estão a de poder “levar” a casa ou a cama para qualquer lugar, permitindo uma rápida desmontagem em caso de emergências, e podendo ser facilmente carregado debaixo do braço ou ainda guardado por um conhecido. O fato de dormirem em papelões e não em colchões, evidencia a preocupação em não demonstrar estarem desabrigados ou morando nas ruas, segundo um dos moradores:
“Colchão fica feio também. Todo mundo vê que você está na rua” (10).
Ao mapearmos os diversos trajetos, podemos observar o quanto certos moradores caminham até conseguir alcançar seus objetivos, que na maioria das vezes se resume a uma refeição. Observamos que alguns fazem esta cruzada diária percorrendo alguns quilômetros, outros chegam até bairros vizinhos, já outros bastam andar em um raio de aproximadamente 300 metros do local de moradia.
No mapa 5 observamos com maior clareza os diversos trajetos realizados por integrantes do grupo estudado. Neste mapa, podemos observar de que forma cada morador de rua se apropria do espaço urbano da cidade.
Em azul escuro, podemos ver a trajetória de Jorge, morador do grupo estudado que todos os dias se desloca do centro da cidade na Avenida Presidente Vargas até Campo Grande para trabalhar como ambulante. Foi considerado no mapa o trajeto desenvolvido pelo trem, pois como os trajetos do ônibus e do trem são bastante parecidos, optou-se por colocar o trajeto do segundo, embora Jorge faça a maior parte da sua viagem de ônibus. Em vermelho podemos notar o trajeto de Manuel Antônio, que faz este percurso do Centro a Botafogo a pé, para almoçar na Irmandade Zoé. Ele vai para almoçar ou tomar um lanche e volta para dormir todos os dias na Avenida Presidente Vargas. Em azul claro está descrito o trajeto da maioria deste grupo, para tomar banho. Este trajeto inclui a ida até o reservatório da Cedae. Em preto está designada a trajetória feita por cerca de três moradores do grupo. Já o trajeto em branco é de João. Ele realmente procura se utilizar de todos os recursos de que a cidade dispõe. Este trajeto é descrito pela ida diária de João da sua moradia, Avenida Presidente Vargas, até a sua área de trabalho, localizada à Avenida Rio Branco, ou seja, a poucos metros dali. E aos finais de semana, completa seu trajeto junto a hotéis da Central do Brasil. Certamente o percurso que mais impressiona, independentemente de ser executado de trem ou de ônibus é o trajeto feito pelo morador de rua Jorge. Durante a noite ele mora nas calçadas, ocupa o espaço urbano da cidade. Durante este tempo ele está circunscrito dentro do espaço público como morador, utilizando-se do que a cidade pode lhe oferecer: abrigo, comida, convívio com sua rede de relacionamentos, reafirmando desta maneira sua territorialidade. Durante o dia, este deixa a condição de morador de rua para alcançar a condição de trabalhador de rua devidamente certificado por órgãos do poder público. Estamos diante de um verdadeiro paradoxo. O mesmo agente - no caso o poder público - que ordena o território e zela pela sua segurança, o faz segundo duas dimensões bastante contraditórias. Na primeira dimensão legitima uma apropriação segundo relações formalizadas, onde o trabalho é legalizado – Jorge é um ambulante legalizado. Na segunda, legitima uma apropriação informal embora no seu discurso indique tal apropriação como ilegal – Jorge é um morador de rua.
A trajetória descrita acima oferece-nos um panorama acerca da escala que estas trajetórias podem alcançar. Como podemos observar no mapa anterior, existem percursos que, independentemente de serem feitos de ônibus, são, para os moradores das ruas, uma verdadeira afirmação de que embora aí estejam, não se encontram totalmente na informalidade. Sair todos os dias para trabalhar, indica uma rotina que é totalmente contrária à imagem que estigmatiza os moradores de rua como “irregulares “ e “informais”. Ao nos aproximarmos mais detalhadamente destas trajetórias, identificamos certos rituais que são próprios da vida na casa (11). Estes são delineados basicamente pelos cuidados com a higiene pessoal e cuidado com a aparência, dentre outros. Nesta situação, o morador de rua apropria-se dos espaços urbanos da cidade de maneira a garantir a satisfação de suas necessidades e cuidados descritos anteriormente.
Estes trajetos são comuns a praticamente todos deste grupo, salvo o morador de rua Jorge, que faz outra trajetória já brevemente descrita acima e mais detalhada posteriormente. Ao detalharmos as trajetórias, descobrimos, através das entrevistas, dois personagens que nos trouxeram informações bastante significativas a respeito da relação do morador de rua com o espaço urbano e a cidade. O primeiro deles é o Paulista Jorge, 61 anos, vindo de São Paulo, já possuiu carteira assinada, contribui com o INSS e já é contribuinte há 33 anos. Este morador de rua tem uma vida bastante peculiar e interessante.
Jorge faz um itinerário que pode ser considerado por muitas pessoas como um percurso bastante desgastante, até mesmo para os cidadãos oficiais da cidade, até mesmo para os que tendo casa, chegam a ela e podem desfrutar de conforto e segurança.
O outro morador de rua que também nos trouxe dados bastante significativos e que também integra o grupo estudado, foi João Luiz Cordeiro. João tem 45 anos e está nas ruas há cinco meses, saiu de casa por motivos familiares, brigou com a família, deixou filhos e hoje é um morador de rua.
Este morador de rua também tem uma história bastante diferente dos demais integrantes deste grupo. João trabalha como bilheteiro (pessoa que entrega pequenos papéis de propaganda), no Centro do Rio, mais precisamente na Avenida Rio Branco, de bastante movimento. João trabalha de 7:00 da manhã até 18:00 da tarde. De noite, após as 19:00, vai como todo o resto deste grupo tomar banho na Rua Uruguaiana, onde fica uma saída de água que é abastecida da rua e está sendo utilizada pelos moradores de rua há já um certo tempo. Após isto, João seca suas roupas nos dutos de ventilação do Metrô, também localizado à Rua Uruguaiana. Um fato que o distingue dos demais é que, aos finais de semana, João e sua companheira deixam a dura vida nas ruas para se hospedarem nos hotéis localizados junto à Central do Brasil. Hotel Brilhante, Hotel Santos Dumont e Hotel Campos são os preferidos por João. As diárias variam de R$ 16,00 durante a semana até R$18,00 reais nos finais de semana. Ao ser perguntado por que ele se hospeda nos hotéis, responde sem pensar:
“No hotel tem cama com colchão, televisão, cine privê e o mais importante: água quente.”
De maneira análoga, os espaços públicos de outras áreas são também ocupados por outros grupos, em diversos locais da cidade onde há ocorrência da população de rua. Como no caso da Rua Uruguaiana, onde somente após as 19:00 são realizadas as tarefas relativas à higiene pessoal.
Estas atividades são realizadas também próximas ao canal do mangue, após a estátua do monumento a Zumbi dos Palmares. Enquanto a atividade de banho pode ser realizada à Rua Uruguaiana (vide mapa 7) para banhos mais rápidos e que não necessitem ficar totalmente despidos. Para banhos mais demorados e com maior privacidade é utilizada a ducha da Cedae, localizada junto à Estação da Leopoldina (vide mapa 6).
Ao observarmos a ocupação dos moradores de rua no espaço urbano, no espaço da cidade, notamos que apesar do grupo estudado se encontrar em semelhante condição, nas ruas, cada morador de rua é único. É único em suas trajetórias, suas histórias, seus motivos para estarem nas ruas, seu local de moradia nas ruas.
Através dos mapas observamos que a apropriação dos espaços na grande maioria dos casos é bastante diferenciada. Enquanto alguns executam suas tarefas diárias num raio de aproximadamente 250 metros, que compreende o entorno imediato que vai da Rua Miguel Couto até a Rua Uruguaiana, outros o fazem a partir de um raio de aproximadamente três quilômetros. Outros ainda ultrapassam os limites do Centro e dos Bairros próximos, como no caso do morador de rua Jorge.
Outro dado que o mapeamento das atividades nos forneceu foi poder visualizar de forma mais clara como alguns moradores respeitam e mantêm certos rituais de privacidade e organização do território onde vivem (12).
“A compreensão das relações em jogo no chamado espaço público incorpora, por conseguinte, o entendimento dos princípios hierarquizados e de regras de inserção e de convivência em universos sociais que coexistem sob tensões. Os universos se diferenciam conforme os recursos disputados, a maior ou menor concorrência em torno deles e a adequação à convivência com superpostas ordens de valores coexistentes. Cada universo corresponde às investidas sobre determinadas formas de territorialização, à construção e ao cumprimento de acordos mais ou menos tácitos para assegurar seu reconhecimento. Portanto, pressupõe a construção e o domínio do código de uso de territórios e de suas formas de defesa” (13).
Assim, entender a relação entre os diversos atores é importante, pois dela depende uma tomada efetiva de decisões que irão validar políticas que conectem de maneira duradoura, eficaz e cidadã, moradores de rua e a cidade.
O espaço urbano e o morador de rua: algumas conclusões
A rua na pobreza ou a pobreza na rua? Mais que um mero jogo de palavras, o que observamos nas atuais cidades brasileiras é o expressivo crescimento de uma nova forma de pobreza urbana. A pobreza que invade a cidade formal se estabelece, impõe e é visível diariamente aos nossos olhos. Vimos que ela está visível aos nossos olhos porque está em um local público – a rua. E, precisamente por esse atributo, tudo que nela acontece ganha visibilidade (14).
Procuramos trazer algumas definições acerca dos diversos nomes que eram e ainda são empregados, para denominar os atuais moradores de rua nas cidades brasileiras. Observamos que existem denominações que são empregadas, mas que não satisfazem a real situação do morador de rua como, por exemplo, “morador em situação de rua”. Acreditamos que esta definição não cabe, frente à realidade das complexas e diferentes formas de ocupar as ruas da cidade. Além disto, a expressão “em situação de rua” pressupõe uma situação temporária e casual, porém, como já mencionado anteriormente, existem pessoas que estão há vários anos nas ruas. Existem moradores que estão dormindo nas ruas há mais de dez anos – uma geração nas ruas. Assim sendo, ao nosso entendimento, pouco importa se a pessoa tem casa, se possui alguns poucos bens, ou até se durante os finais de semana dorme em hotéis pagos pelos próprios parcos recursos, ou se, ainda, dorme em hotéis pagos pelo poder público. Essa pessoa está, inevitavelmente, em uma condição de extrema vulnerabilidade, em que a rua é o principal lastro acolhedor e garantidor de sua sobrevivência. É para lá que ela volta quando os programas assistenciais não conseguem dar respostas efetivas frente à dramática situação da pobreza na rua. É na rua, também, que a massa hoje estimada, somente na Cidade do Rio de Janeiro, em 10.000 (dez mil pessoas) (15), obtém recursos para sobreviver.
Como foi observado nesta pesquisa, existem programas e projetos direcionados para esta população. Projetos e programas executados tanto por órgãos estaduais, quanto por órgãos municipais, que têm por objetivo resolver o problema. Porém o que se observa é a persistência do problema.
Não é objetivo deste trabalho discutir e avaliar os programas e projetos do poder público frente a este universo, porém observamos que é sintomático que estes vários programas e projetos, descritos neste estudo, não estejam conseguindo uma substancial redução da população residente nas ruas da cidade.
Devido à alta procura dos usuários, programas assistenciais que pretendem dar auxílio e resolver o crônico problema dos moradores de rua são iniciados e encerrados constantemente, como afirmou em entrevista um dos responsáveis por esses programas. Ao longo deste trabalho, nas entrevistas com representantes dos programas não foi mencionada qualquer política habitacional – federal, estadual ou municipal – que viesse atender a esta parcela da população. Em contrapartida a este vácuo de políticas públicas, percebe-se o crescimento de entidades religiosas e de ONG’s que estão atuando nesse problema, sendo efetivamente conhecidos e procurados pelo morador de rua.
Como assinalou Neves (16), a existência de um “jogo que é jogado no espaço público”, implica o entendimento das diversas relações existentes nesse campo. Desse modo, a ocupação dos espaços públicos pelo morador de rua nas cidades é feita através de diversas inflexões, impostas pelos fatores econômicos, sociais, políticos e culturais. Para que se tenha um resultado efetivo, é imprescindível, portanto, que as políticas públicas voltadas para o atendimento da população de rua interajam com estes diferentes e correlatos universos. Políticas que ofereçam uma melhor conexão entre os diferentes universos envolvidos e não apenas atendam às necessidades mínimas, como uma refeição e uma noite bem dormida. Alimentação e cuidados básicos são fundamentais, porém são insuficientes para que haja uma reversão do atual cenário.
Cabe ressaltar, ainda, que os atuais projetos de intervenção urbanística, implementados até o presente momento, não se conectaram com esta parcela da população. Em parte porque as pesquisas são precárias nas três esferas da administração pública: não permitem a construção de um retrato fiel de quem são estas pessoas, nem identificam quais são suas reais necessidades, e nem apontam quais são os caminhos mais viáveis para a sua reintegração na sociedade.
Desta maneira, é imperativo que os novos projetos urbanos e programas sociais incluam de maneira efetiva moradores de rua em seu planejamento e em suas ações. Enquanto as políticas públicas se reduzirem a ações como a colocação de pedras sob viadutos, tentando eliminar a inconveniente presença dos moradores de rua, as cidades refletirão o desordenado crescimento da pobreza urbana, com conseqüentes conflitos para o espaço público.
Pretendemos, neste momento, responder à pergunta feita inicialmente em nossa pesquisa: atualmente, o que é ser um morador de rua?
Atualmente, ser um morador de rua é fazer parte de um novo tipo de pobreza que cresce a cada dia. É fazer parte de um contingente de pessoas que ocupam os espaços públicos disponíveis para eles. Ou seja, áreas públicas que ainda não foram cercadas ou fechadas por grades e portões. É fazer destas áreas seus territórios de sobrevivência, nelas criando e mantendo redes de solidariedade que são fundamentais para o cotidiano.
O presente trabalho nos trouxe algumas revelações que, muito provavelmente, não fazem parte do que o senso comum atribui às pessoas que vivem nas ruas. No presente estudo observou-se que os moradores de rua, apesar de estarem visivelmente em precária situação e de serem marcados fortemente por vulnerabilidades, temporalidades e informalidades, possuem uma vida bastante formal para os padrões acima mencionados. Apesar de estarem diariamente na informalidade, em determinadas situações, os moradores de rua apresentam vínculos mais formalizados, como o trabalho legalmente constituído, exercido por alguns, e a busca por formas de abrigo que se contrapõem às condições impostas pela rua, ou, ainda, o planejamento semanal para despesas com acomodação. Podemos observar, portanto, que apesar de estarem nas ruas, não significa que tenham perdido totalmente alguns aspectos da formalidade da vida cotidiana.
Este fato pôde ser observado através dos relatos dos moradores de rua, onde foram descritas as suas rotinas. O grupo estudado mostrou bastante apego aos rituais cotidianos: dormir com roupa específica, como se fosse um pijama; guardar a melhor roupa para sair com a companheira; tomar banho antes de dormir; escovar os dentes após as refeições e antes de dormir; não fazer suas necessidades fisiológicas próximas ao local de “moradia”; ou, ainda, não dormir sobre o colchão, pois este identifica quem está na rua e, como afirmou um dos entrevistados, “não fica bonito”. São gestos e afirmações impregnadas dos significados próprios dos rituais da casa (17) e que têm, também, a função de preservar a autoestima. Essa “formalidade” não é claramente percebida por quem caminha pelas ruas. Não é percebida por quem os observa de longe. Ela só é percebida por quem os vê de perto. E de perto vemos a vulnerabilidade, a instabilidade, a dureza, mas observamos, também, solidariedade, uma certa formalidade, além das expectativas de pessoas que estão à margem, mas procuram não perder o leito da vida.
Outro fato observado foi a adequação à cidade que fazem os moradores de rua. Vimos que, enquanto partes da cidade acolhem este morador de rua, outras o repelem. Contudo este usuário da cidade a reutiliza, a readequa de acordo com suas necessidades, conferindo-lhe novos usos como no caso dos exaustores de ventilação do Metrô, que são utilizados para secar as roupas lavadas durante os finais de semana. Ou ainda os banhos tomados em torneiras e bicas espalhadas pela cidade. O centro da cidade que se presumia parado, calmo , aguardando o novo dia para recomeçar as suas atividades, na verdade não para. Seja durante a noite, madrugada ou final de semana, está permanentemente em uso por esta parcela da população.
Quanto às áreas públicas, a pesquisa mostrou que estes espaços estão sendo apropriados por uma nova forma de pobreza nas metrópoles brasileiras. São novos pobres expulsos de suas casas que compõem atualmente o novo retrato da miséria, vivendo nas ruas em condições de extrema vulnerabilidade. As implicações deste novo quadro de pobreza para o espaço público da cidade são as piores possíveis. A relação entre espaço público e cidadania é bastante estreita. Uma está diretamente ligada à outra. A cidadania de um povo está refletida em seus espaços públicos. Ora, se estes espaços estão sendo reorganizados, transformados, fragmentados e apropriados de maneira que se tornem privativos, o espaço mediador, o espaço da cidadania, tenderá a diminuir, configurando, assim, o “recuo da cidadania” (18). Um recuo que também é promovido pelo quadro dramático da pobreza nas ruas.
notas
NE
O presente artigo é inédito, contudo, foi extraído da dissertação de Mestrado apresentada em 2006, na Escola de Arquitetura e urbanismo EAU-UFF, na Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói- RJ, Sob orientação da Prof. Dra. Maria Laís Pereira da Silva e Co-orientado pelo Prof. Dr. Gerônimo E. Leitão.
1
Delma Peçanha Neves indica estes dados, tomando por base fontes do IBGE (1996 & 2000), de Ricardo Henriques (2000) e Sônia Rocha (2003) (NEVES, 2004)
2
Ainda segundo Preteceille e Valladares, no Brasil, há também estudos sobre a desigualdade de gênero, de cor ou a desigualdade ante ao mercado de trabalho. No entanto predominam os estudos que se concentram nas dimensões da renda e da educação.
3
RICARDO, Henriques, (organizador), VALLADARES, Lícia, PRETECEILLE, Edmond et al. In Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro, IPEA, 2000. p.459.
4
MARTINS Lucas, Ana Lúcia, Livres acampamentos da miséria. Editora: Obra aberta –1993., NEVES, Delma Pessanha, Os miseráveis e a ocupação dos espaços públicos. Cadernos CRH. Volume 30-31. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999, RODRIGUES, José Augusto, SOUZA Filho, Dario de. Perfis e mapeamento de populações de rua do Rio de Janeiro: Padrões de sociabilidade e funções sócio-espaciais de usos da rua. Relatório Final. Vice-governadoria do Estado do Rio de Janeiro. Convênio firmado entre FAPERJ E UERJ, realizado pelo Departamento de Ciências Sociais – Quantidados. Rio de Janeiro. 1999.
5
Ainda segundo Preteceille e Valladares, no Brasil, há também estudos sobre a desigualdade de gênero, de cor ou a desigualdade ante ao mercado de trabalho. No entanto predominam os estudos que se concentram nas dimensões da renda e da educação.
6
Idem à nota 3.
7
Mapa 2: mapa de ocupação da população de rua na área central da cidade do Rio de Janeiro – Avenida Rio Branco, Presidente Vargas e arredores, ano 2004, 2005 e 2006. Fonte: Levantamento realizado pelo Autor, 2006.
8
A respeito dos rituais da casa e da rua ver DAMATTA, Roberto. A casa e a rua, Editora Guanabara, RJ, 1985.
9
Idem. p. 47.
10
Depoimento fornecido pelo morador de rua João Luiz Cordeiro ao Autor e Flávio Bruno Ganime no primeiro dia de entrevistas.
11
Idem à nota 9.
12
Idem.
13
NEVES, 1999:3.
14
Gomes, Paulo César da Costa. A condição Urbana: Ensaios de geopolítica da Cidade. Rio de janeiro. Bertrand Brasil. 2002.
15
Estimativa feita pelo Coordenador da pesquisa realizada em 1999, Dario de Souza, em entrevista concedida para o autor.
16
NEVES, Delma Pessanha, Os miseráveis e a ocupação dos espaços públicos. Cadernos CRH. Volume 30-31. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1999.
17
Idem à nota 9.
18
Idem à nota 15.
sobre o autor
José Roberto de Oliveira é mestre pela Escola de Arquitetura e urbanismo EAU-UFF, na Universidade Federal Fluminense, Niterói.