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my city ISSN 1982-9922

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Um ano após a publicação de artigo sobre a Associação Parque Minhocão, o autor faz novo diagnóstico dessa iniciativa pioneira em São Paulo, um esforço em identificar dificuldades e contingências deste laboratório de estudos urbanos.

how to quote

LEVY, Wilson. Parque Minhocão. Cidade e democracia: novas perspectivas. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 175.04, Vitruvius, fev. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.175/5431>.


Elevado Costa e Silva, o Minhocão, área central de São Paulo
Foto Felipe SS Rodrigues


Há cerca de um ano, publicávamos o texto “Cidade e democracia” no prestigioso portal Vitruvius (1). Pretendíamos, na ocasião, expor os eixos orientadores da atuação da Associação Parque Minhocão, todos enfeixados na convicção de que o destino do Elevado Presidente Arthur da Costa e Silva deveria ser decidido segundo um processo decisório do tipo democrático-participativo, em contraste com o modelo autoritário que determinou sua construção e uso primitivo.

O diagnóstico fornecido pelo artigo indicava o predomínio de um acento autoritário histórico na produção do espaço urbano nas grandes metrópoles brasileiras. Nesses termos, o processo de planejamento e a elaboração do aparato legal-regulatório das cidades pertenceriam integralmente à Administração Pública, a quem incumbiria, com exclusividade, interferir a qualquer tempo no tecido urbano, conforme sua conveniência e oportunidade.

Tudo fundamentado no argumento de que incumbe ao Estado a defesa do interesse público. A tese é igualmente sedutora e perigosa: sedutora porque remonta à teoria do contrato social, sob a qual edificamos o projeto republicano; perigosa porque a fragilidade metodológica da produção intelectual na área do Direito permitiu uma perniciosa confusão entre interesse público e interesse da Administração Pública.

Acoplado a esse ponto, subjazia o argumento tecnocrático, que tem por premissa a assertiva de que o produto da técnica aplicada é autossuficiente para atender uma ampla variedade de demandas. Evidente que se trata de uma meia verdade. Afinal, não deixa de ser ingênuo querer subtrair do especialista o seu lugar. Da mesma forma, todavia, torná-lo insuscetível de controle social é confiar em demasia numa pretensa neutralidade do agente público.

Inacessível ao jejuno, as decisões tomadas sob esse signo ultrapassaram as fronteiras da ditadura civil-militar e adquiriram nova roupagem, obtendo sua legitimidade não mais da mera legalidade imposta, mas diretamente de um sistema do tipo democrático-representativo, sustentado através do sufrágio periódico.

Tudo isso ganha gravidade quando é localizada no processo de urbanização do Brasil. Além de ter se dado num ambiente normativo de laissez-faire, mais preocupado com aspectos fiscais do que com a adequada ordenação do solo urbano, como assinalam autores como Raquel Rolnik (2), conviveu com um processo de modernização conservadora que bloqueou as condições de florescimento de uma sociedade civil baseada nos pressupostos da cidadania e da democracia no plano de uma revolução da economia segundo parâmetros burgueses tal como operado em outras nações.

Elevado Costa e Silva, o Minhocão, área central de São Paulo
Foto Felipe SS Rodrigues

Oportuno recordar que Celso Furtado alertava que “o subdesenvolvimento não constitui uma etapa necessária do processo de formação das economias capitalistas modernas. É, em si, um processo particular, resultante da penetração de empresas capitalistas modernas em estruturas arcaicas” (3). Ou seja, o processo civilizatório favorecido pelas revoluções burguesas – ou, ao menos, idealizado por elas – não produziu efeitos no Brasil, apesar da adoção de um modelo econômico de inspiração capitalista.

Eis o cenário com o qual nos deparamos, e que culminou em três problemas centrais: a) o Minhocão é produto de uma forma autoritária de se intervir no espaço público; b) fragilidade dos mecanismos de controle e interferência da sociedade nas definições das prioridades do planejamento das cidades; c) insipiência do debate público, estrangulado desde a origem numa revolução burguesa que nunca aconteceu.

Os dois primeiros pontos, embora de difícil solução, suscitaram o desenvolvimento de boas alternativas, ou tiveram um encaminhamento satisfatório.

O tema do autoritarismo, por exemplo, pode ser enfrentado a partir da própria proposta do parque, que atribui a um equipamento carregado com profunda negatividade um novo sentido, que inverte esse pólo através da atribuição de uma finalidade coletiva, voltada ao lazer e a uma nova experiência de cidade. Tudo isso através de elementos obtidos na psicologia analítica de Carl G. Jung, conforme tivemos a oportunidade de apresentar em texto intitulado “O Parque Minhocão e a alma da cidade”, também publicado pelo Portal Vitruvius (4).

Quanto à falta de mecanismos de controle social do planejamento urbano, foi possibilitada no âmbito das consultas que culminaram no texto final do Plano Diretor Estratégico (PDE) do Município de São Paulo. A Associação Parque Minhocão participou ativamente das audiências públicas realizadas por ocasião dos debates sobre o PDE e teve a tese da desativação da via elevada acolhida pelo parágrafo único do art. 375, que contemplou as duas grandes propostas para o equipamento: demolição ou transformação em parque, a depender, em ambos os casos, de lei específica.

O terceiro ponto é um desafio pendente de tratamento. Merece, ademais, leitura cuidadosa. A primeira pergunta que pode ser feita é: quem tem legitimidade para se manifestar sobre o destino do Elevado Costa e Silva? Apenas os moradores do entorno? O que se entende por entorno?

Elevado Costa e Silva, o Minhocão, área central de São Paulo
Foto Felipe SS Rodrigues

Entendemos que um tema que afeta toda a cidade deve permitir a intervenção de todos os cidadãos paulistanos, ainda que os moradores do entorno - os principais afetados pelas decisões que forem tomadas a esse respeito - mereçam atenção diferenciada na etapa posterior da decisão: que elementos informarão o projeto do parque? Ou, que tipo de ações serão tomadas em caso de demolição?

Disso deriva uma nova questão: quem são os moradores do entorno do Minhocão? O que eles pensam? Qual o universo de valores que partilham?

Nenhum estudo sistemático foi feito até o momento. Em favor da tese do parque recai um abaixo-assinado que elaboramos e aplicamos durante cerca de 10 dias sobre o elevado, ocasião em que se consultou àqueles que estavam sobre a via como pedestres o que pensavam a respeito da ideia do parque e do fechamento da via.

Obtivemos cerca de 5500 assinaturas favoráveis ao fechamento e à criação do parque. 90% dos subscritores residiam em bairros lindeiros ao Minhocão: Consolação, República, Vila Buarque, Santa Cecília, Campos Elíseos, Higienópolis, Barra Funda e Perdizes.

A consulta lança luzes sobre o debate e evidencia que o senso comum estava errado quanto à opinião dos moradores. Ela não resolve o problema por completo, contudo. Ao mesmo tempo em que defendemos que os moradores sejam envolvidos no debate, sabemos que o déficit democrático predominante na sociedade brasileira é um fator que inibe um engajamento maior, o que sinaliza para um angustiante abismo entre a qualidade técnica do debate e as percepções coletivas da vida concreta.

Elevado Costa e Silva, o Minhocão, área central de São Paulo
Foto Felipe SS Rodrigues

É importante ter a consciência que este problema não será resolvido pela Associação Parque Minhocão. Tampouco pelos grupos que defendem a derrubada da via elevada. A perspectiva que se abre, no entanto, é a de um verdadeiro laboratório de práticas urbanas, que pode estimular até mesmo a formação de uma esfera pública crítica e capaz de refletir sobre seus problemas em comum.

Não é infundado afirmar que pela primeira vez em sua história a cidade de São Paulo está realizando um debate intenso sobre uma pauta pública que envolve, entre outras coisas, o modelo de urbanização que queremos para as futuras gerações. Enorme o significado dessa experiência atomizada do ponto de vista civilizatório. Pressupondo que a democracia é um regime com um forte potencial de aprendizado, eis uma janela histórica, disponível para ser aproveitada por uma constelação de assuntos pendentes de um exame público mais detido.

Há muito que os principais teóricos da filosofia política contemporânea concordam que o esquema clássico da democracia representativa tem limites de difícil superação. O aumento de complexidade das sociedades ocidentais trouxe como marca a explosão de demandas individuais e coletivas, e a recepção desses anseios, protagonizados por inúmeros de novos atores sociais tensiona as esferas especializadas do poder com pautas igualmente urgentes e conflitantes. É o que afirmam autores como Jürgen Habermas, no clássico Direito e Democracia (Faktizität und Geltung).

A chance de ver a democracia participativa na prática é tentadora e pode indicar os gargalos e os pontos que merecem aperfeiçoamento, como parte do caráter pedagógico da democracia, entre Estado e sociedade civil.

Nesse sentido, a redescoberta do espaço público numa cidade que não se relaciona bem com a rua – tida desde sempre como perigosa, suja e promíscua – resgata a sua dimensão política, como arena privilegiada de mobilização e reivindicação. Além disso, estar disponível à interação com a diferença representa um ponto de virada na dinâmica da sociabilidade na cidade, facilitando a compreensão da multiplicidade de perspectivas e projetos de vida boa que marcam a existência.

O uso espontâneo do Minhocão, que vemos cotidianamente, também ostenta potencial de inovação e, em adição, de produção de novas formas de ocupação do espaço público, com criação de novas alteridades e de um novo urbanismo.

Elevado Costa e Silva, o Minhocão, área central de São Paulo
Foto Felipe SS Rodrigues

É o que sustenta Rebar, ao assinalar que “Em contraposição ao urbanismo tecnocrático, existe um conjunto de pessoas, processos e lugares que caracterizaríamos como urbanismo gerado pelo usuário. Esse é o urbanismo dos táticos, daqueles que inventam usos temporários e interinos e que buscam vazios, nichos e brechas no tecido socioespacial. Esses processos ficam evidentes em padrões circulares, híbridos e sobrepostos de consumo de recursos e tendem a estimular uma ecologia social resiliente e diversa” (6).

Esse detalhe impõe um step-back na reflexão urbanística. Assumir que usuários podem gerar urbanismo é meio caminho para admitirmos que o protagonismo do pensamento em torno do urbano não pertence apenas aos arquitetos. Afirmação polêmica, se localizada no diagnóstico que os estudos da cidade são, em verdade, um campo em disputa, numa polifonia assimétrica e não disponível ao diálogo.

Henri Lefebvrè, no clássico O direito à cidade já apontava para esse horizonte. O tema foi novamente debatido por Mohsen Mostafavi, na obra Urbanismo ecológico. De acordo com Charles Waldheim, os “espaços de discordância ultrapassam as fronteiras disciplinares e profissionais que compreendem o estudo da cidade. Qualquer exame atual dessas estruturas disciplinares reconheceria que os desafios das cidades contemporâneas raramente respeitam os limites disciplinares tradicionais”, recorrendo, em seguida, ao pensamento de Roland Barthes sobre a interdisciplinaridade como estruturante para novas linguagens.

Afinal, “essa interpretação sugere que o urbanismo ecológico poderia reanimar as discussões sobre sustentabilidade com os potenciais políticos, sociais, culturais e críticos que foram drenados delas. (...) Essa disjunção de interesses levou a uma situação na qual a cultura arquitetônica foi despolitizada, distanciada das condições empíricas e objetivas da vida urbana”. E finaliza: “entre os resultados dessa disjunção entre os compromissos intelectuais e práticos está o fato de que estamos coletivamente coagidos a escolher entre paradigmas urbanos excludentes, que adotam acesso exclusivo à saúde ambiental, à justiça social ou à relevância cultural” (7).

Não se trata apenas de um debate acadêmico, embora ele se origine dessa irresignação em relação à fragmentação dos saberes. Concretamente, é o sinal de que muitos são os atores sociais que devem ser ouvidos sobre o futuro do Minhocão: artistas, advogados, engenheiros, cientistas sociais, médicos, psicólogos. Caminhar no sentido da convergência dessas vozes é, sem dúvida, parte de uma receita de sucesso.

Outro aspecto fundamental é abertura de um novo horizonte para refletir sobre os instrumentos jus-urbanísticos de controle da mais-valia urbana, assunto que ganhará grande destaque se prevalecer a tese da criação do parque na via elevada.

Disponíveis principalmente desde a entrada em vigor da Lei Federal n. 10.257/2001, que instituiu o Estatuto da Cidade. Para além do argumento fácil de que o parque elevado provocaria gentrificação, informação verdadeira e igualmente aplicável à hipótese da demolição ou à construção de novas estações do metrô, a discussão em torno desses mecanismos representa uma saída possível, dentro da competência regulatória do Estado, para refrear o processo de especulação imobiliária.

É um dado de realidade que melhoramentos urbanísticos provocam surtos especulativos. Recorrer a tais mecanismos é uma maneira de formar fundos públicos que podem ser aplicados, entre outros, em soluções que viabilizem a criação de habitação de interesse social.

De acordo com Martim Smolka e Fernanda Furtado, a resistência a essa regulação legal é basicamente ideológica: “De fato, não é difícil encontrar justificativas públicas segundo as quais a aplicação de um determinado instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias não é oportuna ou adequada, estando essas justificativas muitas vezes baseadas em interpretações e argumentos equivocados. Entre os principais argumentos utilizados, encontram-se os de que esses instrumentos implicariam imposições que se transferem aos preços, que desorganizariam o bom funcionamento do mercado imobiliário ou que acarretariam bi-tributação” (8).

São questões que nos inquietaram ao longo desse ano e que, em meio ao processo legislativo do projeto de lei n. 10/2014, indicado no primeiro texto que publicamos, foram exaustivamente discutidos.

O importante, ao final deste um ano, é verificar que a atuação de uma associação traz enormes benefícios à cidade. Agita debates, atrai a atenção do Poder Público, . É um caminho sem volta, indispensável à construção de cidades mais justas, democráticas e sustentáveis.

Elevado Costa e Silva, o Minhocão, área central de São Paulo
Foto Felipe SS Rodrigues

notas

1
COMOLATTI, Athos; VON POSER, Paulo; LEVY, Wilson. Cidade e democracia. Um estudo de caso da Associação Parque Minhocão. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 163.05, Vitruvius, fev. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.163/5051>.

2
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. 2ª edição. São Paulo, Studio Nobel, 2004.

3
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1965, p. 184.

4
COMOLATTI, Athos; SENA, Jaqueline; VON POSER, Paulo; LEVY, Wilson. O Parque Minhocão e a alma da cidade. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 166.01, Vitruvius, maio 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.166/5154>.

5
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2004.

6
REBAR. Urbanismo gerado pelo usuário. In. MOSTAFAVI, Mohsen; DOHERTY, Gareth. Urbanismo ecológico. Tradução Joana Canedo. Barcelona, Gustavo Gili, 2014, p. 350.

7
WALDHEIM, Charles. Obra fraca: "a metrópole fraca" de Andrea Branzi e o potencial de projeto do "urbanismo ecológico". In. MOSTAFAVI, Mohsen; DOHERTY, Gareth. Op. cit., p. 114-115.

8
SMOLKA, Martim; FURTADO, Fernanda. Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina: Bravura ou Bravata? In: Curso de Gestão Urbana e de Cidades (2001). Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, WBI, LILP, IPEA, ESAF. Disponível em: http://www.eg/fjp.mg.gov.br/gestaourbana/index1.php. Acesso em: 22 de janeiro de 2015.

sobre o autor

Wilson Levy é doutorando em Direito Urbanístico (PUCSP) e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Graduate Student Fellow do Lincoln Institute of Land Policy. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Nove de Julho (Uninove).

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