Construída em Plano, no estado de Illinois, a famosa Casa de Vidro de Mies van der Rohe é um dos ícones arquitetônicos do século 20 que profissionais, estudantes e interessados deslocam-se e pagam para poder visitar. A casa demonstra as qualidades do desenho de Mies van der Rohe – proporção e leveza em cada detalhe – num sítio que favorece seus diversos ângulos e encanta pela presença das árvores abundantes e do rio Fox. O edifício, que hoje é preservado pela National Trust for Historic Preservation, é passível de visitação por roteiros culturais específicos, por grupos fechados ou interessados. Este texto se propõe a discutir a memória e os registros de sua primeira moradora – a médica Edith Farnsworth – presentes atualmente naquele edifício. Partindo de uma pesquisa bibliográfica e da visita realizada pela autora em outubro de 2016, serão discutidas a preservação do imóvel e a memória das práticas domésticas.
Primeiras trocas
A relação entre Mies van der Rohe e a dra. Farnsworth foi profundamente estudada por Alice Friedman no livro Women and the making of the modern house: a social and architectural history, de 2006. Nesta publicação, a partir da análise de seis casas e das relações estabelecidas entre arquitetos e clientes mulheres, foram analisadas mudanças de paradigmas no espaço residencial e de suas propostas espaciais inovadoras. Ao longo dos capítulos, Friedman afirma que muitas mulheres tiveram controle de seu reino doméstico como maneira de garantir a independência de suas vidas (1). Com relação à Casa Farnsworth, a autora demonstra as várias etapas da relação que se estabeleceu entre Mies e Edith em um capítulo que destrincha o primeiro encontro, a contratação do arquiteto e o desgaste da relação durante os anos de construção do edifício.
A Casa Farnsworth – também conhecida na historiografia como Casa de Vidro – foi construída por Mies van der Rohe entre 1945 e 1951. Uma excelente representação da frase “menos é mais” do arquiteto alemão pela leveza de sua estrutura – que implanta aquilo que é essencial na construção – pela imagem de um volume de vidro e arestas brancas – e pelos seus interiores que integram todos os espaços de vida doméstica.
“Aqui, uma casa de um só volume de 23X9 metros foi comprimida, por assim dizer, entre as lajes do piso e da cobertura e erguida 1,5 metros acima do solo, sobre colunas de viga I externas, separadas por uma distância de 6,7 metros entre si. A caixa resultante ficava encerrada em um envoltório de vidro, a apoteose da frase de Mies beinahe nichts, ‘quase nada’” (2).
Sua cliente era médica Edith Farnsworth que morava em Chicago e comprou o terreno pensando nas vantagens de ter uma casa de campo de fim de semana. A médica conheceu Mies numa festa de amigos em comum em 1945 (3). Ele já era conhecido nos Estados Unidos, tendo imigrado em 1933 depois de ter dirigido a Bauhaus por três anos.
“Ele admitiria que o ‘trabalho” tinha sido mais ‘fácil’para ele, porque envolveu uma única pessoa e um local cercado por terras privadas, o que lhe permitiu adotar uma solução muito diferente da que ele usaria em uma área urbana” (4).
Enquanto os historiadores da arquitetura apresentam a importância da casa dentro da trajetória de Mies van der Rohe, reforçando o cuidado com a proporção, modulação, implantação, acabamentos e materiais, Friedman enfoca em seu livro a relação de poder entre arquiteto e cliente. A doutora queria uma casa que atendesse aos seus gostos e vontades, Mies também queria, e não necessariamente os gostos dos dois coincidiam. A proposta de um espaço integrado, de uma relação estreita entre exterior e interior e da impessoalidade dos ambientes foi apresentada e defendida pelo arquiteto.
Tim Benton em seu livro The Modernist House já questionou se seria possível ter um lar moderno numa casa moderna (aproveitando-se do trocadilho entre home/lar e house/casa). Benton apresenta ainda a hipótese de que as casas desenhadas pelos arquitetos do movimento moderno não são construídas para qualquer um: “o modernismo foi concebido à imagem de um tipo muito particular de pessoa” (5). No caso da Casa de Vidro, o edifício mostrou-se inadequado às vontades de sua moradora, ou sua moradora mostrou-se desconfortável com a arquitetura proposta. O prédio foi planejado para um único morador, cujas demandas programáticas eram mínimas: terraço, sala de jantar integrada à sala de estar, um quarto, dois banheiros e cozinha. A intimidade e o conforto da moradora são deixados em segundo plano: o quarto não se isola e a ausência de um quarto de hóspedes determinava que as visitas deveriam dormir na sala.
Friedman afirma que depois que dra. Farnsworth mudou-se para a casa a relação entre os dois piorou muito. Primeiro com relação ao conforto da casa; segundo por questões financeiras. A confusão entre eles ganhou os jornais e ela reclamava, entre outras coisas, da impossibilidade de ficar sozinha sem ser observada (pelos curiosos que queriam conhecer a casa de Mies van der Rohe) e dizia que se sentia como um animal enjaulado.
A construção – planos livres, peles de vidro, espaços integrados – apresenta-se como um exercício da arquitetura minimalista que Mies sugeria. Sua busca era por uma linguagem universal, numa proposta arquitetônica baseada na racionalidade. Para Mies, a casa era um espaço de contemplação, um espaço ordenado.
Ao longo da visita, a guia que conduz o grupo pela casa informa que, por conta de sua implantação e da abundante natureza no entorno da casa, Mies teria tomado cuidado com as cores do mobiliário, dando preferencia às cores neutras. No mês de outubro, quando a visita foi realizada, os tons de amarelo, laranja e marrom das árvores ao redor inundam o espaço interior.
A mobília da casa – elemento fundamental para as práticas cotidianas e especialmente definidoras dos espaços internos nos edifícios de Mies van der Rohe – também foram objetos de disputa entre cliente e arquiteto. A questão se dava entre os móveis de família da dra. Farnsworth e aqueles de design moderno desenhados por Mies. A proprietária optou por aqueles que a faziam se sentir mais confortável e personificavam seus ambientes, os familiares. Pode parecer um detalhe na arquitetura de interiores de um prédio com as qualidades apresentadas por críticos, arquitetos e historiadores, mas não é. Cadeiras, poltronas, mesas, quadros, tapetes demonstram a personalidade de um lar e revelam as práticas dos espaços domésticos, institucionais, escolares etc.
O fato é que, com todos as reclamações, a doutora Edith Farnsworth ficou com a casa por quase vinte anos (com seus móveis de família) e tentou tornar o espaço com algo parecido com um lar. No entanto, os registros deste período são raros e dificilmente encontrados. O edifício de apoio à Casa Farnsworth – com uma recepção onde o visitante compra os ingressos para o tour e vislumbra objetos de recordação que reforçam o minimalismo do projeto – tem uma área onde os interessados são convidados a assistir um vídeo sobre a importância desse prédio na história da arquitetura. Na visita, assim como no vídeo introdutório, reforçam-se as qualidades do objeto arquitetônico – e seu caráter único e inovador – do que o seu funcionamento como lar de uma mulher. Poucas informações sobre o uso da casa pela primeira moradora são apresentadas. Em um volume anexo ao prédio de apoio, o guarda-roupa reivindicado pela moradora para seu quarto, e que o arquiteto achava desnecessário (uma vez que seria uma casa para fins de semana), aguarda ser restaurado depois de ter sido danificado por uma inundação no edifício. Seu deslocamento – da Casa de Vidro para o prédio anexo – garantem uma leitura mais interessante do projeto de Mies van der Rohe.
Ainda no anexo, algumas fotos em painéis ilustram de maneira superficial o período em que a dra. Farnsworth utilizou a casa: sofás, cadeiras e mesas com desenho tradicional, além de vasos, estátuas e luminárias antigas são apresentados em pequenas fotografias.
Durante as quase duas décadas que a médica usou a casa, mostraram-se necessárias algumas modificações em relação projeto. Ela instalou telas antimosquito no espaço aberto do terraço. Afirmava que esta seria a única maneira de conseguir utilizar aquele espaço sem ser incomodada pelos insetos tão frequentes naquela região da mata e próximo ao rio. A guia da visita informou que as telas teriam incomodado muito o arquiteto. As mesmas foram retiradas no momento da venda da casa e, na situação atual, é quase impossível perceber registros desta intervenção.
A exposição de um lar que nunca existiu
A história da proprietária, de sua casa e de seus gostos começou a ser apagada quando a mesma foi vendida para seu segundo proprietário, em 1972. Sir Peter Palumbo, um promotor imobiliário e colecionador de arte inglês, era um grande admirador de obras modernas, já interessado na obra de Mies van der Rohe, quando descobriu que a casa estava à venda. Palumbo contratou a empresa do neto de Mies van der Rohe, Dirk Lohan, para restaurá-la. A ideia era potencializar a pureza e simplicidade daquela arquitetura.
Naquele momento, optou-se por instalar as peças de desenho moderno, retirando os vestígios da antiga ocupação. No lugar da mobília herdada pela família da senhora Farnsworth, foram instalados objetos de design moderno, próximos ao desenho desenvolvido na Bauhaus (entre eles, várias peças de Mies van der Rohe). O mobiliário instalado na atual disposição sugere que aquela ordem não deve ser perturbada para leitura completa do espaço e reforça a ideia de que a casa moderna exige um morador especial, como nos mostrou Tim Benton. Esculturas de Richard Serra e de Anthony Caro foram implantadas nos jardins. As lembranças da sua primeira moradora foram diluídas, de maneira a reforçar a importância da arquitetura miesiana.
Kenneth Frampton ao tratar da casa refere-se às desavenças entre arquiteto e cliente apenas no que se refere aos problemas financeiros:
“Não admira que o custo exorbitante da casa tenha levado ao rompimento de relações entre Mies e a dra. Farnsworth. Hoje uma casa de fim de semana de um milionário distante; está adequadamente mobiliada apesar quase sempre vazia, como um santuário xintoísta muito bem conservado e praticamente esquecido” (6).
Em 2003, o edifício foi adquirido pelo National Trust for Historic Preservation e desde então está aberto para visitação. Alguns roteiros arquitetônicos são propostos por instituições culturais da região: Chicago Architecture Foundation (7) disponibiliza um tour pelas obras de Mies van der Rohe que tem como ponto alto a Casa Farnsworth, e Off the map – Architectural Excursion (8) propõe visitas individualizadas e acompanhadas por especialistas. Na divulgação dos dois tours, o edifício é considerado a “obra-prima” de Mies van der Rohe.
A questão da conservação da casa moderna é outra ainda em aberto que precisa ser melhor analisada e compreendida. As frequentes inundações do edifício forçam as instituições de preservação americana a buscar alternativas para a conservação da casa e de seus interiores. Muito foi discutido a este respeito, mas tendo em conta especialmente a integridade física do edifício. A memória da primeira moradora – que foi apoiadora e financiadora da primeira casa de Mies van der Rohe nos Estados Unidos da América – precisa ainda ficar mais clara e exposta, seja pelos dilemas que são levantados quando se tratam da domesticidade e do morar moderno, seja pelos conflitos entre arquitetos e clientes – especialmente neste caso, uma mulher. Vale lembrar de que Edith Farnsworth era solteira, bem sucedida profissionalmente, culta e viajada. Mas nos Estados Unidos dos anos 1950, quando ainda se avaliava a felicidade feminina pelo sucesso de um casamento. Ignorar a presença da senhora Farnsworth na história é uma evidência do quanto Mies van der Rohe saiu vitorioso na disputa pela casa.
notas
1
FRIEDMAN, Alice T. Women and the making of the modern house: a social and architectural history. New Haven, Yale University Press, 2006.
2
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 285
3
COHEN, Jean-Louis. Ludwig Mies van der Rohe. Vanves, Haza, 2007.
4
“He was to admit that the ‘job’ had been made ‘easier’ for him because it envolved a single person and a site surrounded by private land, thus enabling him to adopt a solution very different from the one he would have used in an urban area”. COHEN, Jean-Louis. Op. cit., p. 110
5
“modernism was conceived in the image of a very particular kind of person”. BENTON, Tim. The Modernist House. Londres, V & A Publication, 2006, p. 16
6
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit., p. 286
7
Chicago Architecture Foundation <www.architecture.org>.
8
Off the map – Architectural Excursion <www.offthemapchicago.com>.
sobre a autora
Sabrina Studart Fontenele Costa é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Ceará. Mestre e Doutora pela FAU-USP. Pesquisadora colaboradora de pós-doutorado do IFCH Unicamp onde estuda questões como domesticidade, preservação e arquitetura moderna com apoio da Fapesp. Funcionária do Centro de Preservação Cultura da USP (CPC-USP). Autora do livro “Edifícios modernos e o traçado urbano no Centro d São Paulo” (Annablume, 2015).