Na cidade de São Carlos, para descer à baixada do mercado, a rua 9 de Julho sempre foi a melhor opção. Na esquina com a rua Conde do Pinhal uma parada era certa, ao menos para espiar se o carro do Seu Zé Calijuri estava por lá. “Que alegria, Seu Zé chegou, vamos sentar com ele na área pra saber as novidades do Brasil”. Era lá, na garagem de sua casa, com o carro afastado para dar lugar as pessoas, que todos se juntavam. Coisa simples, mobiliário de interior, cadeira de fio de nylon e samambaia pendurada na parede, cena clássica para quem conhece o interior paulista. Aquela pinguinha, alguns petiscos e a viola de raiz eram alguns elementos que ajudavam a conversa durar até a noite cair.
Zé Calijuri era um rapaz simples, comerciante honesto que adorava conversar com as pessoas. É assim que todos me contam dele. Trabalhava com venda de couros e alguns outros produtos agrícolas. Viajava o Brasil todo de carro e quando parava em casa tinha prazer em compartilhar o que havia aprendido com todos da cidade. Sempre que queriam um conselho de negócios corriam na casa do Seu Zé, diziam: “ele é viajado, vamos lá que ele deve saber o que fazer”. Mas não era só Seu Zé que fazia isso, eram todos que por ali passavam. Com o tempo a casa virou referência, as pessoas se encontravam lá para falar de negócios. Era assim, nessa dinâmica familiar e descomplicada que muitas novidades chegavam a São Carlos.
Mas seu Zé morreu cedo, 50 anos, São Carlos ficou de luto, fizeram rua com seu nome. Neste momento Dona Carmem precisou assumir as rédeas, mas criada em uma rígida família espanhola, havia sido proibida de estudar além do ginasial, “não era coisa pra mulher”. Agora precisava sustentar três filhas que estavam na universidade, mas como? Carmen foi valente, decidiu tocar os negócios com com couro, ramo pouco convencional para mulheres na década de 1970. Como fazia? Nas madrugadas precisava ir nos trevos das rodovias negociar as cargas com os caminhoneiros. Se tinha medo? Muito, levava uma arma no porta luvas. Quando nos contava essas histórias dizia, “era esse o jeito, não tinha outra opção”.
Dona Carmen, pioneira nos negócios, fez escola, criou a primeira médica cirurgiã da cidade, a primeira mulher a ser diretora da Escola de Engenharia da USP (EESC USP) e a primeira mulher professora da faculdade de engenharia civil da UFSCAR.
Agora eu, menino do interior que veio morar em São Paulo. Estudou arquitetura e urbanismo no Mackenzie, se apaixonou pela profissão e pela cidade, participou dos concursos de estudantes e trabalhou com grandes projetos no escritório dos professores da FAU Mackenzie. Até que surgiu o desafio, projeto pequeno me diziam, “é só reformar uma casa”. Mas era impossível me colocar como observador daquelas camadas históricas, me via como parte delas. Grande responsabilidade, pensei, intervir na casa da Vovó. Logo eu, que nunca pude mudar uma panela de lugar naquela cozinha. Mas o tempo passou e as responsabilidades também, agora ela estava idosa e passava o bastão. Era uma espécie de bênção, um ritual de passagem, me reconhecia como “homem criado” e dava autorização para transformar a casa. Confiava em minhas mãos a responsabilidade de adequar a casa para a nova geração.
Uma coisa estava clara entre os herdeiros, a casa deveria seguir sua vocação: relação harmoniosa entre diferentes pessoas que por ali circulam para conviver, habitar, aprender, trocar experiências e criar laços afetivos. Afinal, “tudo se sanearia desde casas abertas” (1). Desafio nobre na arquitetura, harmonizar o velho com o novo, camadas técnicas e históricas, memórias e perspectivas, respeitar o passado e projetar o futuro. Por isso compartilho com vocês não apenas o projeto finalizado, peço desculpas se me alongo na contextualização, mas neste caso o processo é mais importante do que o resultado.
Assim estávamos, três irmãos observando o espaço e as memórias quando veio a pergunta: o que vamos fazer na casa da vovó? Após algumas ideias ao vento decidimos pesquisar um pouco mais sobre espaços de coworking, até percebermos que, na prática, já era isso que nossos avós faziam. As pessoas frequentavam aquele espaço para falar de negócios, das novidades do Brasil, dos rumos políticos e econômicos. Nessa casa as mulheres foram pioneiras em suas áreas, inovaram, foram destemidas, pensaram caminhos até então improváveis. O clima era de amizade e os conselhos eram compartilhados, as pessoas gostavam de estar naquele ambiente. Era isso o que queríamos! A missão ficou clara, precisamos recuperar o que já havia acontecido naquela casa, agora com as adaptações de nossos tempos. Ao anunciar para os amigos e a família, a pergunta era certa: Coworking no interior, da certo? Dizíamos que naquela casa muita coisa pouco provável já havia dado certo, e estávamos dispostos a trabalhar para isso.
Para recuperar o espírito da casa precisávamos desenhar um processo de projeto. Optamos por uma divisão em duas vias que caminhavam de maneira concomitante, ao mesmo passo eram desenvolvidas dinâmicas tanto com relação às memórias do espaço quanto com as perspectivas de futuro, cabendo a arquitetura encontrar o ponto de equilíbrio entre elas.
Em relação as memórias, as dinâmicas ocorriam em conversas familiares nos almoços e aperitivos, formato no qual as pessoas se sentiram mais à vontade para contar as histórias e os causos que se passaram naquela casa. Como arquiteto, tomava nota e registrava o que era dito. Quando havia oportunidade, as decisões tomadas para o projeto eram apresentadas em modelos tridimensionais e com base nos feedbacks recebidos o projeto ia sendo alterado em tempo real. Tudo isso ocorria de maneira simples, colocava o computador na mesa de almoço, afastava as garrafas de vinho, e as pessoas olhavam e comentavam. Assim, sentindo a real importância de suas opiniões e vendo o projeto ser alterado, a família se sentia confortável para “palpitar” (2).
Nesses momentos vinham as discussões: devemos ou não tirar o São Benedito da cozinha? Decidimos que não, ele havia sobrevivido a explosão da panela de pressão. Fatídico sábado em que ficamos sem nossa feijoada… Em meio a essas conversas uma pitada de encantamento sempre nos ajudava, lembro-me bem de quando li um trecho de Mia Couto no almoço de domingo:
“E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago.
A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. Foi naquele chão que inventei brinquedo e rabisquei os meus primeiros desenhos. Ali escutei falas e risos, ondulações de vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer” (3).
Quanto aos futuros coworkers, nossa proposta foi considerá-los como construtores diretos dos espaços que viriam a habitar, ou seja, poderiam colocar a arquitetura de acordo com seu melhor aproveitamento para cada momento. O objetivo não era desenvolver uma arquitetura específica para àquele grupo, mas sim como um espaço apto a ser transformado independente de quem viesse a habitá-lo. A arquitetura final não poderia ser um projeto acabado, mas a estrutura base para novos processo que, inclusive, a transformariam. Estávamos projetando um espaço de apropriações, uma arquitetura como canal de transformações, para isso os futuros coworkers deveriam se sentir construtores daquele espaço desde o início, aumentando a sensação de pertencimento.
Desejávamos um espaço capaz de abrigar as mais diversas atividades: reuniões, vivências, oficinas, workshops, palestras, cursos, encontros corporativos, e o trabalho do dia-a-dia. Apostamos na construção de um alicerce pautado na flexibilidade, que sustentaria o modelo de negócio, a arquitetura e o design como partes integradas. Para alcançar esse objetivo decidimos abrir o processo de projeto arquitetônico desde o início, trazendo os potenciais habitantes do espaço para desenhá-lo conosco.
O ponto alto de nosso processo de projeto foi o desenvolvimento de uma dinâmica (4) presencial com a participação de pessoas que representam públicos estratégicos nas dinâmicas dos espaços de coworking. Foram convidadas empresas tradicionais, startups, desenvolvedores, youtubers, mestres cervejeiros, associações universitárias, ONG's, coordenadores pedagógicos, facilitadoras de processos, produtoras de alimentos orgânicos, franquias e o Sebrae municipal. O convite para esses atores foi simples: venham desenhar conosco um espaço que vocês poderão utilizar no futuro. Durante a dinâmica foram coletadas diversas opiniões, como por exemplo: as principais carências de cada setor, como os espaços poderiam melhorar suas qualidades de vida, quais vantagens e desvantagens enxergavam no modelo proposto e até opiniões bastante precisas sobre como deveria ser um auditório. Também foram realizadas algumas dinâmicas em grupo, nas quais atores que não se conheciam descreviam de maneira conjunta como seria o espaço que melhor atenderia suas necessidades. Todo o material foi gravado e analisado, os feedbacks foram debatidos e incorporados ao projeto.
O processo de projeto indicou o seguinte programa para nosso espaço: 5 salas privativas, 16 estações de trabalho em espaço compartilhado, locker privativo para os que trabalham nas áreas coletivas, sala de reuniões para 10 pessoas, auditório com capacidade para 30 pessoas e possibilidade de expandir para 60, recepção com espaço de convivência, área do café, cozinha que permitisse a elaboração de refeições coletivas, áreas ao ar livre e espaços de descompressão.
A área construída da casa original era de 182m², para abrigar o novo uso optou-se por fechar o espaço da antiga garagem, aquela onde Seu Zé Calijuri recebia os amigos. Com isso a área construída passou a ser de 212m². A casa também possui 2 pátios internos conectados e um jardim na fachada da rua Conde do Pinhal. Somados, os pátios totalizam 30m², já o jardim ocupa 45m², totalizando os 315m² do terreno.
Como pode-se perceber, organizar esse programa nesse espaço não era uma tarefa simples. Para verificar a viabilidade de implantação criamos um modelo de análise de fluxo e permanência nos espaços. Com isso percebemos que o auditório, por exemplo, não precisaria estar 100% do tempo disponível, assim como a sala de reuniões, ainda que essa tivesse muito mais uso que o auditório. Também conseguimos perceber que o auditório para 60 pessoas seria usado com pouca frequência, e que eventos desse porte ocorreriam no período noturno ou finais de semana, quando já não seria necessário ter a recepção ativa.
Claramente, um evento para 60 pessoas precisaria de um espaço para coffee break, mas nesses momentos as estações de trabalho já não estariam ocupadas e poderiam receber esse uso. Também analisamos que seria melhor oferecer as salas privativas já mobiliadas, isso manteria o padrão de qualidade do nosso espaço e seria um bom auxílio para as pessoas que estão iniciando a vida profissional. Mas percebemos que teríamos um problema se as empresas quisessem trazer seus próprios mobiliários, pois não teríamos espaço de armazenamento.
Nesse ponto vale ressaltar que não havia muita viabilidade para reservar áreas da casa como almoxarifado, os espaços precisavam ser locados para tornar o modelo viável financeiramente. A única área reservada para isso foi o antigo "quartinho de costura da vovó", que mede 7m². Para atender essa demanda foi necessário um mobiliário com facilidade de armazenamento e montagem, que fosse flexível e passível de ser transportado por uma única pessoa. Devido ao pouco recurso disponível, optamos por um design simples e de baixo custo, que pudesse ser produzido por serralherias pequenas da cidade.
A solução encontrada foi um sistema padronizado de mesas, no qual independente das dimensões, existem apenas dua opções de apoios. O que garante a sustentação dos tampos são as barras superiores, essas variam de acordo com a dimensão de cada mesa. As madeiras dos tampos também são padronizadas, sempre pranchas de virola. A estrutura do mobiliário não possui qualquer sistema de fixação rígido, as conexões são feitas exclusivamente por encaixes. Quanto ao mobiliário adquirido pronto, sempre optamos por opções ergonômicas, mas de fácil armazenamento. No caso do auditório, o antigo armário embutido abriga hoje 30 cadeiras empilhadas.
A flexibilidade também foi adotada para o sistema de infraestrutura. Optamos por sempre trabalhar com conduletes metálicos externos pelos quais correm cabeados os dados, internet e energia. Em pontos de energia no centro dos espaços, como por exemplo nas estações de trabalho, utilizamos conduletes metálicos flexíveis que se distribuem sobre as mesas. Com essa opção as mesas podem ser retiradas, os tubos flexíveis são recolhidos e o salão todo fica liberado para eventos. Já na parte de iluminação interior, optamos por trabalhar com eletrocalhas, que além das luzes de led indiretas também sustentam os cabeamentos do projetor e do sistema de som. Na iluminação externa também foram adotadas soluções simples, como refletores pequenos distribuídos nas fachadas e luminárias industriais nos pátios.
Após alguns meses do término da obra as apropriações já estão acontecendo, desde as mais simples, como coworkers que levaram sua própria churrasqueira para o jardim até as menos esperadas, como workshops de caipirinha e eventos relacionados a produtos orgânicos. Algumas vezes as intervenções ocorrem nos espaços privativos, como nas mudanças de ponto de internet e de energia.
Hoje a antiga casa do Seu Zé Calijuri já recebe as novas gerações de São Carlos, todos a chamam de Wikilab. Mas o que mais importa, como dizia Dona Carmem, é quando a “turma se junta”. Os encontros não ocorrem apenas na área da garagem, mas fizemos questão de colocar o “sofá do café” na mesma posição em que ficava a cadeira de meu avô.
É comum passar por lá e alguém lhe oferecer um mousse de maracujá, “daqueles colhidos ali no jardim”. Se passar na hora do café pode ser que te ofereçam um doce caipira, desses que alguém trouxe de uma cidade do interior por onde viajou. Assim segue a história dessa casa, do Seu Zé, da Dona Carmem e agora do Wikilab.
notas
1
Me refiro aqui ao poema Fábula de um Arquiteto, escrito por João Cabral de Melo Neto.
2
Palpitar, era esse o termo que se usava quando eu chegava com o computador na mesa. Diziam: “Vamos palpitar, ele trouxe o computador para a gente ver o projeto”.
3
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo, Companhia das letras, 2013, p. 145.
4
A dinâmica foi organizada pela Umcomum, empresa de design que facilitou o processo com os convidados para que ficássemos como expectadores absorvendo tudo o que era debatido.
ficha técnica
projeto
Wikilab Coworking
local
São Carlos SP
projeto
2016
arquitetura
José Eduardo Calijuri Hamra
esquadrias
Fenstek
marcenaria
Marcenaria Marini
serralheria
MTJ