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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo questiona o postulado que, em situações de vulnerabilidade social, o papel do designer é a criação de produtos e serviços que promovam o binômio geração de trabalho e renda.

english
This article questions the postulate that, in situations of social vulnerability, the role of the designer is the creation of products and services that promote the binomial generation of work and income.

español
Este artículo cuestiona el postulado que, en situaciones de vulnerabilidad social, el papel del diseñador es la creación de productos y servicios que promuevan el binomio generación de trabajo y renta.


how to quote

SILVA, Viviane Zerlotini da. Os sentidos do design social. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 216.04, Vitruvius, maio 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.216/6991>.

O adjetivo social, ao qualificar o termo design, apresenta várias interpretações no meio acadêmico. Ele pode designar desde a melhoria da qualidade de vida até se referir à parcela pobre da população brasileira. Neste artigo, o social refere-se à emancipação política de grupos sociais e às possibilidades de superação da vulnerabilidade socioeconômica e civil, compreendida como a desproteção de grandes parcelas da população em relação aos direitos básicos de cidadania e à sua integridade física (1). Não se trata de compreender essa vulnerabilidade pelo viés econômico, que reduz pobreza ao único critério de faixa de renda, mas sim a partir do acesso desigual de diferentes grupos sociais aos direitos fundamentais. No campo do design, de modo equivocado, há uma primazia da ideia de que a solução para a desigualdade social advém do universo da produção e da distribuição de riqueza, o que não procede, considerando-se os mecanismos para a permanência das relações de dominação entre classes sociais (2): a meritocracia, os diversos tipos de capital (capital econômico, social, simbólico e cultural), as fontes morais de julgamento e as disposições de classe (3). Tais mecanismos deslocam a discussão do conceito quantitativo de pobreza material para a noção qualitativa de pobreza política, que inclui escassez de recursos, mas também escassez de poder:

Simplificando as coisas, configuram-se pelo menos dois “bens escassos”: recursos e poder. Perante a infinitude dos desejos e pretensões humanos, nunca há tudo para todos, mas essa condição em si natural (a natureza é finita) é exacerbada em sociedades que concentram excessivamente as vantagens e oportunidades. Nesse caso, trata-se de escassez produzida, mantida, cultivada, reprimida. Na pobreza não encontramos só o traço da destituição material, mas igualmente a marca da segregação, que torna a pobreza produto típico da sociedade, variando seu contexto na história conhecida e reproduzindo-se a característica de repressão do acesso às vantagens e oportunidades sociais (4).

O conceito de pobreza política mostra a necessidade de o design superar as tradicionais propostas voltadas exclusivamente à situação econômica dos indivíduos. Indica também a importância de se aprofundar nos estudos do campo do design social, no sentido de superar a pobreza política, além da pobreza material. A ação política é, em sua essência, coletiva (5). Grupos sociais que se auto-organizam para garantir condições objetivas e subjetivas de sobrevivência apresentam potencialidades de superação das relações de opressão.

Coraggio afirma que na economia popular, própria desses grupos sociais, a forma elementar de organização da produção é a unidade doméstica, segundo uma racionalidade de reprodução ampliada da vida. Há outras maneiras de organização com base na lógica de melhoria das condições de reprodução da vida, como associações, comunidades organizadas, redes formais ou informais de diversos tipos, o que não configura um espaço particular, mas espaços de extensão da unidade doméstica. Essas formações pressupõem a precedência da reprodução sobre a produção: “colocar no centro a reprodução ampliada da vida humana não supõe negar a necessidade da acumulação e sim subordiná-la à reprodução da vida, estabelecendo outro tipo de unidade entre a produção (como meio) e a reprodução (como sentido)” (6). Entende-se por “reprodução” a base principal da existência da sociedade, no sentido de preceder à produção (7). Essa acepção encerra algo mais que a repetição regular do processo produtivo e o pressuposto de determinado nível de produtividade de trabalho (8).

A questão que norteou este artigo - “que fundamentos de uma atuação profissional podem potencializar a luta de grupos sociais, no sentido de esses grupos superarem a pobreza e se libertarem de relações sociais opressoras?” – direcionou os estudos de campo a fim de investigar o cotidiano de quatro coletivos de trabalho (9), os universos de reprodução (vida) e produção (trabalho), os conflitos e as contradições e indicar diretrizes para a atuação profissional que seja crítica, a partir da ideia de emancipação social desses grupos em relação ao técnico especialista.

Abordagem culturalista

Há pelo menos quatro abordagens em design social: a assistencialista, a humanista, a culturalista e a crítica. Na vertente assistencialista, o adjetivo social é conferido ao design destinado ao pobre; a base tecnológica é manufatureira (depende da habilidade do trabalhador e, portanto, os métodos de trabalho são intensivos); os critérios de desenvolvimento do design são o baixo custo dos produtos, serviços e insumos, a pequena ou média escala, a simplicidade, a utilização de recursos renováveis e o bem-estar dos membros da comunidade (renda, saúde, emprego, produção de alimentos, nutrição, habitação e relações sociais); mas promove o apaziguamento social (como não se alteram as relações sociais, o pobre permanece na pobreza e dependente dos designers). Na vertente humanista, o adjetivo social é conferido à concepção de um design acessível “para todos” (design inclusivo), como se, na sociedade brasileira, as classes sociais não tivessem diferentes gradações de acesso aos direitos sociais; a base tecnológica pretende ser avançada, com investimento intensivo de capital; os critérios de desenvolvimento do design são a acessibilidade física (ergonomia, antropometria), menos a acessibilidade política; e os princípios são funcionalidade, usabilidade, conforto, saúde e segurança. Essas vertentes acabam por obliterar as diferenças sociais. Elas não serão exploradas neste artigo, devido ao formato sintético deste trabalho científico. A vertente culturalista foi desenvolvida neste texto por ser considerada a mais perversa de todas, no sentido de recorrer ao discurso do capital cultural - assimilável, sem críticas, pelo campo do design -, cuja aura emana os valores da elite e, assim, reforça as desigualdades sociais.

Um bom exemplo de atuação do designer que reproduz a lógica de produção de mercadorias, e não da vida, são as propostas que promovem o estilo de vida de grupos sociais marginalizados. Essas iniciativas se ocupam da agregação de valor a um produto ou a um processo. Invariavelmente contemplam o artesanato, tendo como principal argumento o desenvolvimento local por intermédio do aumento de renda e, consequentemente, da elevação do nível de vida. A ideia central é a inovação, de forma a garantir a realização do valor em nichos de mercado com maior poder aquisitivo. Os técnicos, que se ocupam de grupos produtivos locais, concebem o espaço como importante fator sociocultural, onde o conceito de território fundamenta a atuação do design na valorização de recursos e identidades locais (10). Os designers se concentram em inovações do desenho do produto e do processo de produção. Eles realizam visitas técnicas em uma comunidade com o claro objetivo de dar suporte e capacitar o produtor a partir da melhoria do produto e dos processos regionais, através do redesign (11).

Em outras situações, os técnicos capacitam o artesão no sentido de identificar, em um processo dito participativo, a cadeia de valor de sua produção artesanal. Cabe ao designer auxiliá-lo na identificação das etapas de produção que agregam mais valor ao produto (12). Algumas vezes, os designers até tentam engajar os grupos no redesenho, por meio de oficinas, procurando incluir nele algum aspecto singular da história ou do local de cada grupo, como aquelas oferecidas pelas faculdades do curso de Design. Os argumentos politicamente corretos da vertente culturalista não alteram a estrutura das relações sociais, pois “trata de “idealizar” e de “romantizar” o oprimido, como se fossem as representações conscientes a causa da dominação social e apenas bastasse a “boa vontade cristã” para reverter o quadro de “dominação injusta” (13). Os técnicos não conseguem perceber que a permanência dos grupos de artesãos na pobreza não é uma questão de ausência de educação, mas sim de encobrimento dos “mecanismos sociais que produzem e reproduzem formas permanentes de miséria existencial, política e material” (14).

Considero as propostas da vertente culturalista politicamente corretas porque são baseadas mais no culto da identidade dos grupos sociais e menos no direito fundamental desses grupos de acesso aos recursos básicos necessários para garantir sobrevivência e prosperidade, em concordância com a filósofa Judith Butler, na introdução do seu livro Quadros de Guerra (15). Ao enquadrar a cultura de determinado grupo social segundo critérios exclusivamente produtivistas, essa vertente mantém e reforça relações sociais opressoras. Segundo esse enquadramento, as normas baseadas na reprodução da vida não conseguem assumir uma forma perceptível. O direito à vida é compreendido como uma mercadoria a ser conquistada mediante a geração de renda. Esses grupos continuam expostos aos mecanismos de violência simbólica.

A valorização do oprimido e de sua forma de vida é um mecanismo de encobrimento de perversas relações sociais (16). Expressões como sustentabilidade ambiental, participação comunitária, inovação e comunidades criativas visam a um único objetivo, ou seja, garantir a geração de trabalho e renda a partir da venda dos produtos regionais estilizados em novo nicho de mercado, ou, em última instância, nos dizeres de Harvey (17), promover a mercantilização da cultura em um mundo globalizado. A mediação do designer através do suporte e da capacitação das comunidades fundamenta-se na formação do artesão como empreendedor. A atividade se concentra na solução de problemas e procura colocar a experimentação, a matéria-prima, a técnica, o mercado e as novas possibilidades de comercialização a serviço da produção. O desafio é conciliar necessidades – como qualidade, custos de produção e acesso ao mercado – e aspectos que mais caracterizam e peculiarizam o artesanato (18).

Ainda que as iniciativas do campo do design contemplem o aumento de renda, a geração de postos de trabalho, a participação do grupo associado no processo de design e até mesmo o codesign, elas não questionam os processos heterônomos de produção dos produtos reduzidos a mercadorias. São limitadas pela matriz do empreendedorismo. Parafraseando Arantes, o artesanato trata-se de um produto que circula como imagem e os designers transformam os valores culturais expressos no espaço do território em metáforas deles mesmos, reduzindo a experiência do artesanato à pura visualidade, resultado de uma busca incessante pela inovação (19). É pelo discurso da inovação que os próprios artesãos se deixam seduzir pelas perspectivas de obtenção de maior renda, através da vantagem de venderem no mercado um produto com autenticidade, singularidade, originalidade ou particularidade, apropriando-se da denominada renda de monopólio. “[...] parte do interesse local pela inovação cultural e a ressurreição e invenção de tradições locais se vincula ao desejo de extrair e apropriar-se de ditas rendas” (20).

Harvey recorre ao exemplo clássico, dado por Karl Marx, para explicar a renda de monopólio: a qualidade excepcional do vinho produzido por determinado produtor, que detém a exclusividade de produção em relação aos outros produtores da região. O produtor irá se beneficiar dessa situação porque poderá vender seu vinho pelo preço que será determinado, não pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção, mas pela disposição que algumas pessoas apresentarão ao pagar pela exclusividade de uma mercadoria excepcional. O estudo da cadeia de valor de um produto é um exemplo de busca de renda por monopólio, pois é compreendida como um tipo de rede de atores (produtores, microempresas, médias e grandes empresas) que criam valor de uma oferta de bens físicos, serviços e informações (21), com o objetivo de ofertar mercadorias com design exclusivo.

No entanto, a renda de monopólio em uma sociedade capitalista é contraditória (22). A mercantilização e a comercialização demasiada das iniciativas locais específicas conduzem à incongruência da homogeneização dos produtos no mercado. A comercialização leva à perda das marcas distintivas. Por outro lado, para evitar essa homogeneização, o caminho é a produção de mercadorias com marcas distintivas especiais. Essa superespecificidade pode conduzir ao consumo especializado, excluindo grandes parcelas da população.

Harvey elabora o conceito de “capital simbólico coletivo”. As formas coletivas de apropriação e inversão de capital simbólico são determinantes para a atração de fluxos de capital em determinada região, a exemplo do turismo em Paris, Nova York, Rio de Janeiro, Berlim e Roma. A ascensão de uma cidade a um lugar de destaque exige a adoção de estratégias para “aumentar seu coeficiente de capital simbólico e incrementar suas marcas de distinção para fundamentar melhor um direito à singularidade que proporciona renda de monopólio” (23). Embora Harvey se refira às metrópoles, o design culturalista promove as rendas de monopólio em qualquer outro território, a partir de suas marcas distintivas de estilo de vida, de herança cultural, de tradição literária etc. O território é concebido como um negócio e não a base da vida.

O processo convencional de produção de design e a participação

Donald A. Schön, em The Reflective Practitioner, observa que profissionais estão comprometidos com a aplicação da teoria científica na resolução instrumental de problemas práticos. “Da perspectiva da racionalidade técnica, a prática profissional é um processo de solução de problemas. Problemas de escolha ou decisão são resolvidos através da seleção, dentre os meios disponíveis, de um melhor ajuste dos fins estabelecidos” (24). A matriz “solução de problemas” determina a atuação do técnico conforme uma sequência linear, por meio de rigorosa aplicação da teoria científica (25). Tal como o método cartesiano, delimita-se o problema, depois procede-se à sua análise, síntese e avaliação e coloca-se em prática a solução. O processo convencional promove e perpetua a divisão vertical e horizontal do trabalho. A extração de mais valia, absoluta e relativa, pelo capital, pressupõe a divisão social do trabalho (26), no sentido de uns poucos técnicos conceberem e muitos trabalhadores executarem de modo parcelado.

A matriz “soluções de problemas” reduz a realidade a critérios técnicos manipuláveis pelo designer. O profissional reproduz o modo convencional de produção irrefletidamente ao preconceber o produto antes da produção e do uso (27). Impede a atuação do usuário no processo - na fase de concepção, ao preestabelecer os fins e os valores a serem incorporados em determinada tecnologia; e no processo, ao empregar o aparato do plano. Evitar essa matriz reducionista de “soluções de problemas” significa ter em mente a “problematização de soluções” (28).

No modo convencional, a finalidade é garantir a realização do valor de troca na esfera do consumo. Para o filósofo húngaro István Mészáros, o desenvolvimento capitalista no século 20 empregou, além de práticas monopolistas e expansão imperialista, outro mecanismo de ampliação do círculo de consumo: a "taxa de utilização decrescente". “Desta maneira, o objetivo e o princípio orientador da produção vem a ser: como assegurar a máxima expansão possível (e a correspondente lucratividade) na base de uma taxa de utilização mínima, que mantenha a continuidade da reprodução ampliada” (29) de capital. Quanto maior a realização do valor de troca do produto no ato da venda, maior a ampliação do círculo do consumo, não importando seus efeitos destrutivos, como o aumento da taxa de exploração do homem pelo homem ou o desperdício de recursos naturais.

Princípios como funcionalidade, usabilidade, conforto, segurança, sustentabilidade e congêneres são fortemente mobilizados. Esses argumentos sustentam o fetiche da mercadoria ao reduzirem o produto a um único aspecto, encobrindo relações sociais opressoras contidas nos processos convencionais. A discussão permanece no universo técnico, a exemplo das propostas politicamente corretas em que supostamente os valores de cunho social ou ambiental, sobrepõem os valores econômicos. Como a sociedade não desempenha papel ativo nos processos de decisão, os princípios norteadores da produção permanecem sob o controle dos designers, configurando um processo vertical de produção e, portanto, hierárquico.

Papanek é um exemplo típico do discurso que exalta a ecologia (30), mas que mantém as bases produtivistas do modo de produção do design: produção de mercadoria, separação entre quem concebe e quem executa; separação entre quem concebe e quem usa; exploração da força de trabalho; culto a identidade dos grupos sociais. Ou seja, produzir e ou consumir menos com menos recursos não implicam em promoção de relações sociais mais justas.

A noção de participação popular é defendida amplamente, tanto em sua versão mais à direita, quanto em sua versão mais à esquerda. Mas essa participação não impede que os valores e as finalidades da tecnologia continuem sendo definidos pelos designers, porque sempre é algo conferido pelo outro: “participação, independentemente do adjetivo que a qualifique (plena, verdadeira, genuína etc.), sempre sugere outra instância, não composta pelos próprios 'participantes', que determina e coordena o processo” (31). Decorre daí que até os processos ditos participativos não asseguram que os fins e os valores incorporados no desenvolvimento do design serão definidos de fato pelos usuários.

Feenberg aponta o controle público do desenvolvimento da tecnologia à “jusante” da cadeia de produção da tecnologia, através de protestos, reivindicações, legislações ou outro tipo de solicitação que determine ajustes ou o reprojetamento na tecnologia ofertada (32). Porém, a afirmação de Feenberg mantém o processo de produção ou de ajuste de tecnologia baseado no modo convencional de produção. A ideia de “intervenções públicas” na tecnologia é bem próxima da ideia de regulação social. A questão é que esse feedback sempre ocorre a posteriori. Há uma diferença qualitativa entre a determinação dos princípios reguladores pelos técnicos e os princípios norteadores pela sociedade. Estes últimos são realizados, a priori, na esfera da reprodução.

Ao reduzir a cultura à mercadoria, o artesão a empreendedor, a participação ao diálogo apaziguador, a vertente culturalista demonstra estreito compromisso em conceber relações sociais exclusivas na esfera da produção. As propostas teóricas e práticas revelam relações sociais próprias do modo capitalista de produção: produção heterônoma com intervenção preponderante de conhecimento técnico especializado no processo decisório; participação dos coletivos restrita à verbalização da demanda e escolha de opções elaboradas pelos designers; esfera da reprodução subjugada às determinações do universo da produção. Um caminho é identificar no cotidiano e na tradição das comunidades locais as normas elaboradas pelo próprio grupo, que mantém o valor de troca dos produtos submetidos ao valor de uso, e vinculadas à reprodução ampliada da vida, não exclusivamente à reprodução ampliada de capital.

Abordagem crítica

A precedência da reprodução sobre a produção (33) é constatada nos estudos de caso a partir da dependência que os membros dos coletivos de trabalho, como o ser humano em geral, têm das atividades de cuidado e proteção (34). Formas negativas de dependência consistem na vulnerabilidade individual ou social a que os membros dos coletivos de trabalho estão submetidos. Formas positivas consistem na capacidade de cada grupo criar vínculos sociais com alguma autonomia, fundamentados na esfera da reprodução. Emprego a expressão “racionalidade reprodutiva” para indicar os aspectos positivos da precedência da reprodução; e a sentença “racionalidade produtivista” para indicar a lógica que subjuga a reprodução às determinações da produção.

A “racionalidade reprodutiva” não é concebida a partir da oposição em relação à “racionalidade produtivista”, ou seja, não se trata de adotar os estereótipos da mulher solidária, bondosa e caridosa e do homem econômico, frio e calculista. (Estereótipos que correspondem ao mero reconhecimento do papel da mulher – ou, pior, da "mulher guerreira” – na reprodução da força de trabalho e que não desmancham as perversas relações de gênero em uma sociedade capitalista, pois continuam atribuindo às mulheres a responsabilidade pela reprodução, em vez de possibilitar produção e reprodução da vida por (re)produtore/as livremente associado/as). Também não se trata de idealizar a construção de vínculos sociais na esfera da reprodução, pois ela não ocorre sem conflitos.

O quadro sintetiza os recursos empregados pelos coletivos para darem conta desses conflitos. A negociação ocorre em “espaços políticos”, onde os membros associados se reúnem para discutir e buscar soluções na esfera da reprodução, sem a intermediação de instituições reificadas, como entidades do poder público ou da organização da sociedade civil. Os espaços políticos são conformados segundo práticas do cotidiano. Quanto maior a automediação do indivíduo social (35), ou quanto maior a atuação dos indivíduos na determinação dos aspectos da vida comunitária, mais abrangentes são os espaços políticos.

Mészáros entende que a superação da atividade alienada só pode ser concebida por meio da prática humana autoconsciente (36). O conflito entre indivíduo e sociedade não pode ser reduzido “a menos que [o indivíduo] participe de maneira cada vez mais ativa na determinação de todos os aspectos de sua própria vida, desde as preocupações mais imediatas até as mais amplas questões gerais de política, organização socioeconômica e cultura” (37). O problema de superação é no fundo uma questão “da natureza específica dos instrumentos e processos efetivos de automediação humana” (38).

O problema, para a teoria e a prática socialistas, é a elaboração concreta e prática de intermediários adequados, que permitam ao indivíduo social “mediar-se a si mesmo”, ao invés de ser mediado por instituições reificadas. Em outras palavras, para Marx a tarefa é colocar os instrumentos do intercâmbio humano em harmonia com a socialidade objetiva dos seres humanos. O que está realmente implícito no conceito de “automediação adequada do indivíduo social” não é o desaparecimento da instrumentalidade, mas o estabelecimento de formas socialistas, conscientemente controladas, de mediação, em lugar de relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo (39).

A natureza de instrumentos de automediação humana não reside em normas predefinidas, mas em normas dinâmicas elaboradas pelos coletivos, baseadas em autodeterminações recíprocas entre eles (40). Essa instrumentalidade pode favorecer as mediações entre o homem e a natureza e o livre desenvolvimento das potencialidades humanas.

Estratégias de enfrentamento das contradições entre racionalidade reprodutiva e produtivista

A ideia forte do design social crítico reside na “autonomia das pessoas, não apenas individual mas sobretudo coletiva ou, em outras palavras, sua emancipação de relações sociais de dominação e a construção de relações sociais de cooperação” (41). Mas o que é autonomia? “De saída, podemos dizer simplesmente que autonomia é o 'direito' de se autogovernar. Auto-nomos, normas ou leis próprias; Hetero-nomos, normas ou leis do outro, do heteros” (42). O caráter relativo da autonomia se deve ao seu contrário: a heteronômia, em uma relação dialética.

"autonomia não é apenas o direito, mas, principalmente, a capacidade de dar a si mesmo suas próprias normas. Também nesse sentido, a autonomia só existe quando há algo de heterônomo em jogo, quando há algo de exterior, de outro. Mas, a autonomia como capacidade de autodeterminação pode ocorrer à revelia das forças heterônomas, ao passo que, como direito de autodeterminação, ela é concedida por essas forças mesmas" (43).

A compreensão crítica do conceito de design social busca instrumentar a sociedade em sua busca por transformação social. As normas de produção não são definidas pelos técnicos e, sim, pela sociedade. E restituir à sociedade o controle sobre os processos produtivos pressupõe uma transformação na estrutura de produção convencional de conhecimento. O controle do usuário pode ser retomado em qualquer momento do processo produtivo, reduzindo-se as distâncias da divisão social do trabalho. A compreensão crítica determina outra atuação do designer: na concepção de tecnologias em que o usuário mantenha-se ativo no processo de produção (44).

O potencial emancipatório dos grupos de trabalho associado está na autogestão. Os pressupostos do design crítico abrangem esse conceito em todas as esferas da vida: educação para a superação da formação tradicional comprometida com o capital, organização do trabalho segundo o princípio da igualdade substantiva (a cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades), propriedade comum dos meios de produção e unificação das lutas anticapital (45). Essa instrumentalidade fundamenta-se no resgate da autonomia do usuário como produtor do espaço e do técnico como designer de interfaces e mediações - instrumentalidades que ampliam as possibilidades de atuação do designer para além da ferramenta heterônoma do projeto (46).

Ainda na década de 1930, o filósofo Walter Benjamin já denunciava as contradições daquilo que ele denominou de “inteligência burguesa de esquerda”. Ao analisar os movimentos políticos literários alemães, Benjamin demonstrou que “a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor” (47). De modo análogo, o trabalho do designer, com caráter social, não é a produção exclusiva de produtos, mas a produção de meios de produção, a serviço da luta dos trabalhadores.

Considerações finais

Os designers, ocupados com as questões sociais, desenvolvem quatro vertentes de trabalho: assistencialista, humanista, culturalista e crítica. Em maior ou menor grau, as três primeiras vertentes fundamentam-se no paradigma da participação, que sob o escudo de argumentos politicamente corretos legitimam processos de perpetuação da pobreza, uma vez que os usuários atuam de modo parcelado nos processos decisórios e simplesmente validam decisões já definidas anteriormente pelos técnicos especialistas. Os instrumentos desenvolvidos pelos designers para promoverem a “participação” dos usuários são aparatos convencionais de projeto técnico, o que acentua a ideia de que os processos participativos encobrem relações sociais desiguais e as reforçam, já que os projetos técnicos são ferramentas de controle operário em uma linha de produção, o que impede a autodeterminação da produção do design pelos usuários. A vertente crítica, cujo paradigma é a autonomia coletiva, não se restringe a proporcionar aberturas aos usuários no processo convencional de produção de design, mas a formular outro processo de produção. O designer desenvolve instrumentos diferentes além de projeto técnico. Tais aparatos não requerem uma hierarquia estrutural de dominação e subordinação para se estabelecerem. Eles permitem que as normas de produção do design sejam elaboradas pelos usuários, segundo critérios referentes à esfera da reprodução.

notas

1
KOWARICK, Lúcio. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo, Editora 34, 2009.

2
SOUZA, Jessé (Org.). A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009; SOUZA, Jessé (Org.). Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010.

3
Para uma compreensão dos mecanismos de reprodução da pobreza na sociedade brasileira, ver: SOUZA, Jessé (Org.). A ralé brasileira: quem é e como vive (op. cit.); SOUZA, Jessé (Org.). Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? (op. cit.).

4
DEMO, Pedro. Pobreza política. Campinas, Autores Associados, 1996, p. 6-7.

5
ARENDT, Hannah. A condição uumana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, p. 26-33.

6
CORAGGIO, José Luis. Política social y economía del trabajo. Alternativas a la política neoliberal para la ciudad. Madrid, Miño y Dávila Editores, 1999, p. 141.

7
LUXEMBURG, Rosa. A acumulação de capital: estudo sobre a interpretação econômica do Imperialismo. Rio de janeiro, Zahar Editores, 1976, p. 12; KAPP, Silke; LINO, Sulamita Fonseca. Na Cozinha dos Modernos. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.15, n.16, 1o sem. 2008.

8
LUXEMBURG, Rosa. Op. Cit.

9
Para a realização da pesquisa de campo, foram escolhidos dois grupos localizados na região da Pampulha: um de artesanato e um de triadores de resíduos sólidos urbanos, devido à proximidade do local de trabalho da pesquisadora. Após constatar que esses dois coletivos apresentam estruturas organizacionais bastante hierárquicas e uma dependência grande de entidades de apoio, decidiu-se ampliar a pesquisa para dois estudos de caso de organização mais horizontal e com maior autonomia - um grupo de bordadeiras em Belo Horizonte e um grupo de costureiras numa comunidade rural no município de Belo Vale.

10
KRUCKEN, Lia. Design e território: valorização de identidades e produtos locais. São Paulo, Nobel, 2009; REIS, Ana Carla Fonseca (Org.). Economia criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo, Itaú Cultural, 2008; ENGLER, Rita de Castro. Design Participativo: uma experiência no Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte, EdUEMG, 2010.

11
ENGLER, Rita de Castro. Design participativo: uma experiência no Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte, EdUEMG, 2010.

12
KRUCKEN, Lia; MONTENEGRO, Rachel. Comunidades criativas: as artesãs do barro em Turmalina. In: ENGLER, Rita de Castro. Op.cit.

13
SOUZA, Jessé (Org.). A ralé brasileira: quem é e como vive (op. cit.).

14
SOUZA, Jessé (Org.).A ralé brasileira: quem é e como vive (op. cit.).

15
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2016, p. 13-55.

16
SOUZA, Jessé (Org.). A ralé brasileira: quem é e como vive (op.cit.).

17
HARVEY, David. El arte de la renta: la globalización y la mercantilización de la cultura. In: Capital financeiro, propriedad inmobiliaria y cultura. Barcelona, Universidad Autónoma de Barcelona, 2005.

18
FREITAS, Ana Luiza Cerqueira. Design + Artesanato. In: ENGLER, Rita de Castro. Design Participativo: uma experiência no Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte, EdUEMG, 2010.

19
ARANTES, Pedro. A renda da forma na arquitetura da era financeira. In: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (Orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo, Boitempo, 2010.

20
HARVEY, David. Op. cit., p. 429.

21
KRUCKEN, Lia. Op. cit.

22
HARVEY, David. Op. cit.

23
Idem, p. 429.

24
SCHÖN, Donald A. The Reflective Practitioner: How Professionals Think in Action. New York, N Y: Basic Books Inc, 1983, p. 39.

25
Segundo Schön, as situações da prática são problemáticas caracterizadas por complexidade, incerteza, instabilidade e conflito de valores, sendo que o conhecimento profissional baseado na técnica é insuficiente para lidar com as contingências das situações práticas. SCHÖN, Donald A. Op.cit.

26
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro Primeiro. O processo de produção do capital. Volume 1. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010.

27
BALTAZAR, Ana Paula; KAPP, Silke. Por uma arquitetura não planejada: o arquiteto como designer de interfaces e o usuário como produtor de espaços. Impulso (Piracicaba), v. 17, 2006, p. 93-103.

28
KAPP, Silke; CARDOSO, Adauto. Marco teórico da Rede Finep de Moradia e Tecnologia Social. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, v. 17, 2013, p. 94-120 <www.iau.usp.br/revista_risco/Risco17- pdf/03_ref1b_risco17.pdf>.

29
MÉSZÁROS, István. Produção destrutiva e estado capitalista. São Paulo, ensaio. Cadernos Ensaios. Pequeno formato, v. 5, 1989, p. 117.

30
PAPANEK, Victor. Arquitectura e design: ecologia e ética. Lisboa, Edições 70, 1995.

31
KAPP, Silke. Casa alheia, vida alheia: uma crítica da heteronomia. V!RUS, São Carlos, n. 5, 2011. Disponível in: <www.nomads.usp.br/virus/virus05/?sec=3&item=2&lang=pt>.

32
FEENBERG, Andrew. Ten paradoxes of technology. Techne, v. 14, n. 1, Blacksburg, 2010.

33
KAPP, Silke; LINO, Sulamita Fonseca. Na Cozinha dos Modernos. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 15, n. 16, 1o sem. 2008.

34
DÍAZ, Natalia Quiroga. ¿De que crisis estamos hablando? Cuestionamientos y propostas a la política de activos desde la economía feminista y la economía social. In: CORAGGIO José Luis; COSTANZO, Valeria (ed.). Mentiras y verdades del «capital de los pobres». Perspectivas desde la Economía Social y Solidaria. Buenos Aires, Imago Mundi, 2010.

35
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo, Boitempo, 2006.

36
Idem, ibidem, p. 167.

37
Idem, ibidem, p. 259.

38
Idem, ibidem.

39
Idem, ibidem.

40
Idem, ibidem.

41
KAPP, Silke; CARDOSO, Adauto. Marco teórico da Rede Finep de Moradia e Tecnologia Social. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, v. 17, 2013, p. 94-120 <www.iau.usp.br/revista_risco/Risco17- pdf/03_ref1b_risco17.pdf>.

42
KAPP, Silke. Autonomia Heteronomia Arquitetura. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 10, n. 11, 2004, p. 95-105 <www.mom.arq.ufmg.br>.

43
KAPP, Silke. Casa alheia, vida alheia: uma crítica da heteronomia. V!RUS, (op. cit.).

44
BALTAZAR, Ana Paula; KAPP, Silke. Por uma arquitetura não planejada: o arquiteto como designer de interfaces e o usuário como produtor de espaços. Impulso, v. 17, Piracicaba, 2006, p. 93-103.

45
NOVAES, Henrique Tahan. Os 8 pilares do trabalho associado. Agência Jovem de Notícias, 2013. Disponível em: <www.agenciajovem.org/wp/?p=17595>.

46
BALTAZAR, Ana Paula; KAPP, Silke. Op. cit.

47
BENJAMIM, Walter. O autor como produtor: Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da Cultura. 8. ed. revista. Obras Escolhidas. v. 1. São Paulo, Brasiliense, 2012, p. 135.

sobre a autora

Viviane Zerlotini da Silva – Engenheira Arquiteta (Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais – EA UFMG, 1994), Mestre em Engenharia de Produção (Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais - EE UFMG, 1998), Doutora em Arquitetura e Urbanismo (Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais - EA UFMG, 2014). Leciona no Curso de Arquitetura e Urbanismo (AU) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Principal obra publicada: Espaços coletivos de trabalho: outros princípios de análise. Oculum Ensaios, PUCCAMP, 2014.

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