— Por favor, desenhe uma mão com os dedos dobrados e o indicador apontando em uma direção para fazermos as placas indicativas de sinalização de banheiros, saídas etc. —, me pediu Lina Bo Bardi.
Eu, acanhado em meus primeiros dias de estágio, e mais acanhado ainda por “não saber” desenhar e ter que expor meu “feio” desenho, titubeei como que me negando a executar a tarefa. Lina volta-se para mim e diz:
— Se você não desenhar eu vou fazê-lo. E olha que eu desenho muito bem. Vamos lá, faça o seu desenho.
Tomei coragem diante da ameaça e desenhei uma mão que, em seguida, virou modelo para as placas de comunicação visual do canteiro de obras do Sesc Pompeia, em São Paulo. Estávamos no ano de 1977 e eu, ainda estudante, acabara de ser aceito como estagiário colaborador de Lina Bo Bardi. Foi assim o começo de uma epopeia que duraria nove anos – a realização do conjunto do Sesc –, e de uma convivência de trabalho e amizade de quinze anos, até sua morte em 1992.
Conto este fato para mostrar que este gesto de Lina – me “forçar” a fazer o “meu” desenho – estava carregado de uma intenção educativa e libertadora a me dizer algo como “todos podemos nos expressar com nossos desenhos, livremente do talento ou virtuose do saber desenhar, ou desenhar dentro das regras da beleza, sejam elas clássicas ou modernas”. Nada disso importa. O que importa é desenhar ao nosso modo, à nossa expressão individual manual/cerebral, livre e despreocupado das obrigações do “belo” e das regras de composição e equilíbrio que podem nos levar à frustração, ao complexo de inferioridade no assunto.
Até então, tudo que tinha aprendido nas escolas por onde passei, da primária à universidade, é que desenhar é uma condição sine qua non para algumas profissões e poucos possuem os atributos ou talento para o ofício, poucos são os que desenham; os não “escolhidos”, ou não “brindados” com tal talento, que se envergonhem e mantenham suas mãos à distância de lápis, canetas e papéis. Mas não! Sem me dar conta, ali, com Lina, eu era iniciado em uma trincheira, até então inédita para mim, da luta contra a ditadura do desenho em nossa profissão. E isso para um futuro arquiteto não era pouco. Com bastante constância, Lina questionava o desenho enquanto representação única – ou mais fiel – da arquitetura, nos alertando inclusive sobre as distorções óticas das “projeções de Monge” (1). Para ela, o desenho era uma das ferramentas do fazer arquitetônico, não a única.
Desenho e projeto
Em arquitetura, dizer que o desenho é tudo é uma meia verdade, ou até verdade nenhuma. Em arquitetura, arquitetura é tudo. Se entendermos arquitetura como uma experiência do espaço no tempo vivida com todos os sentidos, será difícil, ou mesmo impossível, substituir sua linguagem própria de expressão – a da percepção tridimensional do espaço – por qualquer outra linguagem. A fotografia, a escrita e as várias formas de desenho – do mais livre e expressivo croqui ao mais técnico – não conseguem representar a arquitetura em sua totalidade sensorial. Nessa experiência, tudo conta: fruição, observação, reflexão, filtrados pela bagagem cultural de cada um.
Dito assim, onde é que fica o desenho, essa ancestral linguagem da expressão humana? Não é importante no fazer arquitetônico? Claro que sim. Ainda hoje o desenho é uma das principais ferramentas da arquitetura e, em muitos momentos, se confunde com a própria arquitetura, tal a proximidade da linguagem meio – o desenho, com a linguagem fim – a arquitetura.
Seguidamente, em muitas línguas incluindo o português, nos utilizamos da palavra desenho para nos referirmos ao projeto, sem pensar que projeto é muito mais que desenho. Projetar é ver adiante, enxergar à frente algo que poderá ou não ser concretizado. Ao projetar, podemos recorrer a várias linguagens, como o desenho, a escrita, a fotografia, esculturas (maquetes), sons, falas etc. Mas em nossos dias, o desenho como linguagem ainda é fundamental na prática arquitetônica, seja em sua concepção, seja em sua expressão. Não podemos prever até quando será assim, com tantas inovações que surgem todos os dias no campo da comunicação. O que podemos afirmar é que, hoje, o desenho é parte integrante do fazer arquitetônico e também que o termo ‘desenho’ não tem uma aplicação precisa no campo da arquitetura.
Quando Gió Ponti anota que seu desenho é uma ideia que contém um ideário – “Questo è un disegno de mettere un ideario in fatto: un disegno è un idea” –, sem dúvida está colocando mais lenha na fogueira desta discussão infindável sobre termos que se sobrepõem em muitas línguas a partir de seu radical comum, do latim designium – design, desenho. Isso nos permite ler o termo desenho como tradução de uma intenção ou vontade: como se o desenho, investido de conteúdo, representasse um ideal. Seria um desejo?
Quando o arquiteto português Álvaro Siza (2) diz que “o desenho é a procura da inteligência”, ele está se referindo ao desenho enquanto projeto. E aí a confusão do uso dos termos continua armada. Mas o desenho enquanto projeto, tomado como forma prospectiva e propositiva a um só tempo, é uma das chaves para se compreender o que é fazer arquitetura. Em uma atividade única, que em geral é o ato de desenhar, o arquiteto observa, faz anotações, registra a natureza ou o lugar da intervenção, sua geografia, e ao mesmo tempo a transforma, também com desenhos. Muda, altera a realidade hipotética, agrega novos elementos e disso, desse ato uno e multifacetado, surge a arquitetura. Fazemos o desenho para apreender o lugar e para transformá-lo. Na medida em que estamos construindo o lugar, estamos construindo o projeto, tudo ao mesmo tempo. A um só tempo utilizamos o desenho (design, projeto) como meio de percepção – forma de conhecer – e de expressão – forma de conhecimento.
Quando ouvimos alguém dizer, “já tenho a ideia, agora só falta o desenho (projeto)”, podemos concluir que falta tudo. Entre a ideia e o projeto há o abismo da indefinição do que virá. Infindáveis desenhos poderão dar infindáveis formas (e conteúdos) a uma ideia arquitetônica.
O uso reducionista do conceito de projeto tem sido responsável por muitos desastres em nossas cidades, em nossas casas, na maneira com que nos relacionamos com os nossos objetos, enfim com nosso “habitat”. Tomar os espaços da vida e objetos de nosso dia a dia sem seu devido sentido estético e cultural ou “sem ressonância em nosso coração”, como diria Darcy Ribeiro (3), é praticar arquitetura (e design) em bases falsas, com propósitos escusos. Nossas cidades e nossas casas estão aí, cheias de absurdos e de desconfortos criados pelo modo de vida de nossos dias, ditados acima de tudo pelo tempo de modismos e aparências em que estamos imersos.
Em arquitetura, porém, o tempo é outro. Busca-se sempre (assim é e foi em toda a história da humanidade) a longa vida, a durabilidade, a perenidade e até a eternidade. E isso não é pretensão. Mesmo sabendo que toda obra pode ser demolida, reformada ou alterada, o arquiteto, quando projeta, projeta para uma vida longa, onde não se vê um fim. E também não é pretensão dizer que o arquiteto “desenha” o mundo. Mundinho ou mundão, não importa. O espaço envolvente, “recipiente da existência”, é sempre um pedaço de mundo.
Após Lina
Esta luta contra a ditadura do desenho a que eu me refiro, exercitada cotidianamente com Lina, este método de trabalho, se é que podemos assim chamá-lo, passou a ser nosso modus operandi no escritório Brasil Arquitetura (4) há já quase quarenta anos. Qual seja: a cada novo trabalho, mergulhamos fundo no tema, na antropologia, na geografia, na literatura, na música, enfim, em tudo que possa servir de “alimento” e enriquecer a resposta que se espera em forma de projeto e, consequentemente, em desenho. O desenho não é apriorístico, não vem do nada, ou de uma “inspiração” arbitrária qualquer que, diga-se de passagem, não existe. Nunca começamos pelo desenho, terminamos por ele. Costumamos gastar grande parte de nosso tempo em leituras e conversas, muitas conversas, histórias que possam trazer imagens, fazendo pequenas notas, croquis, rabiscos, mais notas, poemas, lembretes em papel qualquer, onde quer que estejamos. A conversa é o mote do projeto, uma espécie de roteiro que vai se construindo na medida em que se articula em palavras e imagens do que se sonha, do que se avista adiante, se projeta na imaginação. E, depois de colocar esse “pilar” em pé, já estruturado, partimos para o desenho no papel (hoje em dia cada vez mais restrito porque vai-se rapidamente para o computador). Dessa forma, podemos chegar ao projeto, dar a ele forma, densidade, consistência, estrutura e concretude, desenho, sem jamais deixar por menos, ou de lado, a poética.
Apesar do desenho ser nosso código de comunicação com os construtores, na transformação de ideias em espaços, objetos ou artefatos, ele não é a única ferramenta. Muitas obras importantes foram realizadas sem desenhos. Em resumo, podemos dizer que a tal “luta” em nosso modo de projetar se dá mais contra a arbitrariedade do desenho, do desenho gratuito, e não propriamente contra o desenho em si. Em muitos casos, belos desenhos não bastam para se produzir boa arquitetura.
O verdadeiro desenho em arquitetura é aquele que seleciona, organiza, constrói, integra partes e produz totalidades (e mesmo pequenos objetos são totalidades). Costumamos dizer corriqueiramente: “esse copo tem bom desenho” ou “essa cadeira tem bom desenho” etc. Estamos nos referindo a uma totalidade em que forma e função respondem conjuntamente a uma demanda, externam claramente um sentido, uma razão de ser. São bons projetos, com lógicas próprias a serem vivenciadas em seus valores éticos e estéticos.
notas
NE – Publicação original do artigo: FERRAZ, Marcelo Carvalho. On Architectural Drawing: Lina Bo Bardi and Beyond. Drawing Matter – Writing and Media, Londres, 9 mar. 2017 <https://www.drawingmatter.org/writing-and-media/architectural-drawing-lina-bo-bardi-and-beyond>.
1
Gaspard Monge (1746 a 1818), um dos fundadores da Escola Politécnica Francesa, criador da Geometria Descritiva e grande teórico da Geometria Analítica, considerado o pai da Geometria Diferencial de curvas e superfícies do espaço.
2
Álvaro Siza Vieira (1933), arquiteto português considerado internacionalmente um dos mais importantes e influentes da contemporaneidade.
3
Darcy Ribeiro (1922 a 1997), antropólogo, escritor, educador e politico, considerado um dos grandes pensadores do Brasil no século 20.
4
Brasil Arquitetura, escritório criado em 1979 em São Paulo, pelos arquitetos Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki.
sobre o autor
Marcelo Ferraz é arquiteto formado pela FAU-USP em 1978, é sócio do escritório Brasil Arquitetura, onde tem realizado vários projetos com premiações no Brasil e exterior. É também sócio fundador da Marcenaria Baraúna, onde desenvolve projetos de mobiliário, desde 1986.