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As críticas aos grafites pintados nos Arcos do Bixiga foram contaminadas por argumentos políticos, simplificando a discussão ao não relevar que a pintura da estrutura ocorreu na administração anterior e que trata-se de um muro de arrimo, não um monumento.
JAYO, Martin; FONTAN KÖHLER, André. A batalha dos Arcos do Bixiga. Mais arte e mais cidade, mas menos arte na cidade! Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 175.07, Vitruvius, fev. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.175/5439>.
A gestão de Fernando Haddad à frente da Prefeitura de São Paulo, iniciada em 2013, tem sido marcada por polêmicas diversas, que vão desde mudanças radicais no tratamento de velhos problemas sociais – vide a questão da Cracolândia e o Programa Braços Abertos – até políticas públicas impensáveis no município até pouco tempo atrás, como por exemplo a implantação de centenas de quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, em detrimento do automóvel de passeio.
A mais recente dessas polêmicas, surgida no início de fevereiro de 2015, refere-se ao tratamento e utilização de um patrimônio cultural paulistano – os Arcos do Bixiga.
Trata-se de um muro de contenção, construído provavelmente no início do século 20, no desnível entre as ruas da Assembleia e Jandaia, no bairro da Bela Vista. Por décadas, ele ficou “escondido”, até que o arrasamento de uma série de casas e sobrados, em 1987, trouxe-o de volta à luz. Os arcos seriam representativos de técnicas construtivas tradicionais, trazidas por imigrantes calabreses; isso garantiu seu status de patrimônio cultural paulistano. A estrutura simples, de contenção de desnível entre ruas, foi elevada a monumento municipal em 2002, através do tombamento pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).
Com apoio da prefeitura municipal e autorização do Conpresp, no início de fevereiro, um grupo de artistas urbanos utilizou os vãos dos arcos como painéis para a execução de grafites. A intervenção legou à cidade um conjunto de pinturas – temporárias, como é a natureza do grafite – emolduradas pelos históricos tijolos.
A iniciativa foi duramente recebida, tanto por tradicionais críticos da gestão Haddad (muitos deles, diga-se de passagem, normalmente pouco afeitos a preocupações com o patrimônio) quanto por um segmento mais conservador dentre os defensores da preservação patrimonial. Estes grupos não tardaram a qualificar a intervenção nos arcos como “vandalismo”, “desrespeito”, “absurdo”, “profanação” ou “ataque à memória da cidade”. A base dos argumentos gira em torno da necessidade, por eles defendida, de se preservar os arcos “em sua originalidade”.
Junto com isso, também foi levantada a questão de uma das pinturas supostamente retratar o ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez: acusou-se a gestão petista até mesmo de interferir na liberdade de criação do artista, a fim de fazer uso político-ideológico da intervenção nos arcos.
A nosso ver, com o perdão do trocadilho, as críticas carregaram demais nas cores. De forma geral, os argumentos foram contaminados por discussões de ordem política, e simplificaram a discussão. Eles desconsideram aspectos importantes, relativos tanto à estrutura arquitetônica em si quanto à intervenção artística nela promovida, que são listados a seguir.
Primeiro, parece haver certo anacronismo no debate. Na verdade, os arcos não foram pintados pela primeira vez agora: em 2011, na gestão Gilberto Kassab, eles já haviam recebido uma pintura que não poupou sequer seus tijolos. Nessa intervenção, feita com a intenção de dar ao conjunto uma aparência mais “limpa”, os vãos (agora grafitados) receberam tinta bege, e os tijolos foram recobertos – e, por conseguinte, impermeabilizados – por uma camada de tinta na cor salmão. Mas as críticas na época foram muito tímidas, e os autoproclamados defensores do patrimônio cultural paulistano responderam com o mais absoluto silêncio. Para eles, a aparente assepsia conseguida com a pintura integral nas cores salmão-bege era suficiente para considerar o monumento satisfatoriamente preservado.
Segundo, os arcos em questão são um muro de arrimo. Não foram construídos com intenção de ser monumento nem obra de arte, mas apenas para resolver o desnível entre duas ruas. Seu tombamento e sua fruição estética devem-se à recente valorização da arquitetura vernacular como patrimônio cultural. A intervenção artística, realizada por grafiteiros com apoio da prefeitura, não “desrespeita” os significados nem a estrutura física do monumento. Pelo contrário, ela trata os Arcos do Bixiga como aquilo que eles são em sua originalidade – um muro –, e permite que sejam apropriados pela população paulistana como galeria ao ar livre, utilização inclusive comum em várias cidades ao redor do mundo. Há, aqui, outro ponto positivo que restitui “originalidade” à estrutura: a retirada de um mal ajambrado gradil que a separava do restante da cidade.
Conjuga-se, dessa forma, a preservação patrimonial de uma peça de arquitetura vernacular com uma nova utilização contemporânea, que não prejudica sua leitura nem sua estrutura. Por seu próprio conceito, o grafite é uma intervenção efêmera: a pintura é feita para não durar, enquanto a estrutura que a suporta perdura, preservada.
Terceiro, chama-nos a atenção a aparente diferença no tratamento dado aos Arcos do Bixiga e à Pinacoteca do Estado, no que concerne às críticas feitas à presença de grafite em monumentos tombados.
Na Pinacoteca, salvaguardada pelo Condephaat (tombamento estadual), já há alguns anos as janelas que dão para o Jardim da Luz abrigam painéis que exibem, justamente, grafites. Seria fácil argumentar que isto atrapalha a leitura do monumento, dado que os vãos originais encontram-se entaipados. Outra crítica fácil seria que as pinturas e grafites são dissonantes do edifício, bem como da pintura academicista e modernista que ele abriga, salvo em exposições temporárias. Não nos parece que o entaipamento dos vãos, preenchidos com painéis de grafite, tenha gerado grande comoção e engajamento por parte dos defensores do patrimônio cultural. Será que a arquitetura vernacular e utilitária dos Arcos do Bixiga desperta mais interesse, para efeitos de preservação, do que o prédio projetado por Ramos de Azevedo?
Em 1947, Aparício Torelly (1885-1971), vulgo Barão de Itararé, elegeu-se vereador do Rio de Janeiro utilizando, em sua campanha, um lema memorável: “Mais água e mais leite, mas menos água no leite!”. Passados quase 70 anos, os propalados defensores de São Paulo e de seu patrimônio cultural parecem ter adotado princípio similar: “Mais arte e mais cidade, mas menos arte na cidade!”.
sobre os autores
Martin Jayo é professor da EACH-USP, atuando nos cursos de bacharelado e mestrado em Gestão de Políticas Públicas. É bacharel em Economia pela FEA-USP, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e doutor em Administração de Empresas pela FGV-EAESP. Participa do GETIP – Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovação na Gestão Pública, e edita o blogue Quando a cidade era mais gentil.
André Fontan Köhler é professor da EACH/USP, atuando no Curso de Bacharelado em Gestão de Políticas Públicas. É bacharel em Administração e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. É doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP, e participa do GETIP – Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovação na Gestão Pública.