De modo geral, toda boa obra de arquitetura suscita questões relevantes e outras nem tanto. A responsabilidade da crítica – e o risco do autor – está justamente em colocar luz nas estratégias fulcrais do projeto e não cometer o deslize de dar protagonismo às questões secundárias, na iminência de perder validade. Mesmo em São Paulo, a mais pujante do país, há uma escassez destas boas obras – com sorte, nesta década, na média de uma por ano. Em consequência ao rarefato, quando finalizadas, as edificações são tomadas de pronto, no milagre de sua existência; furor que normalmente mistura compaixão aos impasses da realização, relações de boa vizinhança, admiração pelo criador e até um pouco de indolência por parte dos espectadores. Fiéis à arquitetura, acreditam que o aplauso seja a reverência mais elogiosa, quando na verdade, ao deixarem de engrossar o caldo da análise crítica, abreviam o interesse na obra e o aprimoramento do campo disciplinar a partir dela; caso da Biblioteca Brasiliana, 2013, de Eduardo de Almeida e Rodrigo Loeb, e da Praça das Artes, 2012, de Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz, Luciana Dornellas e Marcos Cartum que seguem sem parâmetros, na sua existência perfeita.
Na ordem do dia, o Sesc 24 de Maio, do arquiteto Paulo Mendes da Rocha com suporte técnico dos arquitetos Fernando Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga, levanta questões sem precedentes. Se fôssemos seguir uma sequência de análise padrão – de fora para dentro, do acesso térreo até a cobertura – chegaríamos a algo certamente disfuncional. Tomando de pronto os relatos emocionados, de cunho sociológico, que já expuseram os efeitos evidentemente profícuos do novo Sesc em seu contexto central, nos deteremos na arquitetura. Sem demora, é possível dizer que externamente, o Sesc 24 de Maio não existe. Na densidade construtiva do centro, o edifício, em seus limites físicos, recebeu uma pele de vidro simples; menos porque seja um material da preferência do arquiteto, mas sim, pela necessidade de levar luz ao interior da massa edificada. Mais interessante, é o empilhamento do programa em lajes rasas que logo faz lembrar o Downtown Athletic Club citado por Rem Koolhaas em Nova York Delirante. Na sua versão, o programa está confinado em plataformas sobrepostas que reproduzem de modo aproximado a área original do terreno e estão ligadas por uma bateria de elevadores. A concomitância inusitada do programa verticalizado guardado por uma fachada que nada manifesta é resumida pelo autor na cena “Comer ostras com luvas de boxe, nus, no enésimo andar”; no Sesc sendo possível algo como “Ler Mário de Andrade ao som do hip hop, de bikini, no décimo andar”.
Koolhaas trata a estratégia do empilhamento, dos primeiros edifícios no início do século 20 como documental, e a partir dela entende que não basta uma boa vizinhança programática. São necessárias zonas de atrito entre os programas, possibilitando dinâmicas involuntárias – como na Biblioteca de Seattle ou na proposta do Parc de la Villette. Mendes da Rocha, ao defini-los em pavimentos insulados, está mais próximo da versão pregressa – uma exceção curiosa no trabalho do arquiteto que tanto orientou seus educandos no outro sentido. Não muito longe, uma lição do aluno em benefício de seu mestre, está São Paulo, razões de arquitetura: da dissolução dos edifícios e de como atravessar paredes, de Angelo Bucci. Mirar, transpor, invadir e infiltrar são as quatro operações básicas definidas pelo arquiteto que cairiam bem na intervenção do preexistente; considerando a mesma prótese quadrúpede de miolo, com altíssimo potencial de reorientação da estrutura anterior – algo nas condições do Vakko Fashion Center, de Joshua Prince-Ramus.
Laje a laje, rentes e alinhadas, antigo e novo confinam espaços de exposição, biblioteca, espaço de tecnologia e artes, dança, oficinas, ginástica e clínica odontológica. O pé direito baixo, inevitavelmente aproxima a infraestrutura que corre no teto ao olhar do visitante, e suscita outra questão, inclusive já debatida na Bienal de Veneza de 2014 – Fundamentals – de Koolhaas. Segundo o arquiteto: “O teto costumava ser decorativo, um plano simbólico, um lugar de intenso investimento iconográfico. Agora, tornou-se uma fábrica inteira de equipamentos que nos permite existir, um espaço tão profundo que começa a competir com a arquitetura. É um domínio sobre o qual os arquitetos perderam todo o controle, uma zona entregue a outras profissões”. É fato que o Sesc 24 de Maio foi acometido por este duelo, Arquitetura versus Infraestrutura, e não por acaso – é sintomático – que os primeiros flashes aconteçam apenas na amplitude do vão da rampa. Quando a praça de acesso é constrangida por um corpo estranho que corta todas as perspectivas do usuário – um cilindro de concreto, o reservatório de água inferior –, o visitante segue em busca do espaço arquitetônico. Nos pés da rampa ou no percurso de meio quilômetro acima, a 15 minutos de distância (20 para uma mulher de meia idade, ou, 10 e 15 a favor da gravidade) no alto do edifício, sob a compressão do tanque de 25x25m, um mirante – doação mais que certeira dos últimos empreendimentos culturais paulistanos. A água que derrama do óculo central, ao movimento das crianças na piscina, é da categoria do desejável desconforto e imprudência pertinente presente em todo o projeto do Sesc-referência de Lina Bo Bardi. Infelizmente, outras nesgas de luz que nada iluminam e rasgos demasiado estreitos que molham sem propósito – como o do acesso ao teatro, no subsolo – não contêm a mesma transgressão.
Mas estas são as questões ditas menores, ou talvez complementares à questão central. Um dos conceitos recentes que avança com certa unanimidade é o do Reuso Adaptativo (originalmente em inglês, Adaptive Reuse). Tema da 14ª Conferência Internacional do Docomomo, refere-se à reutilização de uma edificação antiga para um propósito diferente do qual foi construída. Mais lasciva do que as anteriores, a definição incorpora de maneira abrangente, as obras com conhecido potencial patrimonial, bem como estruturas aparentemente banais – à exemplo da estação de energia de Londres, na virada do século, convertida no Museu Tate Modern, de Jacques Herzog e Pierre de Meuron. Caso também do Sesc 24 de Maio que ocupa instalações de 1941 da antiga loja de departamentos Mesbla.
No redesenho da planta, os quatro novos pilares circulares são destacados em tom mais escuro dos demais existentes – uma estratégia discursiva e gráfica que deixariam Zevi reticente. Na ocupação, a distinção é pouco evidente, mesmo que a materialidade seja diferente. Uma profusão de pilares, retangulares, circulares, triangulares, quadrangulares, mezzo redondo mezzo quadrado, tomam a laje cavernosa e existem em pé de igualdade. Espaços retalhados entre vãos de todos os tamanhos configuram uma série de zonas residuais fundamentais para o funcionamento das atividades. Como no jogo Cai-não-cai em começo de partida, o programa existe interceptado em todas as direções, e a escassez de áreas livres torna inimaginável a unidade sem o prédio de serviços anexo, adquirido posteriormente. A circunstância de maneira nenhuma impede o bom funcionamento da instituição, mas comprometidos como a água e óleo, primitivo e derivado não escondem, em vários de seus cantos de meio de planta que a relação das estruturas extemporâneas é conflituosa. A obra desafia Newton, ao provar que na arquitetura, diferente da metafísica, dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço.
É possível cogitar que a ambição fixa do extenso programa no limitado edifício gere o desconforto associado à estrutura, mas certamente, a qualidade da configuração espacial resultante, somada aos quinze anos de obras, gera dúvidas sobre os argumentos que motivaram a intervenção e transformação do edifício obsoleto. Segundo o diretor regional do Sesc, Danilo Santos de Miranda, a demora em colocar o plano em prática decorreu principalmente da complexidade em adequar o prédio às normas de segurança e exigências da prefeitura – curiosamente, as dificuldades se perpetuaram em arquitetura, agora materializadas na pedra. Mesmo que a festa continue, e seja de debutante, a empreitada do Sesc 24 de Maio é bem-vinda, mas ao mesmo tempo coloca em xeque o consenso sobre o reuso adaptativo; expõe sobre os limites de uma estrutura preexistente, e das margens discursivas, tanto conceituais quanto práticas. Ao risco de forçar o programa arquitetônico em uma camisa de força, o reuso a todo custo, pode funcionar bem às emergências culturais que sedentos, evidenciamos, mas a longo prazo pode implicar restrições acumuladas, contraditórias à fluidez desejada, particular deste novo século.
sobre o autor
Felipe SS Rodrigues é arquiteto e mestrando (FAU Mackenzie, 2017) com estudos complementares na New Jersey Institute of Technology (2012) e no Pratt Institute em Nova York (2013). Colaborou com o arquiteto Isay Weinfeld (2011) e com Rem Koolhaas no OMA de Roterdã (2013).