A ideia de uma candidatura carioca aos Jogos Olímpicos surgiu em meados da década de 1990, no âmbito das relações estabelecidas entre as cidades do Rio de Janeiro e Barcelona. Poucos meses após a organização dos Jogos de 1992, consultores e técnicos oriundos da administração municipal da capital da Catalunha foram contratados para prestar assistência na elaboração do primeiro plano estratégico do Rio de Janeiro. A organização do megaevento foi defendida como uma oportunidade para se estabelecer um horizonte claro a fim de atingir os objetivos e metas estabelecidos no plano, além de realizar projetos urbanos estruturantes, alavancar investimentos públicos nas três escalas governamentais e projetar uma nova imagem de cidade, então marcada pela criminalidade e violência urbana (1).
Para a realização da proposta de candidatura do Rio de Janeiro aos Jogos Olímpicos de 2004 criou-se uma consultoria específica, a Rio Barcelona Consultores, que reuniu alguns dos especialistas envolvidos com o planejamento dos Jogos Olímpicos de 1992. Sob coordenação do arquiteto Lluis Millet, responsável pelo trabalho de infraestrutura e urbanismo do comitê organizador dos Jogos de 1992, desenvolveu-se o anteprojeto em 1995, quando, além de avaliar equipamentos já existentes, foi apresentada uma proposta de distribuição espacial das intervenções que fosse capaz de promover mudanças estruturantes na cidade. Para surpresa de muitos, o Master Plan sugerido tinha como eixo central das intervenções um local inesperado: a cidade universitária da Ilha do Fundão. A sugestão, que procurou aplicar alguns dos conceitos que orientaram o planejamento dos Jogos de Barcelona, encontrou grande resistência por parte dos atores envolvidos com o projeto carioca, porém, o apoio de outros segmentos garantiu sua incorporação no dossiê final de candidatura. Este artigo avalia e discute as propostas elaboradas, cuja concepção desperta a atenção por ser radicalmente oposta ao master plan desenvolvido nas candidaturas olímpicas que seguiram. Sobretudo, a experiência é ilustrativa do debate entre duas correntes de desenvolvimento urbano que se tornariam mais evidente nas décadas seguintes: a requalificação de áreas centrais e o espraiamento urbano.
A polêmica opção entre Ilha do Fundão e Barra da Tijuca
Firmado o contrato de consultoria em junho de 1995, os trabalhos se concentraram no segundo semestre quando a equipe de Millet visitou a cidade, mapeou a infraestrutura esportiva existente e procurou identificar possíveis locais de intervenção para os equipamentos a construir. Primeiramente foram definidos locais tidos como “indiscutíveis”, seja por sua história, estrutura ou localização, tais como o complexo esportivo do Maracanã, a Vila Militar, a Marina da Glória e o estádio de remo da Lagoa Rodrigo de Freitas (2). A seguir, buscou-se identificar regiões onde as intervenções com novos equipamentos justificados para a realização dos Jogos Olímpicos pudessem produzir um grande impacto urbano e promover melhorias no ambiente construído, na mobilidade e no meio ambiente.
Dois pressupostos foram aplicados para a seleção de áreas que remetiam à experiência conduzida em Barcelona. Primeiramente afirmou-se como condicionantes para o êxito da candidatura elaborar uma proposta compacta; assegurar locais seguros; ter proximidade com o ‘calor popular’; e garantir a viabilidade econômica e utilização dos novos equipamentos imediatamente após o término dos Jogos (3). Em segundo lugar buscou-se reproduzir o conceito de equilíbrio territorial proposto por Millet para Barcelona. Ainda nos estudos iniciais do projeto dos Jogos de 1992, identificou-se quatro clusters principais em cada um dos quadrantes da cidade: as regiões de Montjuic, Parc de Mar; Vall d’Hebrón; e Diagonal. Defendia-se que as intervenções associadas a cada zona produziriam efeitos induzidos sobre seu entorno e assim seriam distribuídas de forma equilibrada sobre a maior parte do espaço urbano (4).
Ao transpor o conceito sobre a cartografia carioca, e levando-se em conta os equipamentos apontados como ‘indiscutíveis’, duas regiões da cidade encontravam-se ausentes: a Zona Norte e a Barra da Tijuca. O trabalho conduzido por Millet deu preferência a concentrar os equipamentos olimpicos a serem construídos na primeira região, nas áreas disponíveis da Ilha do Fundão, campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já na Barra seriam construídos um velódromo e um centro de tênis, assim como seriam aproveitadas as instalações do centro de convenções do Rio Centro. Deste modo, as intervenções propostas estariam distribuídas de forma a produzir efeitos equilibrados sobre a cidade:
“Pode-se ver que, na realidade, esta é um decisão de equilíbrio entre os quatro quadrantes da cidade. São propostas ações tanto para a área norte, como para as áreas sul e oeste. Portanto, eu vejo que o fator de equilíbrio, no qual se baseou o projeto de Barcelona, também está presente no projeto do Rio” (5).
A sugestão encontrou resistências internas no grupo do comitê de candidatura, que transparecem nos relatórios de trabalho onde procura-se justificar a preferência pela Ilha do Fundão e contrastá-la com a opção pela Barra, preferência da prefeitura, mais precisamente na figura do prefeito Cesar Maia (6). Um ano antes, um levantamento preliminar de possíveis locais escolhidos “em função de critérios pré-estabelecidos” encomendado à uma consultoria local, justificava a região por sua “vocação como bairro residencial” e por ser “uma das áreas de maior desenvolvimento e por conseguinte de atração de recursos” (7). Na visão da equipe de Millet os benefícios em se privilegiar a Barra se justificavam em função da facilidade de promoção e venda das unidades residenciais da Vila Olímpica, a disponibilidade de espaços e o entorno de qualidade. No entanto, alertava-se o risco de associar o evento com operações especulativas, da utilização de recursos públicos à margem das prioridades da cidade e da distância dos equipamentos esportivos ao conjunto da população, “em particular no que respeita a Zona Norte, região menos dotada de instalações desportivas” (8).
Por outro lado, a opção pela Ilha do Fundão era defendida principalmente por sua localização e pelo aproveitamento dos investimentos públicos realizados. Por ser uma ilha, o local oferecia facilidade na implantação de um perímetro de segurança em seus pontos de acesso. Além disso, sua posição ao lado do aeroporto internacional na Ilha do Governador simplificava a logística do evento ao passo que estava situada na confluência das vias expressas da Linha Vermelha e da Linha Amarela, esta última em estágio de construção. As instalações olímpicas seriam incorporadas ao patrimônio da UFRJ e assim, “evitar qualquer ideia de especulação urbana relacionada com os Jogos Olímpicos” (9). Os principais desafios seriam a urbanização das favelas vizinhas, Nova Holanda e Maré, que então contavam com 62 mil habitantes, a efetiva implantação do programa de despoluição da Baía de Guanabara e a gestão do projeto, já que este implicava um local de propriedade do governo federal com importantes atribuições municipais (urbanização de favelas) e estaduais (saneamento, despoluição e transportes).
As intervenções olímpicas concebidas seguiam também a proposta de acupuntura urbana conduzidas por Oriol Bohigas, arquiteto chefe da transformação de Barcelona, e também presentes nas políticas urbanas de Luiz Paulo Conde no Rio de Janeiro e Jaime Lerner em Curitiba. Millet via nas intervenções localizadas associadas ao megaevento, especialmente em áreas degradadas, a possibilidade de promover melhorias urbanas significativas. Tal processo o arquiteto se referia como “efeitos balsâmicos”:
“Na proposta Rio 2004 as operações urbanísticas previstas afetam áreas centrais da cidade. É fácil imaginar que tais intervenções exercerão, sempre, efeitos balsâmicos sobre a malha urbana, gerando processos de requalificação e reequipamento. No entorno de todos os parques olímpicos serão desenvolvidas operações de renovação urbana que traduzir-se-ão em melhorias na qualidade habitacional, na criação de novos centros de serviços, no traçado de eixos ou vias cívicas, bem como em ampliações e melhorias de parques e jardins existentes” (10).
Dos clusters olímpicos propostos na candidatura aos Jogos de 2004, aqueles localizados na Ilha do Fundão e no bairro de São Cristóvão eram os de maior potencial de recuperação de áreas centrais. Suas propostas previam significativas recuperações de espaços públicos, equipamentos de lazer, habitação e meioambiente.
Parque Olímpico Universitário
A definição da Ilha do Fundão como ‘coração dos Jogos’ também foi fundamentada por duas ideias que apresentam paralelos com o desenvolvimento urbano de Barcelona anterior ao evento. Primeiramente, defendeu-se a oportunidade através da realização dos Jogos em concluir um plano urbanístico inacabado. A intervenção urbana mais significativa da Barcelona olímpica se deu em sua frente marítima, ao requalificar a zona portuária em área comercial e de lazer, transformar a área industrial de Poble Nou em Vila Olímpica, eliminar a barreira das linhas ferroviárias junto à costa, e recuperar sua faixa litorânea. Estas intervenções catalizaram as operações levadas à cabo nas décadas seguintes no triângulo formado pelo litoral, a área ao leste da Vila Olímpica e a Avenida Diagonal. O plano para esta região respeitou o traçado homogêneo idealizado por Ildefons Cerdà em 1859 em seu projeto para a expansão da cidade além dos limites de seu centro histórico e levou a continuidade da malha urbana até o litoral.
A proposta para a Ilha do Fundão também foi fundamentada na conclusão de um plano, neste caso o “Plano Geral para a Cidade Universitária – Universidade do Brasil”. Exemplar do planejamento racional modernista, o plano foi elaborado pelo arquiteto Jorge Machado Moreira e sua equipe entre 1949 e 1962, estabelecendo o traçado viário de seus 5,9 milhões de metros quadrados, além de alocação de usos de área e construção de parte dos edfícios previstos. Nunca concluído, a proposta olímpica previa sobretudo a recuperação e consolidação da área da ilha voltada à Baía de Guanabara, assim como a expansão de sua área residencial.
Um importante elemento do plano original de Moreira era justamente a construção de um estádio universitário no cruzamento de duas das principais vias da ilha. De formato elíptico, o que permitia ter vista livre da baía desde a arquibancada principal, o projeto foi inspirado em proposta similar de Le Corbusier para Paris e seria um dos marcos da cidade universitária (11). A proposta de Millet previa resgatar o projeto original como estádio olímpico, assim como equipar as áreas livres adjacentes com um centro aquático, um ginásio multi-esportivo e centros de hóquei e softbol. Os equipamentos esportivos seriam incorporados ao patrimônio da UFRJ e utilizados pela faculdade de educação física e para eventos ao público em geral. A faixa litorânea à margem dos novos equipamentos, um grande arco com cerca de cinco quilômetros, seriam recuperados e transformados em um parque, equiparável ao Aterro do Flamengo, com “características parecidas com as do maravilhoso parque de Burle Marx” (12).
Um dos principais estudos elaborados durante o período pré-Olímpico de Barcelona e que direcionou o desenvolvimento da cidade nas décadas seguintes foi o programa Áreas de Nova Centralidade. O programa identificava doze áreas, em geral de usos obsoletos, nas quais o setor público deveria intervir direcionando a atuação privada, com o propósito de estabelecer uma rede urbana policêntrica (14). Os quatro clusters olímpicos dos Jogos de 1992 foram incorporados ao programa, com particular importância à área de Poble Nou como já discutido. Apresentando justificativa semelhante, o projeto olímpico carioca pretendia desenvolver a centralidade da Ilha do Fundão através da diversificação de usos e dotação de infraestrutura, de forma a superar sua condição de isolamento em relação à cidade:
“Assim, que o Fundão passe a ser também uma parte da cidade e não uma zona, um gueto universitário, qualitativamente alto, mas não deixa de ser um gueto. É preciso, portanto, dar ao Fundão usos e introduzir lá basicamente a residência e o espetáculo do esporte como elementos de qualificação urbana da universidade” (15).
Incorporar a Ilha do Fundão à “normalidade urbana” (16) significava requalificar seus espaços tendo em vista três grandes públicos. Primeiramente, o acadêmico, estimulando uma vida permanente com a ampliação da zona residencial. Em segundo lugar, a população em geral, com a oferta de um novo parque e de eventos esportivos. Por último, a iniciativa privada, ao converter parte das instalações olímpicas como o centro de mídia e transmissão em um parque tecnológico, projeto que então encontrava-se em discussão.
Além do desenvolvimento dos grandes vazios da ilha, o projeto olímpico demandava elevados investimentos em infraestrutura. Destes, grande parte era representada pelas melhorias em mobilidade e ambientais. Ao passo que a localização dos principais equipamentos próximos ao aeroporto facilitava a logística de deslocamento das delegações e imprensa, era necessário melhorar as condições de acesso com o restante da cidade. A construção da Linha Amarela que se encontrava em execução facilitava a comunicação com as Zonas Norte e Oeste. No entanto, a principal melhoria de transporte prevista seria a expansão da rede metroviária até o aeroporto internacional, com um ramal partindo da estação Maria da Graça na linha 2 com paradas em Bonsucesso e na Ilha do Fundão (17). Já as condições ambientais representavam o maior desafio de todo o projeto olímpico. Ter um parque olímpico banhado pela Baía de Guanabara demandava grandes investimentos na infraestrutura sanitária metropolitana assim como limpeza de suas águas. O programa de despoluição da baía, cuja etapa inicial havia recebido financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento e da Agência de Cooperação Internacional do Japão em 1994, era prevista a ser concluída até a organização do evento.
A operação Maracanã-São Cristóvão-Zona Portuária
Outro local proposto como indutor de recuperação urbana e ambiental foi o eixo compreendido pelo complexo do Maracanã, Campo de São Cristóvão e zona portuária. Partindo-se do complexo esportivo, palco das cerimônias olímpicas, partidas de futebol e de vôlei, propôs-se a criação de um ‘corredor verde’, através do qual seria possível percorrer a pé em 20 minutos a distância entre as estações de trem e metrô adjacentes ao estádio até o novo equipamento a ser chamado Arena São Cristóvão. Para tanto seria necessário vencer a barreira dos trilhos com a construção de uma passarela que conduzisse grandes fluxos de passageiros até o parque da Quinta da Boa Vista. Ao cruzar o parque seria possível percorrer o trajeto formado pela Avenida do Exército até o Campo de São Cristóvão onde estaria localizada a arena esportiva, palco das partidas de basquete. O percurso final se daria desde este ponto até a zona portuária pelas ruas da Igrejinha e Santos Lima (18).
A operação foi tida como a de maior impacto na área central da cidade, com o propósito de recuperar uma grande área verde e o patrimônio arquitetônico das vias principais e adjacentes (19). A centralidade exercida pela Quinta da Boa Vista seria desenvolvida com uma melhor integração com seu entorno e incremento de suas atividades culturais afim de torná-la o principal parque da cidade:
“Sem dúvida alguma, este parque contará com tantas atividades e lugares maravilhosos como os que o Central Park oferece aos nova iorquinos, ou o Hyde Park aos londrinos” (20).
O casario histórico da região próxima ao parque seria recuperado, bem como as vias, calçamento e imobiliário urbano de modo a criar um boulevard até o Largo da Cancela e o Campo de São Cristóvão. A principal intervenção se daria no pavilhão de exposições, concebido no início da década 1960 pelo arquiteto Sérgio Bernardes e que se tornou o principal centro de eventos da cidade até a inauguração do Rio Centro em Jacarepaguá, mas que se encontrava em estado de abandono após a queda de sua cobertura na década de 1990. O local seria convertido em uma arena multi-uso, projetada pelo próprio Millet, em projeto que previa o adensamento de seu entorno com novos edifícios, hotéis, centro comercial e recuperação das áreas públicas.
Desdobramentos
O projeto olímpico elaborado por Millet foi oficializado no final de 1995 e o dossiê de candidatura foi submetido ao Comitê Olímpico Internacional (COI) no semestre seguinte. No entanto, a proposta aprofundou as divergências entre os atores políticos participantes do comitê de candidatura. Millet obteve apoio de parte dos integrantes do comitê, sobretudo dos representantes do governo federal e do então secretário municipal de urbanismo, Luiz Paulo Conde. Contrários à proposta estavam o prefeito Cesar Maia e o recém eleito presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman (21).
Durante o ano de 1996 outros grandes projetos foram alinhados às ambições olímpicas do Rio, tais como a criação do Parque Fernando Henrique Cardoso no Trevo das Margaridas na Avenida Brasil, a construção de uma nova estação rodoviária e a extensão da malha metroviária até Niterói através da construção de um túnel submarino (22). Com as propostas tornadas públicas e tendo o trabalho de promoção liderado pelo deputado federal Ronaldo Cézar Coelho, a candidatura obteve grande apoio midiático, de celebridades e da população, culminando em uma grande manifestação de apoio popular em 3 de março de 1997, quando foram reunidas cerca de 1 milhão de pessoas na praia de Copacabana (23). Entretanto, dois dias depois durante a assembleia do COI em Lausanne, Suíça, foram eliminadas cinco cidades dentre as dez candidatas para a fase final de votação, dentre estas a candidatura carioca. O primeiro projeto olímpico do Rio de Janeiro seria então abandonado até sua reformulação no início da década seguinte, quando foram descartadas intervenções na Ilha do Fundão e em São Cristóvão.
Ainda que malfadada, a candidatura olímpica disponibilizou à UFRJ recursos federais para reforma e pintura de edifícios, paisagismo, limpeza e recapeamento das vias por ocasião da visita do comitê de avaliação do COI (24). No entanto, nenhum dos equipamentos esportivos previstos, assim como a expansão das residências universitárias foi levada adiante após a derrota da candidatura. A ideia preexistente de criação de um Parque Tecnológico ganhou força e foi viabilizada em 2003 com a construção do Centro de Pesquisa da Petrobrás, ocupando a área prevista para o parque, ginásio multiesportivo e outras instalações. Em 2009 foi aprovada a revisão do plano diretor da ilha com vistas à 2020, com mudanças substanciais ao plano elaborado por Jorge Machado Moreira na década de 1950 (25). Em razão da organização dos Jogos Olímpicos de 2016 foram modernizadas as instalações do laboratório antidoping, a construção de centros de treinamento de hóquei e rúgbi, e melhorias no acesso por transporte público através de uma estação de BRT da linha Transcarioca.
A proposta de operação em São Cristóvão tampouco evoluiu nas gestões seguintes, embora tenha sido objeto de estudos relacionados ou não à realização de grandes eventos. O ex-prefeito Luiz Paulo Conde indicou a região como principal área de intervenção com vistas aos Jogos Panamericanos e a outra possível candidatura olímpica (26). Já durante o segundo e terceiro mandato do ex-prefeito Cesar Maia, foi realizada uma proposta de reabilitação integrada de toda a região de São Cristóvão elaborada por uma cooperação técnica entre as prefeituras do Rio de Janeiro e Paris, a Caixa Econômica Federal e o Ministério das Cidades (27). A proposta tampouco teve continuidade e as intervenções mais significativas ocorreram com a conversão do pavilhão de São Cristóvão no Centro de Tradições Nordestinas em 2002 e com a operação urbana Porto Maravilha ao longo da Avenida Francisco Bicalho.
Conclusão
Em seu conjunto, as intervenções previstas à partir da Ilha do Fundão foram concebidas de forma a deixar legados tangíveis e distributivos à sociedade, com melhorias significativas em uma universidade pública, na infraestrutura de transportes e saneamento, assim como na recuperação de patrimônio histórico e criação de espaços públicos. Em retrospecto, suas propostas parecem hoje de difícil execução, em especial ao se considerar o contexto político e a dinâmica de desenvolvimento urbano daquele período.
Ter a Ilha do Fundão como palco central dos eventos dos Jogos Olímpicos implicava em grande vontade política e certa harmonia entre os três entes governamentais. Como já apontado, o sucesso da proposta estava condicionado à realização de grandes projetos, seja na construção de equipamentos, despoluição das águas da Baía de Guanabara, expansão do metrô e urbanização de favelas, os quais as chances de concretização dependiam do compromisso de cada governo com o projeto olímpico. Não somente eram o governador e o prefeito rivais políticos, como este último se posicionou claramente contrário à proposta e se ausentou durante a visita do comitê de avaliação do COI.
A insistência de Millet em concentrar grande parte das intervenções urbanas na Zona Norte, está diretamente associada à experiência de Barcelona com a realização dos Jogos de 1992. Não somente havia concordâncias sobre a necessidade de intervir em determinadas regiões da capital da Catalunha, como o poder público foi capaz de determinar e conduzir a atuação privada naquelas áreas que julgava prioritárias. A proposta da Ilha do Fundão surpreendeu a muitos, uma vez que não figurava entre as áreas principais do plano estratégico e tampouco havia sido objeto de estudos aprofundados por parte da prefeitura ou projeto político dos atores principais. A recuperação de áreas centrais passou a ganhar espaço na gestão municipal através do programa Rio-Cidade conduzido por Luiz Paulo Conde, mas no entanto o foco da atividade imobiliária se encontrava na fronteira de expansão urbana representada pela Barra da Tijuca. As dificuldades em redirecionar a atuação do setor privado para as áreas centrais do Rio de Janeiro são reconhecidas e ainda pertinentes, visto o escasso lançamento de unidades residenciais no atual programa de requalificação da zona portuária.
O projeto olímpico do Rio de Janeiro seria retomado na década de 2000 justamente por aqueles que foram contrários às proposições da candidatura de 2004. A partir de então, o projeto perderia seus referenciais urbanísticos de equilíbrio territorial e indutor de melhorias em favor de uma estratégia pragmática para assegurar a nomeação olímpica que levou à realização dos Jogos Panamericanos em 2007 e outras duas candidaturas aos Jogos de 2012 e 2016. Como resultado, a Barra da Tijuca passou a concentrar as propostas de intervenção urbana, conciliando assim investimentos públicos e privados e tornando-se claramente a região da cidade mais beneficiada pelos legados urbanos das Olimpíadas.
notas
NE - Agradecimento especial a Sula Danowski pela colaboração na edição de imagens.
1
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, Rio sempre Rio, Rio de Janeiro, PCRJ, 1996.
2
RIO BARCELONA CONSULTORES. Anteprojeto de Candidatura da Cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2004. Designação prévia de usos por área. Estudos de adequabilidade. INF0408, Biblioteca do Comitê Olímpico Brasileiro, 1995, s.p.
3
RIO BARCELONA CONSULTORES. Op. cit.
4
MILLET, Lluis. The Games of the City, Barcelona, Centre d’Estudis Olímpics UAB, 1995. Disponível em: <http://olympicstudies.uab.es/pdf/wp046_eng.pdf>. Acesso em 1 ago. 2016.
5
MILLET, Lluis. A Utilização dos Jogos Olímpicos para a Restruturação Urbana: Barcelona-Rio semelhanças e propostas. In IPLANRIO (org.) Seminário sobre as Condições Urbanísticas das Áreas Selecionadas para os Jogos Olímpicos, Rio de Janeiro, PCRJ, 1996, p. 32.
6
PINTO, Marcus Barros; GRIJÓ, Fabio. O Rio não será mais o mesmo. Entrevista Carlos Arthur Nuzman. Jornal do Brasil, 1 set. 2002, p. C5.
7
TCI Planejamento, Projeto e Consultoria Internacional. Diagnóstico preliminar da infra-estrutura atual, Rio de Janeiro, Associação Rio 2004, 1994.
8
RIO BARCELONA CONSULTORES. Op. cit.
9
Idem, ibidem.
10
RIO BARCELONA CONSULTORES. Anteprojeto de Candidatura Jogos Olímpicos de 2004. Rio de Janeiro, Volume II, Biblioteca do Comitê Olímpico Brasileiro, 1996, p. 23.
11
POSTINGHER, Débora Carla. Jorge Machado Moreira e o projeto da Cidade Universitária da Universidade do Brasil – 1949-1952. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2012
12
RIO 2004. Rio de Janeiro Candidate to Host the XXVIII Olympic Games in 2004, Volume II, 1996, p. 22.
13
RIO 2004. Op. cit., Volume I, 1996, p. 36.
14
BUSQUETS, Joan. Barcelona. La construcción urbanística de una ciudad compacta. Barcelona, Ediciones del Serbal, 2004.
15
MILLET, Lluis. Op. cit. 1996, p. 37.
16
RIO BARCELONA CONSULTORES. Op. cit., volume II, p. 19.
17
Idem, ibidem, p. 96.
18
HERCE, Manuel. Work-shop sobre a área do Maracanã-São Cristóvão. In IPLANRIO (org.) Seminário sobre as Condições Urbanísticas das Áreas Selecionadas para os Jogos Olímpicos, Rio de Janeiro, PCRJ, 1996, p. 71-84.
19
RIO BARCELONA CONSULTORES. Op. cit., p.19.
20
RIO 2004. Naturalmente Olímpica, Material promocional. Sem data.
21
GRIJÓ, Fabio; MARIA, Gustavo. A Olimpíada é o desafio da nação. Entrevista Carlos Arthur Nuzman, Jornal do Brasil, 20 jul. 2003, p. A8.
22
JORNAL DO BRASIL. Projeto Rio 2004 prevê até túnel entre Rio e Niterói, 13 ago. 1996, p. 1.
23
JORNAL DO BRASIL. Aquele abraço, 3 mar 1997, p. 14.
24
PETRIK, Tiago. Fundão veste roupa nova. Jornal do Brasil, 20 out. 1996, p. 35.
25
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Plano Diretor UFRJ 2020, UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.
26
NOGUEIRA, Cláudio. Rio tentará sediar Olimpíadas de 2012, O Globo, 2 fev. 2000, p.17.
27.
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Experiências Urbanas Paris-Rio de Janeiro. Um projeto verde para São Cristóvão, 2006.
sobre o autor
Gabriel Silvestre é doutorando em planejamento urbano pela Bartlett School of Planning da University College London e professor assistente na mesma instituição.