Introdução
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre três questões relacionadas ao uso de programas computacionais paramétricos no ensino de projeto de arquitetura: 1. a concepção de edificações com geometrias complexas; 2. a produção contínua de modelos físicos como parte indissociável do processo de projeto; 3. a formulação de exercícios procurando explorar potencialidades dos programas, e dos modos de projetar e construir que eles pressupõem. Apóia-se no exame da experiência didática, em curso desde 2011, no âmbito da disciplina obrigatória "Projeto 3: Arquitetura, cidade, paisagem", do curso de graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, IAU-USP, sob a responsabilidade dos Profs. Drs. Marcelo Tramontano e Renato Anelli. Parte das atividades da disciplina beneficia-se do resultado de estudos e experimentações sobre design paramétrico e fabricação digital em curso no Nomads.usp, Núcleo de Estudos de Habitares Interativos (www.nomads.usp.br), da mesma instituição. A pesquisa aqui abordada deriva de resultados do projeto de pesquisa em Políticas Públicas "Territórios híbridos: comunidades, ações culturais e meios digitais" (proc. FAPESP 09/51457-5, 2011-2014), coordenado pelo autor, no Nomads.usp.
O artigo concentra-se no ensino de projeto de edificações com formas complexas. Trata-se, como se sabe, de formas e espaços pouco presentes na paisagem urbana nacional, ainda que estabeleçam diálogo com diversos exemplos das arquiteturas moderna e vernacular brasileiras. Mais do que em outros países onde tais formas têm sido igualmente estudadas e produzidas, é possível identificar, na obra brasileira de vários arquitetos de filiação moderna, o desejo de explorar formas arquitetônicas não-ortogonais que, segundo seu próprio discurso, lhes teriam sido sugeridas por características paisagísticas, climáticas, sociais e culturais específicas. É fundamental notar que o enfrentamento dos desafios impostos pela busca de soluções técnicas capazes de viabilizar a execução de tais projetos constitui um expressivo denominador comum entre esses arquitetos.
Exemplifica essas posturas o trabalho de João Filgueiras Lima, Severiano Porto, Eladio Dieste e Oscar Niemeyer, entre outros. Em seus projetos de hospitais para a Rede Sarah, João Filgueiras Lima "Lelé" desenhou formas curvas em função da direção e velocidade dos ventos e da incidência de insolação, estudadas por diversos pesquisadores (1). Com vistas à produção seriada dos edifícios e seus componentes, Lelé desenvolveu sistemas construtivos leves de argamassa armada, concreto e aço para materializar suas formas, concebendo e implementando linhas de produção em diferentes cidades do Brasil, onde os projetos foram executados. Severiano Porto explorou um repertório formal e construtivo a partir de suas observações e vivências da cultura e da arquitetura indígenas (2), utilizando madeira – roliça, aparelhada e em cavacos –, palhas e outros materiais facilmente encontrados na Amazônia. Projetos como os do Centro de Proteção Ambiental de Balbina, ou do Espaço de Convívio Comunitário da aldeia SOS, ambos no estado do Amazonas, são excelentes exemplos do emprego de geometrias complexas associado ao uso de materiais e técnicas construtivas locais. O uruguaio Eladio Dieste pouco construiu no Brasil, mas sua obra em cerâmica armada constitui uma referência importante na formação de arquitetos brasileiros. Fiel a um compromisso político que buscava a transformação social através da valorização de procedimentos construtivos semi-artesanais, Dieste entendia a forma arquitetônica como linguagem de comunidades que anseiam expressar-se, e a obra construída como resultado da cooperação – inclusive no canteiro de obras – entre arquitetura, engenharia e saberes locais (3). Dentre os quatro arquitetos aqui mencionados, Oscar Niemeyer foi o que mais claramente explicitou suas referências formais. Em seu famoso Poema da Curva, declara que o que o atrai "é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada."(4). Em outro escrito, expressa sua convicção de que novas formas e novas técnicas estariam intimamente conectadas: "A forma plástica evoluiu na Arquitetura em função das novas técnicas e dos novos materiais que lhe dão aspectos diferentes e inovadores, [...] as formas livres e inesperadas que o concreto permite e os temas modernos solicitam.” Mas não deixa de reafirmar o protagonismo da estética e de valores simbólicos em suas curvas: "Para alguns, é a função que conta; para outros, inclui a beleza, a fantasia, a surpresa arquitetural que constitui, para mim, a própria Arquitetura." (5) A materialização de vários de seus projetos exigiu grandes esforços técnicos, em especial no que diz respeito à execução de cúpulas e estruturas curvas, estimulando o trabalho conjunto entre arquitetura, engenharia e indústria de componentes construtivos. O projeto das cúpulas do Congresso Nacional, em Brasília, é um exemplo maior dessa estreita colaboração no plano técnico-construtivo visando a produção de uma forma arquitetônica com forte significado para o país(6).
1. Da concepção de edificações com geometrias complexas
Arquitetura e formas complexas
Parece ser crescente, ainda que pequeno, o número de cursos de arquitetura brasileiros em que programas computacionais paramétricos são utilizados nas disciplinas de projeto. Mesmo que seu uso assegure uma grande diversidade formal arquitetônica, as chamadas geometrias complexas ou geometrias não-euclidianas, cujas formas são constituídas por múltiplas curvaturas, ainda são comumente confundidas com o próprio conceito de parametrização em arquitetura. Essa confusão vem, em parte, do fato de apenas recentemente a arquitetura ter-se aberto à exploração de tais formas, interessando-se por imaginar edificações cuja forma diferiria das formas planas da geometria euclidiana, consolidadas como repertório dos arquitetos ocidentais desde fins do século XIX e início do século XX, na Europa e, em seguida, em várias partes do mundo, pela Arquitetura Moderna.
Seria necessário lembrar que a ortogonalidade então proposta, associada às ideias de racionalização das construções e ao uso extensivo do concreto armado e do aço como materiais modernos por excelência, tornou-se, desde então, o norte de toda a indústria da construção que, por sua vez, passou a conceber inúmeros sistemas construtivos reunindo componentes cujo desenho baseia-se, muito frequentemente, na geometria plana e nas ligações a 90 graus. Linhas de produção inteiras ao redor do mundo adequaram-se a essa lógica, alimentando mercados imobiliários cada vez mais vorazes que, ao buscar aumentar sua capacidade de produção de edifícios nas cidades, chancelam e encorajam, como bem observou Anitelli (7), a simplificação formal e construtiva pressuposta por grande parte de tais sistemas, inibindo, intencionalmente, investigações formais em arquitetura.
De fato, formas geométricas cujas superfícies são geradas através de NURBS (Non-Uniform Rational Basis Surfaces) fazem parte, há décadas, do vocabulário formal e do repertório instrumental de diversos campos disciplinares, particularmente daqueles ligados à produção gráfica e industrial, como as engenharias e o design. Seu uso é familiar aos usuários de programas gráficos comumente instalados em computadores pessoais, mas, apenas recentemente, em função da viabilidade de sua produção física, proporcionada pelas técnicas de fabricação digital, passaram a ser exploradas mais amplamente como possibilidades formais em arquitetura.
As curvas que compõem uma NURBS são representações imagéticas de funções matemáticas definidas através das chamadas equações paramétricas. Por serem compostas de parâmetros, aos quais diferentes valores podem ser sucessivamente atribuídos, é possível alterar a forma das curvas a cada vez que esses valores forem modificados. A esse processo de definição de parâmetros e dos seus valores na construção de uma forma geométrica, dá-se o nome de parametrização. No caso de seu uso para a criação de formas arquitetônicas, costumam-se usar as expressões "projeto paramétrico" ou, mais comumente, "design paramétrico".
Arquitetura e parametrização
Os recentes programas computacionais paramétricos possuem duas funções que interessam, particularmente, ao processo de projeto em arquitetura:
- automatizam a alteração dos valores atribuídos aos parâmetros, fornecendo instantaneamente, na tela do computador, a imagem gráfica da forma que corresponde à equação utilizada.
- relacionam os diferentes objetos desenhados, que podem ser as diversas curvas que compõem uma mesma superfície, permitindo que, ao alterarem-se valores em uma delas, a forma da superfície se altere como um todo, adequando automaticamente os valores das demais curvas.
O que é, no entanto, fundamental de ser entendido, especialmente por arquitetos, é que o objeto geométrico concebido com auxílio da parametrização não precisa ser necessariamente composto de formas curvas. Qualquer elemento de um projeto convencional – portas, paredes e dutos, por exemplo –, se modelado em um programa paramétrico, terá suas dimensões automaticamente readequadas sempre que as dimensões de outros elementos do modelo forem modificadas pelo projetista. Os programas de modelagem que funcionam em plataforma BIM são um exemplo disso, utilizados em outros exercícios da disciplina de Projeto 3 que não serão abordados nesse artigo. Por essa razão, chamar arquiteturas que exibem formas complexas de "arquiteturas paramétricas" é, antes de mais nada, um erro que denota uma compreensão parcial do conceito de parametrização.
Processos de projeto
Entre processos convencionais de projeto e processos que se utilizam de programas paramétricos, há, portanto, algumas diferenças significativas que precisam ser consideradas no ensino de projeto. Elas implicam em uma mudança de atitude do arquiteto em relação ao próprio processo de concepção, como se verá a seguir.
De geometria plana ou complexa, os elementos construtivos modelados com auxílio de programas paramétricos são sempre representados e, portanto, concebidos tridimensionalmente, no jargão arquitetônico. Em outras palavras, o arquiteto desenha (e altera) elementos construtivos tridimensionais, e não pontos e linhas como ocorre no uso de programas gráficos não-paramétricos. Isso exige que ele especifique de maneira mais precisa as características de cada elemento, pressupondo uma importância grande do saber técnico-construtivo desde o início do processo de concepção.
Outra diferença expressiva é que, como a alteração de valores em um parâmetro engendra automaticamente alterações no objeto projetado como um todo, o processo de projeto passa a constituir um diálogo entre o arquiteto e o programa, já que a cada ação sua corresponderá uma resposta gráfica do programa, contendo informações sobre o projeto talvez inesperadas. Prosseguindo o diálogo, cabe ao arquiteto concordar ou não em incorporar ao projeto as alterações efetuadas pelo programa, em função das premissas pré-definidas para o espaço arquitetônico em questão. No caso das NURBS, cuja forma é controlável a partir de pontos que podem não fazer parte da superfície desenhada, a distância em relação à maneira como arquitetos usualmente desenham formas é ainda maior.
Essa característica dialógica do processo de concepção de arquiteturas com formas complexas traz em si a particularidade do design paramétrico talvez mais difícil de ser assimilada por arquitetos. Foi dito acima que os programas atualizam automaticamente a forma como um todo, a cada alteração dos valores dos parâmetros efetuada pelo projetista. Na realidade, o programa recebe essas alterações e as processa através de scripts que o arquiteto escolhe a priori, em função do objeto que quer construir. Scripts são conjuntos de algoritmos matemáticos que, por sua vez, controlam a posição no espaço de cada um dos infinitos pontos que compõem o objeto geométrico. Raros são os arquitetos que concebem ou participam da concepção dos scripts que utilizam, costumeiramente produzidos por profissionais com formação em ciência da computação ou informática. Como é o script que interpreta, por assim dizer, as intenções do arquiteto e as traduz graficamente em proposições formais, pode-se dizer que o autor do script é, em alguma medida, co-autor do projeto de arquitetura.
2. Da produção contínua de modelos físicos como parte indissociável do processo de projeto
Trilhando caminhos que ainda lhe são tão pouco conhecidos, tanto em termos de procedimentos e de atitudes requeridas, quanto em relação ao próprio desenho dos espaços e edificações que projeta, o estudante de arquitetura necessita de modelos físicos que o auxiliem durante o processo de projeto com formas complexas, por várias razões. A produção contínua de maquetes e modelos permite melhor compreender as edificações que estão sendo desenhadas, cujas formas e os espaços que elas definem fazem parte, nesse caso, de universos talvez absolutamente desconhecidos pelo aluno. Em geral, em processos convencionais de projeto, o conhecimento prévio das principais questões envolvidas no processo é requerido, assim como a capacidade de abstração para se pré-visualizar, tão precisamente quanto possível, um lugar físico que ainda não existe. Ao se lidar com arquiteturas com formas complexas, o modelo físico pode ser de grande valia na busca dessa pré-visualização, mais até do que os modelos digitais.
Isso porque programas de modelagem, como o popular Grasshopper, associado ao Rhinoceros, oferecem, na tela do computador, imagens das superfícies sendo modeladas através da aplicação de scripts que, se são, por um lado, úteis e indispensáveis, podem, por outro lado, induzir à compreensão errônea de que o que se vê na tela é uma representação do objeto arquitetônico que está sendo projetado. Não é. Os programas e scripts atualmente acessíveis e passíveis de funcionar dentro dos limites da capacidade de processamento usual dos computadores pessoais dos alunos auxiliam a construção de um objeto geométrico, com controle preciso do posicionamento de cada um dos pontos que o definem no espaço ideal do ambiente digital. Esse objeto geométrico constitui uma base riquíssima em informações que serão, por sua vez, processadas e utilizadas pelo aluno, com o auxílio de saberes específicos do campo da arquitetura, para a produção de um objeto arquitetônico, a ser detalhado enquanto edificação. É, portanto, também nesse esforço de tradução de uma linguagem a outra que os modelos físicos – parciais e reduzidos – podem desempenhar um papel central.
Mas a modelagem física, em todas as suas fases de desenho dos componentes, preparação para fabricação, produção e montagem, curiosamente antecipa, às vezes com grande acuidade, questões produtivas, construtivas e de organização de obra que, em processos convencionais, tendem a revelar-se apenas quando finalizada a concepção. De fato, existe um correlato claro entre as maneiras de produção dos componentes de modelos, através de máquinas controladas digitalmente (ou máquinas CNC, da sigla em inglês Computer Numeric Control) de corte a laser, impressão 3D e fresagem, e processos industriais baseados no uso de máquinas que trabalham de maneira bastante similar a essas, ainda que em outra escala. É, também por isso, fundamental que, na produção de seus modelos, cada aluno seja capacitado a manusear pessoalmente essas máquinas, pois isso vai ajudá-lo a construir um entendimento mais claro sobre a produção de componentes construtivos, futuramente, no âmbito da produção de componentes e da própria obra. Essa compreensão é essencial para que, como nos exemplos dos arquitetos mencionados no início desse artigo, os alunos sejam sensibilizados a preocupar-se com a viabilização técnica de suas proposições – que, hoje, ainda se situam no campo da novidade – agora auxiliados pela informatização dos processos de design e fabricação (8).
3. Da formulação de exercícios procurando explorar potencialidades dos programas e dos modos de projetar e construir que eles pressupõem
A essa forma de produção de arquitetura, quase inteiramente assistida por computadores, do projeto à fabricação de componentes construtivos, devem corresponder exercícios didáticos de projeto cuja formulação proponha um treinamento de novas maneiras de conceber o projeto e de produzir os componentes para a execução da edificação projetada. Lidar com geometrias complexas já constituiria um desafio para alunos cuja formação costuma visar o domínio da geometria euclidiana e suas aplicações na arquitetura. Mas além de procurar auxiliá-los a superar dificuldades já mencionadas, acrescidas da necessidade incontornável de aprender diversos programas computacionais e o manejo de máquinas de fabricação, é preciso estimulá-los a explorar as potencialidades dos programas e dos modos de projetar e construir que estes pressupõem.
Na disciplina de Projeto 3, do IAU-USP, os exercícios propostos aos alunos partem de premissas, oferecidas pela parametrização, de adequação local de projetos a partir da manipulação de alguns de seus parâmetros. Em outras palavras, propõe-se que equipamentos públicos conformando redes urbanas possam ser desenhados a partir de um programa único e geral fornecido pela administração pública, mas que, a partir de alterações paramétricas, possam ser adequados a situações específicas em diferentes partes da cidade, e, ainda assim, possam ter seus componentes construtivos produzidos em série, graças aos procedimentos de fabricação digital.
Procedimentos metodológicos
De duração semestral, a disciplina de Projeto 3 tem como tema o projeto de uma linha de Veículo Leve sobre Trilhos – VLT, com uma estação em cada uma de suas extremidades e vários abrigos em sua extensão. Após a definição do seu traçado, considerando diversas questões urbanas – em especial, a intermodalidade com o transporte por ônibus e bicicletas – e o desenho de cada trecho da linha, através de cortes transversais das vias públicas e a localização exata de cada abrigo, as equipes de alunos propõem um projeto para uma das estações, usando formas complexas. Esse projeto será, por sua vez, inteiramente detalhado e especificado, no sentido de fornecer um conjunto de soluções técnicas e parâmetros que comporá uma espécie de guia técnico para o restante do exercício. Em seguida, cada aluno da equipe, individualmente, se apropria dos princípios do projeto da estação, desenvolvido em equipe e, por alteração dos valores atribuídos aos seus parâmetros, trabalha no desenho de um dos diversos abrigos da linha.
A problemática das diferenças dimensionais entre uma estação e um abrigo reflete-se, evidentemente, no dimensionamento dos componentes construtivos de ambos. Com programas de necessidades e solicitações estruturais distintos, os dois projetos obedecem, contudo, à premissa de utilizarem-se de sistemas construtivos similares, tanto por questões técnicas, ligadas à fabricação de componentes, às competências da mão-de-obra a ser contratada, aos equipamentos necessários para montagem no canteiro, e aos processos de licitação para a realização das obras, quanto por aspectos simbólicos, como a composição de uma linguagem arquitetônica reconhecível pelos usuários em toda a linha, o papel indutor de redesenho de seus entornos imediatos que todas essas construções na cidade podem desempenhar, a constituição de novos pontos de referência urbanos e lugares de convívio resultantes de tais agenciamentos.
Durante todo o processo, diversas maquetes e modelos são produzidos, através de impressão 3D e corte a laser, a partir dos arquivos gerados nos programas paramétricos, permitindo que os alunos vivenciem de diversas maneiras a noção de file-to-factory – segundo a qual os arquivos de projeto informam diretamente as máquinas de fabricação – de acordo com procedimentos amplamente descritos por Oosterhuis et all. (9), Kolarevic (10) e Woodbury (11). Pesquisadores do Nomads.usp participam das sessões de trabalho em atelier, discutindo com as equipes suas escolhas em termos de scripts e de maneiras de ler e utilizar as informações contidas nos modelos geométricos gerados para a definição do projeto de arquitetura. Os pesquisadores também auxiliam no uso das máquinas de fabricação digital pelos alunos, capacitando-os, observando e registrando suas atividades para avaliação posterior.
Todas as avaliações de processo envolvem os professores e monitores graduandos e pós-graduandos da disciplina, os pesquisadores e os alunos. A qualquer momento, cada um pode expressar ao coletivo críticas e sugestões de revisão das atividades previstas, assegurando uma atenção permanente ao processo. Além dos encontros presenciais, a disciplina dispõe de um grupo online de acesso público na rede social Facebook (12), onde informações diversas, dúvidas, comentários, referências de projeto, documentos técnicos e, inclusive, as pranchas digitalizadas das diversas entregas são postados.
Resultados
Ao longo desses cinco anos de realização da disciplina, foram produzidas, pelos alunos, centenas de maquetes e modelos físicos parciais, a maioria nas escalas 1:100, 1:50, 1:10 e 1:1, além de uma quantidade bem maior de pranchas gráficas e videos com animações. Todo o detalhamento construtivo elaborado pelos alunos deve necessariamente basear-se em consulta a especialistas e a fornecedores reais, contribuindo para o mapeamento da existência de maquinário industrial digital no arranjo produtivo local e regional, assim como para a avaliação das possibilidades de incorporação de componentes e sistemas construtivos comerciais em bibliotecas digitais de projeto.
Os resultados incluem, também, o desenvolvimento de um comportamento proativo dos alunos na busca de programas computacionais via Internet capazes de auxiliá-los em problemas específicos no processo de concepção e fabricação. Por essa razão, o uso dos programas Grasshopper e Rhinoceros, inicialmente solicitado aos alunos, tem sido espontaneamente acrescido de diversos outros programas, encontrados na Internet de várias maneiras – em fóruns especializados, em websites técnicos, através de contato com escritórios de arquitetura, com colegas de anos anteriores, etc. – reafirmando novas maneiras de aprendizagem nas quais a informação está disponível em muitas fontes e não apenas, e nem sempre principalmente, no aporte dos professores. A crítica e as implicações do uso desses programas e meios em intervenções no âmbito da arquitetura, da cidade e da paisagem dependem, no entanto, estreitamente da reflexão presencial em atelier, com professores e alunos contribuindo a partir de seus entendimentos pessoais e suas referências, em discussões e sessões de trabalho coletivas e colaborativas.
Outros resultados dignos de nota são o desenvolvimento da capacidade dos alunos em fornecer respostas rápidas a problemas novos, sua destreza ao realizar operações multi-tarefas, como as que compõem o processo descrito nesse artigo, a diminuição gradativa de sua resistência em enfrentar desafios variados, como o gerenciamento da grande quantidade e diversidade de informações, e a construção coletiva, nas equipes, de procedimentos metodológicos necessários para a organização do trabalho nos prazos previamente estipulados. Esses resultados são claramente percebidos, por exemplo, na disciplina de projeto do semestre seguinte, em que os alunos trabalham em plataforma BIM e superam muito rapidamente as dificuldades de um processo de projeto que, apesar de também paramétrico, pressupõe requisitos e demandas operacionais às vezes bastante distintos daqueles do semestre precedente.
Perspectivas
Os três aspectos selecionados para esse breve artigo abrem, inversamente, um leque bastante amplo de questões para debate dentro da área de Arquitetura e Urbanismo. Essas questões podem ser de várias ordens, como sugerido a seguir.
1. Questões didático-pedagógicas: ligadas a) a maneiras emergentes de se entender o ensino de projeto; b) à compreensão e à prática do ensino como extensão da pesquisa e da pesquisa como extensão do ensino, um se utilizando de resultados do outro; c) ao deslocamento gradativo do papel do professor de projeto, de provedor de informações e instruções profissionais a proponente, debatedor e relativizador das informações obtidas pelo alunos em incontáveis fontes, discutindo a atualidade dos processos de projeto;
2. Questões projetuais: referentes a) aos processos de projeto em arquitetura e urbanismo em si, propostos pela combinação design paramétrico-fabricação digital; b) à urgência em se rever o uso recorrente de mesmos scripts, fornecidos pelos programas computacionais, que resulta em um leque restrito de formas arquitetônicas, e que faz pensar que os arquitetos poderiam produzir seus próprios scripts, não sem algum impacto nos conteúdos dos cursos de arquitetura; c) às relações múltiplas e a serem aprofundadas entre os processos de projeto e a produção digital de modelos e maquetes físicas; d) à ressignificação do papel do modelo físico no processo de projeto, em relação ao seu papel usual em processos de projeto convencionais;
3. Questões arquitetônicas: relacionadas a) à avaliação da proposição de formas geométricas complexas para edificações na paisagem urbana; b) à construção de conexões entre as possibilidades formais oferecidas à arquitetura pelos processos aqui descritos e linguagens arquitetônicas que, historicamente, fazem parte do ideário e da produção nacional; c) à reconstrução de um discurso sobre a forma em arquitetura, readmitindo-a como um dos aspectos centrais e definidores desse campo disciplinar;
4. Questões construtivas: concernentes a) às relações entre produção de modelos e produção de componentes construtivos; b) ao papel dos arquitetos enquanto propositores de demandas endereçadas a empresas do setor produtivo que já dispõem de maquinário para fabricação digital mas que, em geral, não o utilizam na produção de componentes construtivos.
Finalmente, é claro que, no âmbito da disciplina de Projeto 3 do IAU-USP, a discussão sobre a efetivação de abrigos de VLT na cidade utilizando-se de geometrias complexas e técnicas de fabricação digital situa-se dentro dos mesmos limites de todo exercício acadêmico em arquitetura, em que proposições são formuladas sem a interveniência direta de clientes reais, sem o rigor de planilhas de custo precisas, sem a colaboração estreita e enriquecedora com possíveis fornecedores e executores. Apesar de extremamente desejável e certamente instrutivo, o desenvolvimento dessas instâncias excederia o tempo disponível de uma disciplina de graduação e obrigaria a excluir do programa de ensino outros tópicos essenciais. No entanto, também como uma perspectiva a ser explorada, é preciso lembrar que ao se falar de fabricação, fala-se de arranjo produtivo, que envolve aspectos tecnológicos e financeiros mas também políticas públicas para o setor, nesse caso, da indústria da construção.
A associação do uso de programas paramétricos de projeto com técnicas de fabricação digital conecta-se à ideia de informatização da produção de arquitetura, em curso desde os anos 1980 com a popularização do microcomputador pessoal e dos primeiros programas de desenho técnico. Visto seu desenvolvimento e consolidação nessas três décadas desde então, nada nos permite supor que sua participação nas rotinas de projeto, produção e construção vá diminuir. Pesquisas do Nomads.usp têm mapeado, por exemplo, a disponibilidade de equipamentos de fabricação digital e de know-how para operá-los em pequenas, médias e grandes indústrias de alguns estados do Brasil, constatando que muitas já têm partes importantes de seu processo produtivo digitalizado, permitindo automatizar, aperfeiçoar e, muitas vezes, baratear tarefas de corte e modelagem de placas e perfís, de impressão de conectores e peças diversas, entre outras. As solicitações que a arquitetura tem feito a essa indústria são, ainda, bastante pontuais, talvez justamente porque, na formação dos arquitetos, a capacitação em projetos utilizando e explorando essas técnicas ainda seja tímida.
É, de fato, muito provável que estejamos assistindo, no Brasil e no mundo, a uma lenta mas irreversível alteração nos processos produtivos da construção, que, no fundo, nada mais é do que uma ampliação dos processos industriais, agora potencializados, de muitas maneiras, pelo advento da informatização. De que forma nos apropriaremos disso no Brasil, é uma pergunta em aberto, parecida, aliás, com o que se perguntava em relação à industrialização há quase um século. Naquela época, excelentes respostas foram dadas pelos arquitetos modernos, que tinham na racionalização de processos, na pesquisa de novos materiais, na aproximação entre arte e indústria, na exploração de formas arquitetônicas em fase com estudos culturais e tecnológicos, seu grande estímulo para criar. Desde então, curiosamente, processos digitais foram incorporados com sucesso em diversas áreas do conhecimento, enquanto os arquitetos, cuja formação repousa sobre sólidas bases modernas, parecem apegar-se a métodos que lhes são conhecidos, deixando de perceber-se como elo de uma cadeia maior, eximindo-se da postura instigante, aberta e exploratória que se espera de profissionais que lidam com o criar.
É por isso que a singela experiência acadêmica aqui apresentada procura lembrar, como um sub-texto feliz e convidativo, que, após décadas em que a ideia de padronização e produção seriada, cooptada pelo mercado imobiliário, acabou retirando das mãos do arquiteto muito das decisões sobre a construção da cidade, o uso da parametrização e de conceitos como a customização em massa pode, esperamos, devolver-lhe a possibilidade de criar espaços belos e únicos, que não precisem mais ser produzidos artesanalmente, por um lado, nem como tipos infinitamente repetidos, por outro.
No âmbito dos cursos de arquitetura, é fundamental que tais questões sejam continuamente abordadas por professores, alunos e pesquisadores, de preferência conjuntamente, e que registros dessas discussões sejam produzidos e compartilhados amplamente, em publicações, em reuniões científicas e em sala de aula, de modo a contribuir para o entendimento de como lidar com as profundas mudanças, atualmente em curso no mundo, nas maneiras de se produzir arquitetura, a cidade e a paisagem em fase com nosso tempo e nossas culturas.
sobre o autor
Marcelo Tramontano é arquiteto e mestre pela Ecole D'Architecture de Grenoble, França, doutor e livre-docente em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo, professor associado do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP.
notas
NA — Agradecimentos cada aluna e aluno da disciplina de Projeto 3, nos anos de 2011 a 2015, aos monitores graduandos e pós-graduandos e aos pesquisadores do Nomads.usp que participaram das equipes de apoio da disciplina, aos funcionários do IAU-USP dos laboratórios de informática e de modelos, à Profa. Dra. Anja Pratschke por seu empenho em equipar e ampliar o acesso aos equipamentos de fabricação digital no IAU-USP, e, especialmente, ao colega docente Prof. Dr. Renato Anelli, que se interessou por caminharmos juntos nesse terreno novo.
1
PEREN, J. I. M. Ventilação e iluminação naturais na obra de João Filgueiras Lima "Lelé": Estudo dos hospitais da rede Sarah Kubitschek Fortaleza e Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). São Carlos, EESC-USP, 2006. E também CAMARGO, R. M. Estudo da eficiência para a ventilação natural dos sheds em hospitais da Rede Sarah. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Campinas, FEC-UNICAMP, 2011, entre outros.
2
LEE. Kyung Mi. Severiano Mário Porto: A produção do espaço na Amazônia. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). São Paulo, FAU-USP, 1998.
3
JANULARDO, Ettore. Arquitectura y sociedad: Eladio Dieste. Anuario de Antropología Social y Cultural en Uruguay, 10, 2012. pp. 213-216. Disponível em: <www.unesco.org.uy/shs/fileadmin/shs/Anuario_Antropologia_2012/17_Janulardo.pdf> Acesso: 11/09/2015.
4
NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: memórias. Rio de Janeiro, Revan, 2000. P. 69-70. Disponível em: <www.niemeyer.org.br/outros/poema-da-curva> Acesso: 11/09/2015.
5
NIEMEYER, Oscar. A forma na arquitetura. Rio de Janeiro, Avenir Editora, 1978. P. 16-18.
6
MACEDO, Danilo Matoso, SILVA, Elcio Gomes. Congresso nacional: Procedimentos projetuais e arquitetura brutalista. Anais do X SEMINÁRIO DOCOMOMO BRASIL. PUC-PR: Curitiba, out. 2013. Disponível em: <www.xdocomomobrasil.com.br/download/artigos/sessao/ST_04.pdf>. Acesso: 11/09/2015.
7
ANITELLI, Felipe. [Re]produção?: Repercussões de características do desenho do edifício de apartamentos paulistano em projetos empreendidos no Brasil. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). São Carlos, IAU-USP, 2015.
8
DUNN, Nick. Digital fabrication in Architecture. London, Lawrence King, 2012.
9
OOSTERHUIS, K.; BIER, H. H.; AALBERS, C.; BOER, S. File to factory and real time behavior in ONL-Architecture. Proceedings of the 23rd Annual Conference of the ACADIA and the 2004 Conference of the AIA Technology in Architectural Practice Knowledge Community. Cambridge, November 8-14, 2004.
10
KOLAREVIC, Branko. Architecture in the digital age: design and manufacturing. New York, London, Taylor & Francis, 2009.
11
WOODBURY, Robert. Elements of parametric design. New York, Routledge, 2010.
12
Projeto 3 2015 | iau.usp, página pública no Facebook<www.facebook.com/groups/projeto3.2015/>.