Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

my city ISSN 1982-9922

abstracts

how to quote

BARRETO, Frederico Flósculo Pinheiro. Uma análise de “conjuntura urbana” de Brasília em 2004. Minha Cidade, São Paulo, ano 04, n. 043.02, Vitruvius, fev. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/04.043/2023>.



Brasília foi um sonho para muitos brasileiros, e para os arquitetos. Até hoje quando escrevem sobre a capital do país, os historiadores, os jornalistas, os críticos, os visitantes, os forasteiros, sentem-se explorando um terreno repleto de expectativas, de elevadas intenções e pretensões, cheio de um tipo de energia que ora intimida, vibra com o Poder dos Donos, ora comove, mostra que o Brasil é perfeitamente capaz de fabricar outro Brasil, com aquele tipo de soberania que – bem que desejamos – é o da inteligência.

Quando se vê a realidade em que Brasília se transformou, também nos impressionamos. A totalidade dos historiadores da arquitetura e do urbanismo do Brasil se fixa numa Brasília quase mitológica, aquela que ficou na memória, fixada entre os meados das décadas de 1950 e 1960. As páginas dos historiadores sobre a cidade que aconteceu “depois” de Oscar Niemeyer e de Lúcio Costa (cuja influência através de seus mais carnais seguidores é bem viva na cidade, ainda) ficam em branco, sem exceção.

Essa fixação no passado, a supervalorização do “Big-Bang” brasiliense, de sua primeira infância, gera um sem-número de imprevistos desequilíbrios e distorções na gestão da cidade. Um dos desequilíbrios mais notáveis está na forma pela qual influentes arquitetos e organizações públicas e privadas têm “defendido” Brasília: a preservação da forma do passado, de sua incolumidade física, domina totalmente as concepções de sua preservação, o que faz com que, paradoxalmente, tenha sido surpreendentemente fácil que um modo de gestão destrutivo da cidade, de seu patrimônio intelectual tenha se imposto, ao longo do recente período de redemocratização da Capital e do País. Não se vê, nos “defensores de ofício” da cidade, uma demonstrada capacidade de aprofundar a discussão (e a necessária re-elaboração) de seu extraordinário modelo de qualidade do espaço e da vida urbana iniciada – de um modo peculiaríssimo, reconheça-se – por Lúcio Costa, desde o Concurso do Plano Piloto de Brasília, em 1957.

Uma explícita prova dessa incapacidade está no modo como até hoje são desenhadas as expansões urbanas dos bairros de Brasília (ainda chamados erroneamente de “cidades-satélites”), ou como seu patrimônio urbanístico tem sido defendido. Nenhuma dessas expansões urbanas tem um traço sequer das qualidades ambientais urbanas da cidade, naquilo que seu Plano Piloto tem de melhor, como cidade-jardim, ou como cidade (algo frustradamente) cosmopolita. Ao contrário, há décadas se denuncia a segregação urbana, a disparidade na qualidade do desenho e dos equipamentos urbanos existentes no polígono de preservação do Plano Piloto e nos bairros, separados fisicamente desse “centro” por distâncias que variam de 15 a 40 quilômetros. E onde moram cerca de 4/5 de toda a população do Distrito Federal.

O próprio Plano Piloto é objeto de estudo para a elaboração de seu plano de uso do solo há uma década e meia, travado por forças contraditórias, que não debatem publicamente: de defensores intransigentes a aqueles que querem transformar o Plano Piloto em qualquer outra coisa, menos conservar suas características atuais. Enquanto isso, “pedaços” de normas, autorizações muito específicas e graves exceções se acumulam, realmente alterando a cidade.

Até aí nenhuma novidade.

O que ainda é muito pouco conhecido e discutido quanto ao “projeto Brasília” passa-se a partir do período recente de redemocratização: nenhuma cidade brasileira foi tão fortemente impactada em seu ordenamento urbano quanto Brasília, com o fim da ditadura militar (1964-1985). Trata-se de algo que deve ser exposto e discutido com tanta atenção e paixão pelos historiadores do urbanismo quanto aquela sincera paixão estudiosa que é dedicada ao momento histórico da criação e idealização da mais notável cidade modernista.

Há mais de uma “versão” em andamento, acerca do impacto da democratização no ordenamento urbano do Distrito Federal, e acerca do que seriam as forças políticas (e ideológicas, num sentido bastante precário) atrás de cada uma delas. Tentarei caracterizar aqui algumas delas, como forças vivas, que têm suas visões políticas acerca do ordenamento de Brasília, ainda em definição, ao longo desses 19 anos de redemocratização:

a) uma primeira consiste na luta pela preservação de Brasília. Seu problema tem sido definir o que é “preservação” e, pasmem, o que é “Brasília”. Sua versão mais radical defende a preservação do Plano Piloto tal como estava em 1988, quando do dito “tombamento” da cidade como Patrimônio Cultural da Humanidade, e afirma que Brasília é esse Plano Piloto projetado por Lúcio Costa. Os demais bairros não teriam as qualidades urbanísticas dessa área especial, e o fato de o conjunto urbano do Distrito Federal não ser visto assim, como um TODO, cria situações paradoxais para essa concepção: não defende o investimento em equipamentos urbanos de importância “capital” nesses bairros, mas defende a concentração dos símbolos de um fabricado cosmopolitismo no Plano Piloto; não se importa com a favelização do Distrito Federal, mas não quer que o Plano Piloto seja “invadido por forasteiros”; não aceita que a população participe da gestão urbana mas sonha que a defesa do Plano Piloto se torne uma bandeira popular, e por aí vai. Claro, há modalidades menos simplistas e mais inteligentes que essa, embora a participação popular e o debate crítico acerca do planejamento da cidade sejam recusados pelos mais influentes e elitistas paladinos dessa posição – o que tem criado inesperadas condições, favoráveis, para a gestão urbana autoritária e populista pelo Governo do Distrito Federal, na atávica aliança entre autoritários e oportunistas;

b) uma segunda consiste no populismo messiânico praticado pelo governador Joaquim Roriz, um político de antanho que, por artes de estranho destino, surgiu subitamente na vida política do Distrito Federal trazido pelas mãos de ninguém menos que José Sarney, quando foi presidente de nossa República (1985-1990). Vizinhos de fazendas em Luziânia (GO), Sarney decidiu que seu colega era o nome certo para substituir José Aparecido de Oliveira (indicado por Tancredo Neves em 1985), em 1988, quando este atingiu o máximo desgaste político com seu programa de expulsão de migrantes – e outras barbaridades e tolices. (Ainda assim, Aparecido foi o grande responsável pelo ato isoladamente mais importante para a preservação do plano urbanístico de Lúcio Costa, a declaração de Brasília como Patrimônio da Humanidade, pela UNESCO). Roriz foi (e ainda é) governador do Distrito Federal nos períodos de 1988-1990 (indicado), 1990-1994 (eleito), 1998-2002 (eleito), e 2002-2006 (eleito). A Era Roriz foi de atração desordenada de migrantes, visando à criação – muito bem-sucedida, reconheça-se – de um grande curral eleitoral, baseado em uma crescente população carente, intestinamente dependente de suas políticas assistencialistas. Ao mesmo tempo em que dezenas de milhares de lotes urbanos eram simplesmente doados à sua voraz clientela, o governo fechava os olhos às ações dos grileiros de áreas públicas e especuladores em áreas privadas, que construíram centenas de loteamentos de portes os mais variados, e alguns enormes bairros totalmente improvisados, sem a menor sombra de planejamento ou de policiamento público, à volta do Plano Piloto, literalmente à vista do Poder Público. O capital político de Roriz foi erguido rápida e facilmente, a partir de dilapidação da vultosa herança de terras públicas do Distrito Federal: dilapidação territorial e ambiental, criando uma situação de descontrole ainda não avaliada em suas conseqüências, e em pleno desenrolar. O custo de seu assistencialismo é pago por todo o Brasil, que se vê obrigado a manter, seja como for, ao que parece, o Distrito Federal, onde está a sua Capital;

c) uma terceira versão, na verdade, é uma pluralidade de versões acerca do futuro da cidade entregue à sua própria cidadania. Nem Lúcio nem Roriz, mas “as gentes” de Brasília tomando posse da cidade, e governando-a. (Vale o registro: tivemos aqui um valoroso arquiteto encarnando essa alternativa, Orlando Cariello, de decisiva candidatura golpeada em 1990 pelo PT local/nacional, e depois candidato a governador pelo PSTU em 1998 e em 2002). Essa utopia levou o professor Cristovam Buarque, ao governo do DF (1994-1998). A preservação escrupulosa dos recursos públicos acabou por tirar Cristovam e a esquerda – naquela época o PT era de esquerda – do poder. Apesar disso, seu governo foi um laboratório um tanto desengonçado de novas tentativas de gestão e ordenamento territorial (em especial de um pessimamente encaminhado “orçamento participativo”, mas de um bem-sucedido “bolsa-escola”). Apelos a uma civilizada cidadania são impiedosamente ignorados na atual conjuntura, e isso tem criado um clima de barbárie que perpassa a gestão da cidade, desqualificando Brasília. Competir com o pródigo assistencialismo da Era Roriz não é fácil, convenhamos: Brasília vai-se tornando o centro de lances populistas cada vez mais audaciosos, e a relação entre custos ambientais e os projetos de poder dos grupos locais deve atingir nos próximos anos – talvez ainda na atual gestão Rorizista –, um ponto clímax, acima da capacidade de custeio federal de toda essa festa de dilapidação do território e dos serviços públicos. A “insolvência” desse modelo de governo, que tem as terras públicas como moeda de troca, e mantém as verbas da União como refém, é sobretudo uma questão de oportunidade política.

Esse episódio populista da Era Roriz, diga-se de passagem, é um dos mais longos na história recente da nossa República, no âmbito de uma unidade federativa. E isso somente acontece porque há uma pletora de recursos no Distrito Federal, com que nenhuma outra cidade brasileira conta: terras públicas em dezenas de milhares de hectares ainda por “torrar”, e um orçamento proporcionalmente fabuloso (4,5 bilhões de Reais em 2003) para obras fabulosas, doado em parte e a fundo perdido pelo governo federal, e que não tem uma consistente correspondência com a produção LOCAL industrial, de comércio e serviços, e agrícola. Nada há mais distante de um modelo de sustentabilidade que a gestão urbana do Distrito Federal, e assim será por um longo tempo. A questão é: até quando a União tolerará essa troça.

Neste momento o governador Roriz fala em construir um anedótico “trem-bala” ligando Goiânia a Brasília. Seu estilo é o das grandes obras, grandes transformações (frase da própria propaganda oficial). Governar Brasília é produzir novidades, seja o que for, custe o que custar: o governo é o espetáculo de uma espalhafatosa reinvenção de Brasília, ao qual até mesmo aqueles “defensores da cidade” menos envolvidos com os esquemas de Roriz têm aderido, por oportunismo, digamos, biográfico. E o volume de adesões realmente impressiona. De um certo modo, até a análise histórica da questão urbana perde sua elegância e assepsia costumeiras, suas referências eruditas e respeitáveis, pois não é possível compreender a atual conjuntura de Brasília sem “personalizar” essa ocorrência única, da personalidade do populista no centro da trama, da vida da cidade.

Não faltam disparates nessa conjuntura, como o caríssimo, desnecessário e inoperante Metrô de Brasília (queimando recursos públicos há mais de uma década); ou a regularização “em massa” de dezenas de condomínios irregulares, alguns enormes, a maioria em áreas ambientalmente vulneráveis; ou as doações “em massa” de lotes com critérios absurdos (como para as “igrejas”, ou uma rede fortemente conectada de pastores & rebanhos & currais eleitorais, etc, que vêm recebendo, na última década e meia, centenas de valiosos lotes em áreas urbanas de todo o DF, graciosamente, afora os crescentes pleitos por verbas públicas desses “homens de Deus”, como se autodenominam em nossa espantosa teocracia distrital). Também há a cessão ou venda subsidiada massiva de lotes para “empresários”, lotes que não geram os empregos prometidos, e que esperam mais e mais investimentos públicos a fundo perdido. Também há os perigosos episódios de incitação à violência física contra os adversários políticos, pelo próprio governador, a patética luta entre “azuis” (Rorizistas) e “vermelhos” (Petistas e o que o valha), que tanto envergonha alguns brasilienses. Et coetera.

Ainda assim, creiam, é quase impossível atingir critica e contundentemente a Roriz e a seu populismo messiânico. O clientelismo teve bastante tempo para as metástases, e atingiu setores institucionais fundamentais ao eventual restabelecimento do Estado de Direito na ordem urbana; há o comprometimento de praticamente todos os grupos de interesse socialmente influentes com as irregularidades na ocupação de terras, cargos e receitas públicos – grupos que deveriam ter independência face ao Governo, numa República. (Na Capital da República, um modelo de gestão urbana e governamental nada republicano). É como jogar “Monopólio”: todos os beneficiados, digamos, “precisam” de lotes, cargos, receitas, e em Brasília essas coisas podem ser literalmente “fabricadas”, a um custo que ninguém está a avaliar em termos éticos ou econômicos. É um jogo político com regras não-escritas, onde não há “forasteiros”.

Em termos legais, sequer o Ministério Público consegue fazer a comprometida máquina judicial mover-se na direção do grande populista. Além disso, o homem tem o controle de todos os jornais da cidade: se não tem, controla indiretamente (Jornal de Brasília, Jornal da Comunidade, Tribuna do Brasil, entre outros), se não pode comprar, apóia golpes de grupos de jornalistas que o apóiam (como ocorreu no Correio Braziliense, em 2003, com a fantástica tomada da redação por velhas vivandeiras do tempo do Castello, expulsando o grupo de jornalistas que criticou o Rorizismo por uns semestres, como Ricardo Noblat e Tetê Catalão). E os arquitetos e suas entidades ? Qual é sua postura com relação a Roriz ? Isso merece um outro artigo.

Críticas contra Roriz, em Brasília ? Somente em Vitruvius.com, ou no New York Times (vejam só: saiu um raro artigo acerca da devastadora aliança entre populismo e grilagem em Brasília, no dia 18 de janeiro último, intitulado “Brazilian Slums Seen as Pawns in Political Games”, vale a pena dar uma olhada; o jornal norte-americano expõe fatos que alguns dos brasilienses sabem, mas não por seus jornais locais).

Como recomendação final, para o debate e para o conhecimento de alguns aspectos da evolução urbana recente do conjunto de Brasília, recomendo fortemente o livro Brasília: Controvérsias Ambientais, coordenado pelo professor Aldo Paviani e pelo colega Luiz Alberto de Campos Gouvêa, o Jacaré (editado pela Editora Universidade de Brasília, 2003). Em especial, sobre o impacto ambiental do populismo distrital, deve-se ler o capítulo escrito pelo professor Rafael Sanzio Araújo dos Anjos (“Estruturas Básicas da Dinâmica Territorial no DF”), entre outros.

sobre o autor

Frederico Flósculo Pinheiro Barreto é professor da FAUUnB, área de projeto.

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided