Colocando os pés no chão
No passado a universalidade era uma das características mais marcantes do 'fato científico'. "Uma vez estabelecido em um determinado lugar, sua validade deveria transportar-se para qualquer lugar, sem custo e sem esforço"(1). Ao se tornar 'universal' as localidades onde o conhecimento era produzido ou aplicado deixaram de ser consideradas. A crença na universalidade eliminou da ciência as perguntas 'onde' (onde foi produzido este conhecimento? onde ele foi aplicado?). Foram abandonadas em favor de um 'universal transcendente' (2). Por princípio, os elementos constituintes da 'realidade' eram estáveis, determinados e permanentes, podendo ser descobertos por meio de "investigação científica adequada" (3).
Mas na tecnologia e na política continuou-se admitindo que a realidade não seria inteiramente imutável. Como modelar a realidade seguia uma questão em aberto (4), Ciência de um lado e tecnologia e política do outro, seguiam caminhos distintos. A volta da ciência para a Terra, seu realinhamento com a tecnologia e com a política se iniciou no final dos anos 1970 com os estudos de ciência-tecnologia-sociedade (CTS).
Esses estudos falaram de um 'terceiro mundo' além da prática: dos lugares onde habitam as ideias científicas (5). Em lugar de falar sobre o laboratório foram falar dos laboratórios no plural (6) e produziram histórias etnográficas sobre como a ciência era praticada.
Isso mudou a atenção dos estudiosos das exigências necessárias da teoria para as texturas dos aspectos práticos de laboratório. Rotulagem, marcação, repetição, limpeza, numeração, observação, interpretação: vieram a ser conhecidas como as atividades que compõem a ciência em ação.
E foi assim que o lugar começou a aparecer sistematicamente nos escritos sobre a ciência. Lugar apareceu em reação à ideia de que a ciência não é localizável como método científico, teoria, ou como descobertas universais. ... as descobertas e as teorias científicas eram feitas em locais específicos. Elas eram sempre produzidas em algum lugar. Em uma localidade. Eles eram regionais, não universais. Mas é claro que não foi tão simples assim. Porque os fatos científicos também viajam entre as regiões (7).
A mobilidade dos fatos científicos e das teorias foi entendida como um fenômeno global e os estudiosos dos CTS se ocuparam com novas questões: como eles se movem? Onde? Em que tipo de espaço? (8) Como e quais são as diversas formas com que o corpo dos cientistas é envolvido naquilo que faz? (9) Quais são as relações entre ontologia, política e a noção de performance na produção de um conhecimento instável e plural? (10) Como as questões de gênero, raça e a parcialidade e inacabamento de um eu cognoscente influenciam a produção de uma topografia multidimensional da subjetividade? (11).
Ao reunir ciência e natureza os estudiosos dos CTS provocam uma mudança na compreensão e na produção das ciências agora no plural; evidenciam que a prática da ciência requeria uma quantidade enorme de manipulação de artefatos laboriosa, meticulosa e rotineira, fazem desaparecer o glamour e a deferência à Ciência. A epistemologia normativa dá lugar ao realismo etnográfico. John Law e Annemarie Mol (12) iniciam uma reflexão sobre o conhecimento e as espacialidades situadas e se alinham com Donna Haraway:
a única maneira de encontrar uma visão mais extensa é estar em algum lugar em particular. Este lugar em particular, de onde o narrador opera sua seleção e exerce sua parcialidade, constitui o que ela caracteriza como o privilégio do ‘conhecimento situado’, deixando claro que há um corpo que busca conhecer e que, portanto, este conhecimento origina-se neste corpo em particular (13).
A política ontológica
Segundo Bruno Latour (14) o corpo não é a morada temporária de uma alma imortal e do pensamento. É uma interface que aprende a ser afetada por muitos elementos e que deixa uma trajetória dinâmica que nos possibilita registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. Se o conhecimento é 'situado' e o corpo é uma interface que aprende a ser afetada cabe refletir um pouco sobre política ontológica ou como o "real" está implicado no "político".
Política ontológica é um termo composto. Refere-se a ontologia – que na linguagem filosófica comum define o que pertence ao real, as condições de possibilidade com que vivemos. A combinação dos termos "ontologia" e "política" sugere-nos que as condições de possibilidade não são dadas à partida. Que a realidade não precede as práticas banais nas quais interagimos com ela; ao contrário, ela é modelada por essas práticas. O termo política, portanto, permite sublinhar este modo ativo, este processo de modelação, bem como seu caráter aberto e contestado (15).
O trabalho realizado nos CTS retirou da realidade em sua dimensão ontológica o carácter supostamente estável e determinado e passou a considerar que a realidade é produzida e localizada histórica, cultural e materialmente. Mas localizada onde? Nos CTS, é no laboratório, designação adotada para os lugares localizados histórica, cultural e materialmente onde se transforma e "se concebem novas formas de fazer a realidade" (16) e a resposta varia conforme o campo que se responde (17). Mol aponta três modelos de políticas ontológicas que se contrapõem à singularidade da verdade especializada e única: perspectivismo – multiplica o ponto de vista e a perspectiva com que cada par de olhos vê uma mesma 'realidade' que permanece singular, intocada, e abre as portas para um pluralismo em que diferentes perspectivas de uma mesma realidade coexistem lado a lado (18); construtivismo – mostra por meio de diferentes histórias de construção, como foi criada cada versão específica de verdade ou de sucesso de um determinado fato. "As histórias construtivistas sugerem que podiam ter sido possíveis 'construções da realidade' alternativas" (19) de uma pluralidade que é projetada em um passado que fez desaparecerem outras coisas que podiam se tornar 'reais'; e realidades múltiplas – que se baseia em intervenção e performance para sugerir que determinada 'realidade' deve ser produzida e performada, "manipulada por meio de vários instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas" (20). Neste terceiro modelo a 'realidade' pode ser visualizada e manipulada por dispositivos tecnológicos que amplificam e requalificam nossa performance sociotécnica: de geo-referenciamento, de gráfica digital e de inclusão da dimensão paramétrica, scanners, dispositivos de vigilância, etc.. Eles também configuram uma classe de objetos que rompe com nosso entendimento deles como coisas fixas da natureza material. Configuram objetos dotados de materialidade e concebidos como estruturas abertas ou 'coisas-para-serem-usadas' que continuamente 'mudam' para alguma coisa mais (21). Dispositivos que só existem na medida em que assumimos que a moralidade e as ontologias políticas não se inscrevem apenas nos corpos e mentes humanas, mas também nas coisas ou objetos não-humanos.
Espacialidades
Feitas as considerações preliminares sobre corpo como interface que aprende, conhecimento situado e sobre as realidades múltiplas da política ontológica, nesta seção apresento a reflexão proposta por Law e Mol (21) sobre outras [múltiplas] espacialidades no plural, importante contribuição para requalificar a percepção dos arquitetos, restrita à espacialidade euclideana.
Espacialidade euclideana
Nosso senso comum induz a pensar que nossos corpos e cidades existem em um espaço euclidiano e seu sistema de coordenadas, neutro e pré-existente, que define as condições de possibilidade nas quais os objetos podem existir, exercer a identidade e a experiência de proximidade ou distância. Segundo John Law, em termos cartesianos é possível dizer que o performar de um objeto-forma estável e contínuo ajuda a performar um espaço, um mundo que é cartesiano na forma (22).
Na espacialidade cartesiana as formas e os objetos mantém sua continuidade e singularidade no espaço. Todos os objetos e elementos que configuram a materialidade de um objeto-cidade precisam, em princípio, ser funcionalmente mantidos no lugar. Mas se um conjunto de coordenadas cartesianas permanece estável entre si, como as formas e os objetos são deslocadas no tempo e no espaço? Um ônibus continua a ser o mesmo ônibus enquanto se move pelas vias de uma cidade ou de uma estrada. A distância percorrida ou sua proximidade com outros ocupantes do espaço euclidiano é definida por suas coordenadas cartesianas, que se alteram na medida em que ele se move. Topologicamente os dois argumentos estão intimamente relacionados: para produzir objetos-formas e definir o que se entende por continuidade no seu deslocamento é necessário, simultaneamente, produzir ou definir as condições espaciais de possibilidade. Mas para performar continuidade e identidade, ou medir a distância nos termos das coordenadas cartesianas, ou ainda definir as possibilidades das condições espaciais de subsistência dos objetos, é preciso promulgar o espaço euclidiano. Law (23) acredita que essa quase-reificação da espacialidade euclidiana pelo senso comum euro-americano resulte de um certo desconhecimento do trabalho necessário para produzi-la. Se foi promulgada no passado, então o sentido do espaço – recipiente que nos antecede e no qual existimos passa a ser justificado historicamente – tende a se naturalizar. Mas as redes sociotécnicas operam com uma concepção alternativa de espacialidade.
Espacialidade na lógica das redes (24)
Em uma rede sociotécnica as formas e os objetos são estáveis e singulares se estiverem configurados em um conjunto estável de ligações com outras entidades. Na espacialidade de redes é necessária outra gramática ou sintaxe que mantenha a estabilidade e a continuidade das formas e objetos: além dos objetos e elementos materiais, diversos outros objetos e elementos se movem e circulam em diferentes formas e veículos.
Para funcionar corretamente na estrutura incerta da espacialidade de rede uma cidade precisa que todos os objetos e elementos implicados façam o seu trabalho: 'pedir emprestado' a luz do sol, a energia elétrica, a força e a vontade dos cidadãos e, por assim dizer, incorporá-los; criar estruturas de relações que garantam que edifícios, vias, postes, ventos, energia elétrica, cidadãos e muitas outras entidades sejam funcionalmente mantidas no lugar além de um conjunto de estratégias para garantir a invariância sintática da rede. Na lógica das redes sociotécnicas nos movemos do espaço cartesiano para o espaço da rede e vice-versa e precisamos associar sua promulgação com o processo de construção desse espaço ou com o modo como esse espaço é performado. E ele é muito mais visível para o espaço da rede do que para o espaço cartesiano. Uma cidade funcionando é um objeto ou uma 'forma de rede sociotécnica' constante e contínua que pode ser entendida como um conjunto constante de coordenadas cartesianas de todos os seus elementos fixos. Ao mesmo tempo em que as pessoas, os veículos, a água e a energia se deslocam no espaço cartesiano, as posições relativas sintáticas e funcionais das outras entidades que performam ou contribuem para a coerência da cidade – e para seu movimento – precisam ser mantidas constantes ou estáveis.
Para entender a dupla produção de uma rede sociotécnica Bruno Latour forma a noção de 'móvel imutável': o que se move através do espaço regional, mantendo a imutabilidade de sua forma pertence ao espaço de rede ou sintático, enquanto a mobilidade [atributo cartesiano] torna-se possível pela imutabilidade da rede. Se alguns objetos se deslocam, isto acontece porque eles são topologicamente complexos e existem no interior de diferentes topos espaciais. Ou porque, de uma forma ou de outra, eles trabalham para performar as interferências entre diferentes topos.
A performance do imperialismo Português dos séculos 15 e 16 e sua dependência dos navios é um bom exemplo de móveis imutáveis.
Os navios se mantinham mais ou menos juntos quando se moviam de Lisboa a Calicut na Índia e vice-versa. Eles eram móveis imutáveis porque a rede foi elaborada e executada e se sustentou de forma estável e não se moveu. Uma rede cuja natureza incluía cascos, mastros, velas, ventos, oceanos, marinheiros, lojas, navegadores, estrelas, sextantes, Efemérides, armas, árabes, especiarias e dinheiro - e etc.. Os navios tornaram-se redes invariantes e materialmente heterogêneas, imutáveis, porque pelo menos em teoria, os diferentes componentes mantinham uns e outros no lugar (25).
Se trata de uma rede de dupla produção: ao mesmo tempo em que gera um móvel imutável, um navio que faz isso com segurança pelos sete mares, um objeto em si, mantendo a si mesmo junto a uma rede particular de relações, ela também significa uma forma de espacialidade.
Um objeto de rede implica também uma forma estável dentro de um espaço de rede. Os dois vão juntos. Espacialidade é um aspecto da estabilidade da rede. Uma grande rede (com seus ventos, suas estrelas, seus comerciantes e os seus príncipes) implica um espaço de rede que torna possível a mobilidade imutável de um objeto - como um navio Português viajando de Lisboa para Calicut (26).
Topologicamente, no caso do móvel imutável lidamos com duas formas de espacialidade: como espaço Euclidiano – no qual um navio permanece imóvel quando está atracado no porto de Lisboa, mas se move assim que vai para o mar – e como espaço de uma rede sociotécnica – no qual o navio é imutável. A mobilidade dos navios portugueses só existe no espaço euclidiano. Segundo Latour, para falarmos de móvel imutável precisamos considerar as duas espacialidades interligadas. Em uma primeira aproximação da embarcação ela não se move no espaço. "É a interferência entre os sistemas espaciais que proporciona ao navio suas propriedades especiais" (27).
A bordagem sociotécnica expõe as semelhanças e as diferenças internas de duas formas de espacialidade, ao mesmo tempo em que participa da interferência entre as duas, e assim, ajuda a minar o essencialismo do espaço euclidiano.
Espacialidade fluida (28)
Uma espacialidade fluida é aquela que muda de forma, como os hotéis de uma rede internacional "X", que não devem ser vistos como algo que se move no interior de uma rede, mas como algo fora de uma rede; como um Outro para a rede e suas espacialidades. Quando uma rede de hotéis se espalha pelos quatro cantos do mundo, nela nada é fixo. Cada unidade muda de forma conforme o lugar, a região e a cultura. Quando alguns componentes quebram, são substituídos por outros. Também são adicionados ou eliminados componentes e serviços não previstos de início. Mudam o 'próprio edifício' e as relações sociais nele embutidas. Um hotel é um objeto-edifício que muda de forma no espaço euclidiano e opera diferente em cada lugar onde é instalado.
Diferentemente de uma rede sociotécnica e sua invariância configuracional, o Hotel "X" mostra variação das configurações. É um móvel mutável. Em dois lugares distintos ele é o 'mesmo objeto' e um 'objeto diferente'. Esta característica variável na forma e no conteúdo permite que ele se 'mova' para tantos lugares no mundo mesmo não sendo uma forma invariável na rede sociotécnica ou no espaço euclidiano. Mas a mutabilidade dos hotéis "X" também se estende para o uso de cada unidade, que oferece serviços e acomodações confortáveis que é variável: apesar das definições internacionais de qualidade e pureza da água, sua qualidade varia de uma cidade, região ou país para outro. Em alguns casos a água distribuída atende a esses critérios. Em outros, não. Alguns países ou cidades realizam testes laboratoriais bem desenvolvidos, outros não. O mesmo acontece com os sistemas de coleta e tratamento de esgoto, de ar-condicionado e com a qualidade, estabilidade e regularidade de fornecimento de energia elétrica, TV a cabo e Internet. Serviços e sistemas que dependem das condições locais de oferta e dos cuidados de manutenção. Alguns oferecem serviço de copa e restaurante de boa qualidade, outros não. Isso significa que algumas unidades do hotel "X" não funcionam? A resposta é não necessariamente. Tudo isso conta como uma condição funcional de sucesso, mas depende da qualidade e esforço de trabalho, das políticas locais, regionais, nacionais e internacionais de economia e turismo. E serviços e trabalho são, em si, variáveis. Assim é mais útil pensar nas suas unidades como objetos que fluem mas mantém sua forma em diferentes lugares e configurações de rede, em lugar de como objetos de uma rede falha. Aqui temos uma espacialidade fluida com um outro tipo de invariância da forma, diferente da euclidiana e das redes sociotécnicas: . São as conexões que fazem uma forma invariável de fluido mudar de espaço de forma gradual e incremental. As ligações mudam lentamente seu caráter. Com o tempo componentes quebram ou sistemas se tornam obsoletos e vão sendo progressiva e continuamente substituídos. As unidades não são exatamente iguais nem funcionam exatamente iguais. Suas funções e formas são diferentes e se modificam com o tempo na medida em que peças e sistemas são substituídos ou acrescentados. A forma gradual de adaptação, instalação, gestão, manutenção das unidades em uso permite que cada unidade continue operando sem grandes pausas ou interrupções. A invariância da forma é garantida em uma topologia de fluidos com um processo gradual de adaptação com fluxo mais ou menos suave. Ela é fixada por um deslocamento que resiste à ruptura e se mantém constante durante algum tempo.
Em uma topologia de fluidez a continuidade da forma exige uma mudança gradual: um mundo no qual a invariância é susceptível de conduzir à ruptura, diferença ou distância; no qual a tentativa de manter relações constantes provavelmente vai corroer a continuidade. Por isso, em lugar de impor projetos rígidos, os projetistas e gestores das unidades do hotel precisam conviver com sua variabilidade. As alterações introduzidas na instalação e na operação de cada unidade indicam que os projetistas e gestores também performam com a fluidez de um espaço fluido cujo interior mantém uma certa constância de forma. Penso que a favela pode ser um bom exemplo de espacialidade fluida, que pode vir a se tornar uma promissora vertente de investigação no campo da morfologia urbana.
Espacialidade do fogo (29)
Law e Mol exploram uma espacialidade alinhada com a perspectiva bachelardiana de renovação criativa de morte implícita pelo fogo, "elemento de paixão, ação, energia, espírito, vontade e raiva, para não mencionar a destruição criativa e sexualidade" (30). Em uma topologia de fogo "existem formas estáveis criadas em padrões de relações de alteridade conjunta" (31) segundo três atributos de constância da forma. Continuidade como: (a) um efeito da descontinuidade; (b) a presença e a ausência de Alteridade; e (para casos específicos); (c) feito de uma estrela como padrão de Diversidade nesta simultaneidade de ausência e presença.
A perfuração do solo para a ampliação do Metrô do Rio de Janeiro é um bom exemplo de espacialidade do fogo. O projeto de uso do "Tatu" – equipamento de perfuração –, seus custos e prazos se baseou em informações geológicas e das concessionárias de infraestrutura urbana; nos projetos das redes subterrâneas e das fundações dos edifícios existentes; no número de operários e técnicos envolvidos nas operações relacionadas. Foram analisados os riscos e previstas medidas para garantir a integridade e a segurança dos edifícios existentes, moradores, operários e técnicos envolvidos, além da mínima interferência possível no dia-a-dia dos bairros que serão servidos.
A rede sociotécnica que conecta e configura as relações entre as informações sobre os objetos ou elementos e os projetos, o cálculo dos custos e prazos que antecederam o início das obras não são componentes e condições do projeto e seu conjunto têm conexões externas. Mesmo com certa fragilidade eles existem no espaço euclidiano.
Antes do Tatu começar a perfurar o subsolo de Ipanema os projetistas analisaram o conjunto de informações sobre o solo, lençol freático, redes de infraestrutura e fundações dos edifícios. Também consideraram as normas vigentes para garantir a segurança dos edifícios, ruas, moradores e funcionários. Todos os procedimentos, a posição e a velocidade de operação do Tatu, foram previstos de modo a reduzir os riscos de acidentes, o nível de ruído e a trepidação nos edifícios e ruas e devem ter sido descritos e detalhados em um caderno de encargos. Mas quando o Tatu começou a perfurar, os responsáveis pela obra tiveram que "virar a página ... ir para outros lugares ...que estavam fora da página" (32) e procurar outras conexões além das que estavam previstas no projeto. Apesar dos cuidados, a perfuração não funcionou conforme o previsto e recrutou outros atores – as grandes crateras que dificultaram a vida e a mobilidade de moradores e veículos, a reavaliação dos riscos de desabamento, as interrupções não previstas no fornecimento de água, gás e energia, a contratação de obras de reforço e reparo dos danos provocados, a reavaliação dos riscos dos operários, técnicos e equipamentos que operavam no subsolo e, pior, a interrupção da perfuração.
Os cálculos e análises teóricos não foram suficientes. Alguns operários adoeciam devido aos efeitos de vazamentos de água , esgoto e gás. Outros corriam riscos de acidentes como desabamentos, inundações e choques elétricos. Muitos moradores tiveram que temporariamente se mudar ou passaram mal.
Como a performação é uma associação complexa entre o que está presente no projeto e o que não está, o problema não se limita apenas a lidar com uma parte materialmente heterogênea (ator) da rede. Também existe uma irredutível descontinuidade entre o que está no papel e o que não está, que não se pode perder de vista.
A velocidade de perfuração prevista depende do que está ausente – desabamentos, mal estar, interdições pela Defesa Civil, Corpo de Bombeiros ou Ministério da Saúde, manifestações populares. Seu significado depende do que está ausente (e que, por isso, está presente) ao mesmo tempo em que depende de torná-lo ausente: porque certamente não existe espaço para acidentes, desabamentos ou interdições na rede de relações do projeto impresso elaborado por um grupo de profissionais em um escritório. Eles podem ser pensados como interrupções ou lapsos entre presença-ausência e ausência-presença, mesmo que isso possa implicar em perda de tempo. Essa é a chave para o que é distintivo na estabilização relativa da performance desse objeto. A velocidade da perfuração atinge seu significado, em parte, devido a essa oscilação ou movimento entre uma relação simultânea de presença e ausência. Os outros elementos do projeto operam de modo semelhante. A velocidade do Tatu é limitada pela necessidade de reduzir o risco de acidente. Mas porque é necessário aumentar a velocidade do Tatu? A resposta é estratégica. Tem a ver com os Jogos Olímpicos de 2016 e com os custos, previstos ou não. O ponto básico é simples: se a velocidade aumentar muito, o Tatu corre o risco de ficar soterrado em um desabamento de proporções catastróficas.
A lista de Outros associados, que estão ausentes (da folha de papel) e presentes (eles têm que estar lá) agora inclui os Jogos Olímpicos, as doenças e acidentes dos operários e moradores. Argumentos análogos aplicam-se aos outros componentes do projeto: definição do percurso, localização e capacidade das estações, sistema de transporte vertical até a superfície conduzem para o reino da política burocrática (atender a que bairros ou qual a relação entre o investimento e a previsão de retorno).
Todos os termos do projeto alcançam sua estabilidade em virtude da simultânea ausência e presença de outros materiais e situações. Na continuada performação das descontinuidades (que são também continuidades) com esses Outros materiais e contextos. Isto se aplica tanto aos componentes do projeto como quanto ao projeto como um todo. Assim, o projeto toma a forma de um padrão de brilho estelar. Esta é uma associação que nunca tem exatamente a forma de uma fantasia como a descreveu Bachelard. Várias alteridades são associadas a uma presença central. Existe de fato uma ida e uma volta. O que poderia ser pensado como uma estrutura de Alteridade está sendo performado enquanto o formalismo suportar. As entidades e os mundos irredutíveis em que eles estão localizados são mantidos juntos - e para além - enquanto a forma-fogo se mantém no lugar.
Considerações finais
Ao colocar os pés na Terra a ciência da verdade universal, que uma vez estabelecida, estaria em todos os lugares sem precisar se mover, passou a ser situada e a produzir novos problemas: Como se dissemina? Em redes. Como consegue ser transportada? As descobertas da Tecnociência só eram transportáveis se o dispositivo sociotécnico que os produziu fosse transportado junto. Mas transporte envolve custo e demanda esforço de movimento e de controle.
A metáfora da rede sociotécnica ou configuração heterogênea de pessoas e dispositivos que constituem um laboratório que também precisa ser transportado associada com a noção de móvel imutável – o que se move através do espaço regional, mantendo a sua forma – possibilitam entender 'o global' como uma rede para o transporte de formas invariáveis: informação, descobertas científicas, artefatos tecnológicos. Nasce uma nova forma de espacialidade que também tem suas desvantagens: muitas vezes – mas nem sempre – tornou-se funcionalista porque o foco estava no controle sobre o trabalho necessário para realizar uma configuração estável ou sobre o esforço necessário para criar uma rede mais ampla e apta para a transmissão de móveis imutáveis.
Mas como ideias, fatos, informações e tecnologias podem se espalhar com maior ou menor fluidez e como é a falta de rigidez que ajuda o movimento, surge uma terceira possibilidade para imaginar o global: a espacialidade fluida. Agora a globalização não é sobre redes, mas sobre fluidez, sobre os movimentos que acontecem mais facilmente quando existe menos controle. A espacialidade fluida tem a ver com as coisas que assumem a forma de seus entornos. Com coisas que são adaptáveis.
Law e Mol (33) demonstraram que fluidez não esgota as metáforas espaciais para pensar o global e propõem uma quarta possibilidade, da espacialidade do fogo, na qual a constância da forma pode ser entendida como um padrão estável de alteridade conjugada onde a continuidade depende da descontinuidade, a presença da ausência, o movimento ou deslocamento daqui para acolá. Esta metáfora espacial não explica a globalização articulada e, ao contrário das redes e fluxos, não fala sobre o transporte no espaço regional. Ela se transforma em uma universalidade às avessas.
Paradoxalmente, o global já está incluído no local. Não como resultado das redes que se estendem ou dos fluidos que se espalham: mas como? Um objeto da tecnociência – ou qualquer Outro objeto - é global. Se ele baixar na Terra, então isso implica que a Terra está inscrita nele. O que sugere que poderíamos explorar como ele inclui Outros, que poderia ser considerada como a sua versão do global.
Tenho a esperança de que este texto contribua para que os arquitetos expandam seu entendimento da multiplicidade de espacialidades que resultam das políticas ontológicas e que coexistem e contribuem para o ofício da arquitetura. Para ilustrar melhor os argumentos apresentados, finalizo parodiando John Law e Annemarie Mol (34):
Este texto é local, pois foi escrito em minha casa, em meu Mac. Assim ele é local ou imutavelmente imóvel. Mas quando você ou Outro(a) o ler, ele muda de lugar – sua poltrona, sofá ou mesa – e assim ele é regional – ao mesmo tempo em que ele também foi transportado. Se o texto que você ou Outro(a) está lendo for mais ou menos o mesmo que foi transportado por uma rede sociotécnica ele performa um dispositivo móvel imutável…mas as circunstâncias em que ele é lido por você ou por Outro(a) também significam que ele está sendo sutilmente reconfigurado. O mesmo, mas também diferente. O que significa que ele também é um dispositivo móvel mutável… mas o trabalho na produção do texto inclui (mas também esconde) a Terra na forma dos cheiros e dos sabores dos alimentos que ingeri enquanto o escrevia ou que você ou um(a) Outro(a) ingeriu enquanto o leu. Só o céu sabe o que mais está incluído em um texto como este: nele estão presentes, mas também dele estão ausentes. Então um artigo – este artigo – existe no espaço de fogo – o espaço da alteridade conjunta. O que significa, finalmente, que ele também é um imóvel mutável. Ele é quatro coisas, localizadas em quatro espaços: região, rede, fluxos e fogo.
Na medida em que avançamos do universal para o local situando a tecnociência, Outras espacialidades merecem exploração. Mas isso é assunto para outro(s) artigo(s).
sobre o autor
Paulo Afonso Rheingantz é arquiteto, doutor em engenharia de produção (UFRJ, 2000), pós-doutorado na California Polytechnic State University, San Luis Obispo (2008). Pesquisador 1D CNPq, Professor Associado aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro com atuação no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Professor Visitante do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas.
notas
NA – O autor agradece o apoio do CNPq (Bolsa de Produtividade e Edital Universal) e da CAPES (Bolsa professor visitante nacional sênior junto ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas).
Este texto inédito foi adaptado da palestra Políticas Ontológicas, Conhecimento Situado e Espacialidades, apresentada em 25 de junho de 2015 em mesa redonda na 4a Conferência do PNUM, Morfologia Urbana e os Desafios da Urbanidade, realizada em Brasilia/DF.
1
LAW, John; MOL, Annemarie. Situating Technoscience: an Inquiry into Spatialities, 2000Disponível em <www.comp.lancs.ac.uk/sociology/papers/Law-Mol-Situating-Technoscience.pdf> acesso em 05/05/2015.
2
Idem, ibidem.
3
MOL, Annemarie. Política ontológica. In J. Nunes; R. Roque [Orgs.] Objetos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto, Afrontamento, 2008, p. 63.
4
Idem, ibidem, p. 63.
5
LAW, John; MOL, Annemarie. Op. cit.
6
Idem, ibidem.
7
Idem, ibidem, p. 2.
8
Idem, ibidem.
9
LATOUR, Bruno. Como falar do corpo?, In J. Nunes; R. Roque Objetos Impuros: Experiências em Estudos sobre a Ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p. 39-62.
10
MOL, Annemarie. Op. cit.
11
HARAWAY, Donna, apud GAGE, Nicholas. Se nós nunca fomos humanos, o que fazer? Entrevista com Donna Haraway, 2012. Disponível em <www.pontourbe.net/edicao6-traducao> acesso em 23ago2014.
12
LAW, John; MOL, Annemarie. Op. cit.
13
HARAWAY, Donna. Apud CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2007, p. 301.
14
LATOUR, Bruno. Op. cit.
15
MOL, Annemarie. Op. cit., p. 63.
16
Idem, ibidem, p. 64.
17
Idem, ibidem.
18
Idem, ibidem.
19
Idem, ibidem, p. 65.
20
Idem, ibidem, p. 66.
21
LAW, John; MOL, Annemarie. Op. cit.
22
Idem, ibidem.
23
LAW, John. Objects, Spaces and Others, 2000. Disponível em <www.comp.lancs.ac.uk/sociology/soc027jl.html> acesso em 01/10/2014.
24
LAW, John; MOL, Annemarie. Op. cit.
25
Idem, ibidem, p. 4.
26
Idem, ibidem, p. 4-5.
27
Idem, ibidem, p. 5.
28
Idem, ibidem. É preciso não confundir o entendimento de rede sociotécnica o de ser confundida com o entendimento comum de 'rede' como o proposto por Manuel Castells em A sociedade em Rede, que tem pouco a ver com a rede sociotécnica, mas tende a se tornar hegemônico.
29
Idem, ibidem.
30
Idem, ibidem, p. 7.
31
Idem, ibidem, p. 8.
32
Idem, ibidem, p. 8.
33
Idem, ibidem.
34
Idem, ibidem, p. 10-11.