Toda regulação urbanística deve expressar com clareza os valores urbanos e parâmetros que compõem as políticas públicas, as ciências, as técnicas e os conceitos que a fundamentaram. A Lei de Uso Ocupação do Solo – Luos atualmente em vigor em Campinas é de 1988 e não acompanhou as transformações urbanas do território, da economia e da sociedade, tampouco o debate contemporâneo, os avanços conceituais recentes no campo da arquitetura, do urbanismo, do ambiente construído, da preservação ambiental e cultural e da sociabilidade urbana. Ao longo dos anos, como tentativa de superar esse descompasso e também de atender interesses particulares ou setoriais, outras leis foram incorporadas, transformando o zoneamento municipal em um conjunto extenso e complexo de regras pouco claras, além de desarticuladas de uma política geral para o município e dos objetivos dos planos diretores que passaram ao longo deste tempo. Na histórica ausência de planos diretores eficazes (1), mesmo se contarmos a grande maioria dos planos realizados após o Estatuto da Cidade (caracterizados pela reprodução de discursos, ainda que “socialmente engajados”, e menos atentos à autoaplicabilidade das diretrizes propostas) (2), as Luos acabam sendo definidoras dos padrões urbanísticos da produção do espaço pelo mercado formal. A Luos pode ser peça fundamental da política urbana municipal e ferramenta importante para o desenvolvimento socioeconômico e definição do desenho urbano, não por acaso, deve ser fortemente conectada aos demais instrumentos e leis responsáveis pela construção de uma visão urbanística para as cidades, em especial ao Plano Diretor.
Este artigo apresenta e debate os fundamentos e objetivos das propostas urbanísticas realizadas por equipe de consultores da Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente – Fupam da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP junto à Secretaria de Planejamento Urbano do Município de Campinas – Seplan nos anos de 2014 e 2015 (3).
Os principais objetivos deste trabalho abrangeram: a revisão da Luos, incluindo a metodologia de demarcação das zonas e o estabelecimento de critérios e parâmetros urbanísticos (métricas e desenhos), visando tornar a lei clara, objetiva e comprometida com a qualificação dos espaços livres e edificados, públicos e privados, assim como, com as demais estratégias da política urbana municipal. A definição de subsídios para o novo Plano Diretor Municipal também compôs grande parte deste trabalho (4). Realizou-se um amplo processo de diagnóstico técnico, fundamentado em intenso levantamento e interpretação de dados, com produção de cerca de duzentas inéditas cartografias georreferenciadas articulando diversos temas. Embora não seja legalmente obrigatória a participação social na revisão das leis de uso e ocupação, o processo contou com consulta à população, por meio digital reunindo mais de 3 mil contribuições, reuniões com representantes dos diversos conselhos municipais envolvidos na Comissão Geral Participativa – CGP, montada especialmente para este processo, e reuniões diretas com a população nas seis regiões de Campinas.
Matrizes urbanísticas
Para estabelecimento dos parâmetros urbanísticos de uso e ocupação em Campinas, foram eleitas quatro matrizes urbanísticas básicas: 1. usos, definidos pelas categorias Residencial, Não-residencial, Misto e Ambiental; 2. formas de ocupação, definidas pelas tipologias horizontais e verticais de edificações e seus respectivos gabaritos, pelo espaço de fruição pública e pelos índices de permeabilidade e arborização; 3. Densidades construtivas e habitacionais, definidas pelos coeficientes de aproveitamento, pelas frações mínimas e máximas de unidades habitacionais por hectare e pelas dimensões mínimas e máximas dos lotes; 4. Impactos urbano-ambientais, definidos pela disciplina dos distintos níveis de impactos dos usos não residenciais conviventes com os usos residenciais parametrizados em razão da emissão sonora e impactos no tráfego.
Dentro destas matrizes foram conceituados e calibrados um conjunto de parâmetros visando responder aos objetivos e fundamentos urbanísticos em cada zona. Da conjugação destas matrizes, estabeleceu-se novos parâmetros para garantir a qualidade do desenho do espaço público, das tipologias edilícias e de desempenho ambiental. Denominamos parâmetros “urbanístico-integradores”, aqueles que buscam promover uma melhor relação e proporção entre espaços públicos e privados: o espaço de fruição pública – EFP (espaço interno ao lote destinado ao uso público, acessível e desimpedido de qualquer barreira física); e a extensão mínima de permeabilidade visual do lote. Outros foram agrupados e relacionados de modo a estabelecer os parâmetros “urbanístico-ambientais”: o Índice de Arborização, que estabelece indicadores mínimos para a arborização intralote; e o Índice de Permeabilidade, que objetiva a mitigação da drenagem superficial, por meio da infiltração parcial das águas pluviais. Este último desdobra-se em: Índice de permeabilidade mínimo (IP min); Índice Geral de Mitigação da Drenagem Pluvial Superficial – IG, para retenção temporária e controle de vazão das águas pluviais; e o Índice de Retenção – IR obtido pela instalação de reservatório de controle de escoamento superficial ou pela manutenção de área ajardinada sobre a laje.
Revisou-se parâmetros básicos tradicionais (coeficiente de aproveitamento, recuos, afastamentos e gabaritos) e eliminou-se outros, como a taxa de ocupação que, na prática, nada garantem em termos de qualidade pública e urbano-ambiental. Simplificou-se drasticamente as variáveis de ocupação, visando dar à cidade um desenho claro. Como regra geral, estabeleceu-se gabaritos máximos de dez, vinte e quarenta metros para as zonas de coeficiente de aproveitamento (CA) máximos de um, dois e quatro, respectivamente. Os recuos frontais foram abolidos, buscando, junto com a criação do EFP e com o estímulo ao uso misto, qualificar o espaço urbano para a vida pública, a partir do desenho do espaço edificado privado. Visando reforçar a importante contribuição dos térreos na permeabilidade e na fruição pública, a tipologia horizontal ganhou o terceiro pavimento. Objetivando criar lotes que possam oferecer melhor aproveitamento arquitetônico, o lote mínimo de 125 m2 articulou-se à nova frente mínima de 6,25 m. Todos os parâmetros foram testados e simulados, tendo como base a cidade existente.
No tocante às densidades, além de redefinir os padrões construtivos e tipologias, agrega-se um parâmetro raramente utilizado na legislação urbanística brasileira: a densidade habitacional, isto é, a regulação do número mínimo e máximo de unidades habitacionais por hectare. A definição desta métrica interessa à matéria urbanística. É ela que estabelece as densidades demográficas e é, portanto, o melhor parâmetro para se mensurar as necessidades sobre a infraestrutura urbana. Vários estudos foram elaborados até que se configurassem os números indicados a seguir:
Zonas Ordinárias de Uso e Ocupação: ZP – ZR – ZM– ZC – ZAE
A proposta de zoneamento efetiva-se na territorialização das zonas, as quais indicam as condições de construção da cidade a partir de uma lógica urbanística e contém os parâmetros de uso e ocupação do solo. Estas zonas são destacadas como zonas de uso “ordinárias” pois estabelecem parâmetros que podem ser aplicadas à toda a cidade. Situações excepcionais, específicas, estratégicas ou temporárias foram destacadas nas chamadas zonas extraordinárias, a serem apresentadas a diante.
A lei 6031/88 estabeleceu, inicialmente, dezoito zonas de uso que, ao longo do tempo, transformaram-se em 1959. Buscando simplificar a aplicação da lei e tornar o conteúdo urbanístico das zonas mais claro e eficaz, foram propostas apenas cinco categorias de zonas ordinárias que desdobram-se em nove, em função das três densidades construtivas máximas permitidas (CA=1; CA=2; CA=4), conjugadas com as densidades habitacionais mínimas e máximas estabelecidas.
Buscou-se uma compreensão sistêmica do munícipio, sobretudo na distribuição das áreas de indução de altas densidades ancorando-as nos sistemas estruturadores de mobilidade e centralidades. Foi previsto, portanto, o vínculo entre a rede estrutural de transporte coletivo de média capacidade e as zonas que tem por objetivo promover essas densidades médias (CA=2) e altas (CA=4). A organização da distribuição e combinação de usos é proposta não pelo estabelecimento de uma lista, sempre passível de rápida obsolescência, onde se permite ou não cada uso, mas pelo estabelecimento de critérios de controle e limite de impactos urbano-ambientais gerados pelos diversos usos, tais como: emissão sonora e tráfego.
As zonas Periurbana – ZP e Residencial – ZR reconhecem as porções do território com uso majoritariamente residencial de baixa densidade, preexistentes, consolidados e reivindicados pela população como áreas onde se deve conservar maior tranquilidade, sobretudo quanto à incomodidade sonora e de tráfego, sem risco de verticalização. Desta forma, o uso é majoritariamente residencial, admitidos usos não residenciais e mistos de baixo impacto nas vias coletoras, arteriais e de trânsito rápido que cortam estas zonas, dando-lhes maior diversidade. As Zonas Periurbanas são destinadas à preservação dos bairros situados na transição com áreas rurais ou de preservação ambiental, permitindo ocupações apenas unifamiliares em lote mínimo de mil m2. Em razão destas áreas de baixíssima densidade onerarem a infraestrutura urbana, estabeleceram-se contrapartidas ambientais de interesse público, como altos índices de permeabilidade, drenagem e arborização (45%, 45% e 40% dos lotes, respectivamente). Na Zona Residencial – ZR o CA básico é igual ao máximo de 1,0, o lote mínimo é 250 m2 e o máximo é 750 m2para residencial unifamiliar. Permite-se o multifamiliar horizontal – HMH com lote mínimo de quinhentos m2e máximo de cinco mil m2, visando circunscrever esta tipologia ao tamanho de vilas para que possam estar mais integradas ao tecido urbano.
A Zona Mista – ZM corresponde a porções do território destinadas a promover maior diversificação de usos, com diferentes densidades habitacional e construtiva. Foram subdivididas em Zona Mista 1, 2 e 4 (ZM 1, ZM 2 e ZM 4), onde se permite o CA 1, 2 e 4, respectivamente. Somente nas zonas ZM2 e ZM4 são permitidos usos multifamiliares verticais (HMV – habitacional e HCSEI – misto) com gabarito de altura máximo de 20 e 40 metros, respectivamente. Objetivando melhor relacionar os espaços privados e públicos, as tipologias HMH e HMV, em todas as zonas, assegurarão o mínimo de dois terços de permeabilidade visual de suas frentes voltadas para o logradouro público.
A Zona de Centralidade – ZC corresponde a porções do território destinadas à diversificação de usos, com predominância de usos não residenciais e mistos, que consolidem e ampliem a oferta de comércio, serviços, equipamentos públicos, empregos e moradia, articulando-as às redes de mobilidade existente e prevista, subdividida em Zona de Centralidade 2 e 4 (ZC 2, com CA máximo de 2 e ZC 4, com CA máximo de 4). Por questões de desenho urbano e funcionalidade, as ZC4 foram aplicadas nos entroncamentos entre linhas e modais do sistema de transporte coletivo, reforçando estas centralidades e, ao longo dos eixos de mobilidade, foi alocada a ZC2.
Por fim, a Zona de Atividade Econômica – ZAE corresponde a porções do território destinadas ao desenvolvimento econômico, sobretudo às atividades de produção, transformação e prestação de serviços industriais, tecnológicos e de logística, objetivando aproveitar as infraestruturas locacionais regionais de Campinas e incentivar a modernização da indústria, particularmente daquelas que envolvem ciência, pesquisa, tecnologia e informação. Subdividem-se em ZAE A e B, em virtude do porte (com lotes mínimos de quinhentos m2 e dois mil m2, respectivamente) e distintos padrões de incomodidade urbano-ambiental. Para estas zonas estabeleceu-se que o CA básico é igual ao máximo 1,5, sem limite de gabarito, buscando promover usos e tipologias mais verticais que possam aproveitar melhor os terrenos e diversificar o padrão tradicional das tipologias industriais e ou de serviços atrelados às mesmas. Nestas zonas não se permite o uso residencial por uma estratégia de reserva fundiária. Busca-se evitar a proliferação de condomínios residenciais (loteamentos fechados), majoritariamente horizontais e de baixa densidade, que vem disputando esta localização na macrometrópole, sobretudo às margens de rodovias e outras estruturas regionais. Visando inverter a lógica do modelo rodoviarista, incentivada inclusive pela própria norma urbanística vigente, para a maioria das zonas e tipologias foi dispensada a exigência de estacionamento ou vagas de garagem.
Zonas Extradorinárias: Zeel – Zeppac – Zeis
As zonas “extraordinárias” reconhecem situações excepcionais ou sensíveis no território, sobrepondo-se ao zoneamento ordinário. Elas podem restringir ou flexibilizar alguns parâmetros quando se sobrepõem às zonas ordinárias, mas sempre relacionando-se aos mesmos, nunca criando situações de conflito ou desconexão com o desenho urbano proposto. Foram definidos três tipos de zonas extraordinárias: as Zeis – Zonas Especiais de Interesse Social, as Zona Especial de Preservação Ambiental do Sistema de Espaços Livres – Zeel e as Zonas Especiais de Preservação das Paisagens Culturais – Zeppacs.
É importante ressaltar que as Zeis foram aplicadas como instrumentos urbanísticos para viabilizar a política habitacional de interesse social e não como zonas de uso, pois não pré-estabelecem métricas de uso e ocupação. Aliás, este tipo de uso das Zeis acontece em outras legislações e as consideramos inadequadas exatamente porque sua aplicação mais pulverizada, as vezes sobre um lote, pode gerar formas de ocupação descompassadas ou indesejadas fragilizando o desenho urbano pensado para aquele setor da cidade. As Zeis campineiras diferenciam-se em duas categorias, as de regularização e as de indução. A primeira tem a finalidade de reconhecer o território ocupado irregularmente e tornar possível sua regularização e nela, portanto, permitir-se-á parâmetros e métricas especiais definidas a partir de projetos específicos de regularização. A segunda demarca vazios urbanos que deverão constituir um banco de terras para a política habitacional e devem obedecer os parâmetros propostos pelas zonas ordinárias as quais se sobrepõem. Nestas, as Habitações de Interesse Social Faixa 1 (HIS F1), devem ser destinadas às famílias cuja renda mensal não ultrapasse três salários mínimos, não corresponderão a índice inferior a 40% do empreendimento. As HIS Faixa 2, devem ser destinadas às famílias cuja renda mensal não ultrapasse seis salários mínimos e não excederão 30% do empreendimento. As Habitações de Mercado Popular – HMP, destinadas a famílias cuja renda mensal não ultrapasse dez salários mínimos, não excederão 30% do empreendimento. Os empreendimentos de Habitação Social definidos poderão destinar até 15% de sua área construída a usos diversos, desde que permitidos na zona de uso onde se inserem.
A Zona Especial de Preservação Ambiental do Sistema de Espaços Livres – Zeel corresponde às porções do território destinadas a criar, preservar e qualificar os espaços livres, o ambiente natural e os usos ambientais e socioculturais associados, subdividindo-se em Zeel 1 e 2. A Zeel 1 compreende os Espaços Livres de Uso Público, compreendendo os parques urbanos, bosques públicos, praças e canteiros ajardinados ligados ao sistema viário. A Zeel 2 são as Unidades de Conservação Ambiental, compreendendo os Parques Naturais Municipais e demais Unidades de Conservação Ambiental previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc e áreas que são ou que vierem a ser tombadas por legislação municipal, estadual ou federal. Nelas é vedado o uso residencial e misto, permitidos exclusivamente usos institucionais, culturais e educacionais, limitando-se os demais usos aos compatíveis com a destinação da área e desde que aprovados pelo órgão gestor ambiental competente. Não é comum encontrar na legislação brasileira definições sobre formas de ocupação destas áreas. Julgou-se importante que estes parâmetros estejam previstos em lei para evitar desvios de finalidade praticados, inclusive, pelo poder público. Assim, foram definidos o CA máximo 0,1 para Zeel 1 e 0,03 para Zeel 2 e o IP – Índice de Permeabilidade mínimo de 25%, IArb – Índice de Arborização mínimo de 35% e IG – Índice Geral de Mitigação da Drenagem Pluvial Superficial de 25%. Importante ressaltar que, à medida em que o parcelamento do solo for acontecendo, novas Zeels deverão ser criadas e incorporadas ao zoneamento.
As Zona Especiais de Preservação da Paisagem Cultural – Zeppac sobrepõem-se ao zoneamento ordinário e apresentam as paisagens significativas criadas pelo homem, por ele percebidas ou apropriadas culturalmente e expressam relações que, ao longo do tempo, vem se estabelecendo entre a sociedade ou grupos sociais específicos e o território, de forma que nelas estão contidos os remanescentes materiais e expressões imateriais das atividades desenvolvidas pelo homem, bem como sua historicidade e suas práticas cotidianas, suas experiências, celebrações, formas de expressão, identidades e tradições (5). Conceito recentemente adotado pelo Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco e Iphan, as paisagens culturais resultam de leituras de conjunto que compreendam, valorizem e gerenciem de forma articulada os bens naturais, culturais materiais e imateriais, oficialmente reconhecidos ou não. A partir de um estudo inédito, com metodologia especificamente desenvolvida para tal, identificou-se quinze paisagens culturais que evidenciam um sistema que revela e valoriza a diversidade e singularidades da cultura campineira, suas conexões com a cultura regional e nacional, seus processos e distintos períodos históricos, econômicos e urbanos. Nas Zeppacs poderão ser demarcados Conjuntos Urbanos de Interesse Arquitetônico e Histórico da Paisagem Cultural, identificados pela relevância da preservação de seus atributos e significados arquitetônicos, técnicos e/ou históricos para o registro do processo de evolução urbana e diversidade da paisagem cultural. Este patrimônio material pode ou não ser indicado para tombamento. Entretanto, mesmo que não seja tombado, poderá utilizar a Transferência de Potencial Construtivo – TPC, calculada pela diferença entre o CA utilizado e o CA máximo permitido da zona de uso em que se inserem. Os recursos auferidos devem ser investidos na preservação do bem conforme acompanhamento do órgão de preservação competente, tal como funciona para os bens tombados. Outro instrumento atrelado às Zeppacs são os EIA e EIV (Estudos de Impactos Ambiental e de Vizinhança) para construções acima de 2.500 m2 ou quando legislação específica solicitar ou os órgãos competentes julgarem necessário.
Regras de convivência: controle dos impactos urbano-ambientais dos usos
Uma das maiores dificuldades da Luos é a definição de como pode ou deve acontecer a combinação entre usos residenciais e não residenciais. Historicamente as cidades nasceram e se desenvolveram com ampla mistura de usos, que passou de dentro da edificação ao urbano. O urbanismo sanitarista, na virada do século 20, impôs restrições e segregação a alguns usos considerados perigosos à saúde pública. A seguir, a matriz modernista-funcionalista propôs uma quebra drástica destes padrões reorganizando a cidade em setores altamente segregadores dos tipos de usos, o famoso zoning. Embora diversas críticas a este modelo de urbanismo sejam tecidas desde Jane Jacobs (1961), a grande maioria das leis brasileiras que organizam o uso do solo, inclusive a de Campinas, está fundamentada nesta matriz. De lá pra cá, muitas mudanças ocorreram na dinâmica das cidades. Vale destacar as mudanças de reestruturação do setor produtivo a partir dos anos 1980, que diluiu grandes indústrias em uma cadeia produtiva pulverizada de produção e serviços no território; o aparecimento de novas centralidades, com diversas tipologias, formas de concentração e áreas de influência; e o aprimoramento das tecnologias e da legislação específica de controle ambiental de poluentes.
É neste contexto que se propôs novos parâmetros pautados por uma cidade com mais convívio de usos. A mescla de usos é definida em razão dos distintos níveis de impactos urbano-ambiental produzido pelas atividades urbanas. Inspirado na exitosa experiência de Santo André (lei 8.696/04 – plano diretor e lei 8836/06 – Luops), foram parametrizados os níveis em razão da emissão sonora, de acordo com o estabelecido pela NBR 10151/00, e dos impactos no tráfego, conforme já estabelecem as leis específicas de polos geradores de tráfego. As interferências e interações entre os diversos usos urbanos se organizam em cinco Níveis de Impacto – NI. Conforme ilustra o quadro a seguir, são definidos os níveis permitidos em cada zona e em cada tipo de via dentro destas zonas. Desta forma, é o empreendimento que deve se enquadrar às normas dentro das zonas, mitigando a emissão sonora, por exemplo, com tratamentos acústicos, para se adequar ao permitido, dispensando a lista incerta e infindável de atividades que costuma acompanhar tais regramentos. Diferentemente da experiência andreense, julgou-se desnecessário inserir nos critérios de impacto os fatores de poluição atmosférica, hídrica, geração de resíduos sólidos e vibração, visto que estes estão disciplinados em legislação específica e são analisados pela Secretaria do Verde e Meio Ambiente de Campinas.
Aplicação dos instrumentos urbanísticos para promoção de políticas de interesse público
É recomendável que a aplicação dos instrumentos urbanísticos, sobretudo aqueles previstos no Estatuto da Cidade, esteja definida nos Planos Diretores. Como o trabalho logrou a oportunidade de subsidiar a revisão do Plano Diretor, a Luos e todo arcabouço legal pertinente ao mesmo tempo, os parâmetros para aplicação de instrumentos como a outorga onerosa, Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios – PEUC e Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV, por exemplo, foram definidos com precisão, ancorados nos parâmetros urbanísticos definidos para as zonas. A oportunidade de estudar, simultaneamente, questões afeitas à formulação de um plano diretor e à Luos, oferece e exige maior fundamentação urbanística, ao problematizar as múltiplas escalas do planejamento urbano e a integração entre elas para constituição de uma noção de totalidade.
Foram adotados alguns conceitos já praticados no campo da política urbana e que, no entanto, ainda não eram aplicados em Campinas, como a noção de subutilização e de solo criado, estabelecidos a partir de Coeficiente de Aproveitamento – CA mínimo, básico e máximo. Foi proposto o CA básico igual a 1 para toda a cidade, reiterando conceito já presente na Lei Orgânica do município, mas nunca regulamentado. Foi criada uma fórmula de cálculo para venda dos índices, com incentivos e descontos para tipologias de uso misto vertical, para indústrias ou serviços de alta tecnologia em ZC4, para utilização do índice de fruição pública, para a cota de solidariedade de HIS e em lugares onde se pretende urbanizar ou transformar a curto e médio prazos. A exemplo, visando incentivar a adoção da fruição pública, os imóveis com tipologia de habitação multifamiliar horizontal e vertical (HMH e HMV) poderão obter desconto progressivo na outorga onerosa, proporcionalmente à área do lote destinada à fruição pública, com a seguinte progressão: 10% de EFP equivalem a 10% de desconto na outorga onerosa até o limite de 30%.
Para incentivar a produção de habitação de interesse social e mitigar o déficit habitacional de Campinas que gira entre 35 e 70 mil unidades (6), foram adotados os seguintes instrumentos: Zeis, Cota de Solidariedade e Empreendimentos de Habitação de Interesse Social – EHIS na cidade toda. A partir do Plano Municipal de Habitação 2011, foram demarcadas as Zeis de regularização e as de vazios urbanos, ampliando-se estas demarcações para a área central, e para os distritos Barão Geraldo e Sousas, visando ampliar as reservas fundiárias e a inclusão social em áreas providas de infraestrutura e mais valorizadas. Campinas já contava com legislação permitindo HIS na cidade toda (Lei Complementar 70/2014). Esta medida é desejável, desde que o poder público municipal controle a provisão habitacional de interesse social, mediante comprovação de renda do comprador ou mutuário para que esta produção chegue à demanda e atinja, portanto, seu objetivo. O que vinha ocorrendo era o desvio desta finalidade por falta de gestão do processo pela prefeitura.
A cota de Solidariedade, instrumento de inspiração francesa instituído recentemente pelo Plano Diretor de São Paulo (Lei 16.050/2014) é aplicada de modo distinto do caso paulistano, a partir de uma estratégia de proporcionalidade, visando evitar a burla e a consequente ineficácia do instrumento. Os empreendimentos habitacionais, mistos ou não residenciais com área construída superior a dez mil m² ficam obrigados a produzir e comercializar o equivalente a 5% da área construída em unidades de Habitação de Interesse Social, faixas 1 e 2. A Secretaria de Habitação deverá ser responsável para que as unidades cheguem à demanda. O empreendedor poderá substituir as moradias por doação ao Poder Público Municipal de recursos, ou de equipamentos sociais, lote ou fração de lotes em valor equivalente às unidades devidas, ou produzir e comercializar HIS nas mesmas condições mas em outro lote, indicado pelo Poder Público Municipal. Como incentivo, o empreendimento poderá beneficiar-se de acréscimo de 5% na área construída, limitado ao CA máximo, quando se utilizar da outorga onerosa do direito de construir. Outro incentivo para a produção de HIS é que todas (Zeis, Cota, EHIS) estão isentas de pagamento de outorga onerosa.
Para aplicação do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios – PEUC, o solo urbano subutilizado foi definido pelos CA mínimos em cada zona, considerando as tipologias e o tamanho dos lotes e para todas as áreas demarcadas como ZEIS de vazios urbanos.
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) será aplicado para os empreendimentos com área igual ou superior a 5.000 m², ou 2.500 m² em áreas de Zeppacs – Paisagens Culturais, ou 750 m² na Macrozona Ambiental. Também para Zeis nos locais onde o empreendimento supera a faixa de densidade habitacional estabelecida pela zona; para HIS e Habitação de Mercado Popular – HMP em área não delimitada como Zeis; condomínio de unidades autônomas, loteamento ou desmembramento em terreno com área maior que 50 hectares; entre outras situações mais convencionais, como terminais de transportes, estações de telefonia, cemitérios, penitenciárias, etc.
A proposta orienta a criação do Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano – FMDU, destinando obrigatoriamente 20% dos recursos à implantação de sistemas de transporte coletivo público, cicloviário e de circulação de pedestres e outros 20% para regularização e constituição de reserva fundiária e obras destinados à execução de programas e projetos habitacionais de interesse social.
Campinas possuiria, portanto, todos os parâmetros para tornar autoaplicáveis estes instrumentos e para induzir as diversas políticas e estratégias urbanas desenhadas tanto no que se propôs no âmbito do Plano Diretor, quanto na Luos.
Contribuições para a valorização das dimensões públicas da metrópole contemporânea
As propostas apresentadas para a municipalidade de Campinas não configuram simples revisão da legislação de uso e ocupação do solo. Trata-se do refundamento das matrizes urbanístico-ambientais para redesenhar a cidade ou, ao menos, grande parte dela. A partir de novo arcabouço conceitual, que prima pela clareza e objetividade, articulado ao conjunto de princípios, diretrizes, instrumentos urbanístico-ambientais e novos parâmetros de uso e ocupação, busca-se a produção de um espaço urbano que valoriza a esfera da vida pública, bem como a construção de um ambiente urbano mais resiliente às condicionantes biofísicoclimáticas.
A adoção mais contundente e autoaplicativa de um novo zoneamento, de instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, das Zonas Especiais de Interesse Social, de Espaços Livres e da Paisagem Cultural vão na direção da diminuição de desigualdades socioespaciais e da promoção da sociobiodiversidade. Neste sentido, vale destacar as principais provocações, avanços e inovações logradas a partir deste trabalho:
- A concatenação do zoneamento com as macrozonas definidas no âmbito do Plano Diretor, a exemplo das Zonas de Atividades Econômicas – Zae dentro da Macrozona Macrometropolitana. O objetivo foi reservar estas áreas para usos não residenciais estratégicos, como indústrias, informação, tecnologia, etc. reforçando o posicionamento de Campinas como centralidade na macrometrópole paulista e não como cidade dormitório de São Paulo (o que ocorre quando o zoneamento permite que condomínios residenciais se aloquem às margens das rodovias ou de equipamentos regionais);
- O reconhecimento do território de valor cultural, natural e dos patrimônios por meio da abordagem recente e integradora das paisagens culturais, orientando a tomada de decisão sobre como transformar e preservar lugares significativos e sensíveis e ao mesmo tempo, definindo parâmetros especiais de impacto de vizinhança;
- Adensamento orientado pela rede estrutural de mobilidade, articulando, ao mesmo tempo, centralidades, densidades construtivas (preocupação com desenho urbano) e densidades habitacionais (preocupação com infraestrutura e melhoria dos custos do sistema);
- Por uma melhor relação público-privado (edifício-rua, fruição pública, ausência de recuos frontais, permeabilidade visual da testada, arborização, tipologia horizontal com 3 pavimentos, etc.);
- Definição de parâmetros urbanístico-ambientais (índices de arborização, de permeabilidade, etc.) específicos para cada zona, tipologia e tamanho de lote, inclusive para as Zeel – Espaços Livres;
- Rompimento com a matriz modernista-funcionalista de zoning segregador, através da organização de usos a partir do controle de impactos urbano-ambientais gerados pelas atividades urbanas;
- Cota de solidariedade proporcional, definida em porcentagens, evitando a burla da regra ou desvios de finalidade;
- Permissão de empreendimentos de HIS na cidade toda, sem criar um padrão edilício especifico desarticulado aos parâmetros definidos pelo zoneamento e condicionada ao EIV quando fora das ZEIS e ao controle de demanda pelo poder público, ou seja, as unidades devem ser destinadas à lista do déficit habitacional operada no âmbito da política habitacional municipal.
Se o novo comando do Executivo Municipal e a Câmara dos Vereadores não encamparem parte das propostas, ao menos o debate público foi aberto, na cidade e na academia. Uma contribuição para o estabelecimento de novas urbanidades, sem saudosismos, mas ciente das heranças e das possibilidades de um futuro onde atividades econômicas não podem pressupor a destruição ambiental, cultural e da vida pública. Ao contrário, devem com elas gerar novas oportunidades, mais equidade, mais qualidade de vida e novas formas de apropriação do espaço urbano contemporâneo.
notas
1
VILLAÇA, Flavio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In DÉAK, Csaba; SCHIFFER, Sueli (Orgs). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp, 1999.
2
MONTANDON, Daniel Todtmann; SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos(orgs.). Os Planos Diretores Municipais pós-Estatuto das Cidades: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2011.
3
Equipe Técnica da FUPAM FAUUSP: Coordenação Arq. Dr. Luis Antonio Jorge; Urbanismo: Arq. Dr. Eugenio Fernandes Queiroga, Arq. Dr. Eduardo A. Cusce Nobre, Arq. Dra. Vanessa G. Bello Figueiredo, Arq. José Armenio de Brito Cruz, Arq. Renata Semin, Geog. Ms. José Donizete Cazzolato , Arq. Ms. Marlon Longo, Arq. Ingrid Schmidt Ori, Arq. Julia Gouvêa, Arq. Fábio Landucci Bonugli; Jurídico: Adv. e Arq. Beatriz Lichtenstein, Adv. Fernando Guilherme Bruno Filho, Adv. Helio Wicher Neto. Grupo Gestor PMC – SEPLAN: Secretário de Planejamento Fernando Vaz Pupo, Assessor do Gabinete Adv. André Santos Paula, Diretora Arq.Ms. Carolina Baracat do N. Lazinho; Coordenação Técnica Arq. Dra. Maria Conceição Silvério Pires; Comissão Técnica – SEPLAN: Arq. Anita Mendes Aleixo Saran, Eng. Civil Rafaella Ribeiro Violato, Estatística Raquel Eliza Diniz Cosimato, Tecnólogo Luis Fernando Leme Pettorino
4
Outro artigo relacionado a esta publicação detalha os conceitos, objetivos, as diretrizes, parâmetros e métodos desenvolvidos no âmbito deste trabalho. Ver JORGE, Luís Antônio; QUEIROGA, Eugênio Fernandes; FIGUEIREDO, Vanessa Bello. A legislação urbanística em debate. Parte 1: bases conceituais e estratégias metodológicas para subsidiar a revisão do Plano Diretor de Campinas SP. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 215.02, Vitruvius, abr. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.215/6959>.
5
FIGUEIREDO, Vanessa. O patrimônio e as paisagens: novos conceitos para velhas concepções? Paisagem & Ambiente, n. 32, São Paulo, FAU USP, 2013, p. 83-118.
6
CAMPINAS (Prefeitura); SEHAB (Secretaria Municipal de Habitação). Plano Municipal de Habitação. Campinas, SEHAB, 2011.
sobre os autores
Luís Antônio Jorge é arquiteto e Urbanista pela PUC-Campinas (1985), com mestrado (1993), doutorado (1999) e livre-docência (2016) pela FAU USP, onde é Professor Associado do Depto de Projeto, orientador da Área “Projeto, Espaço e Cultura” do Programa de Pós-Graduação e coordenador da Comissão de Cooperação Internacional. Autor do livro “O Desenho da Janela” (1995), recebeu 7 prêmios do IAB por ensaios, livro e projetos de arquitetura e urbanismo.
Eugenio Fernandes Queiroga é (1986), mestre (1994), doutor (2002) e livre-docente (2012) em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP. Professor Associado da FAUUSP, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP. Um dos organizadores do livro Os sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea no Brasil, Edusp, 2018.
Vanessa Bello Figueiredo é arquiteta e urbanista, doutora (2014) e mestre (2005) em planejamento urbano e regional pela FAU USP. Docente na FAU PUC-Campinas. Foi gestora pública e Subprefeita de Paranapiacaba e Mananciais de Santo André (2001-2008). É conselheira do CAU SP (2018/20), membro do Icomos e TICCIH (Preservação do Patrimônio Industrial). Autora do livro Pranapiacaba, um patrimônio para a humanidade, 2008.