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CUNHA, Claudia dos Reis e. A atualidade do pensamento de Cesare Brandi. Resenhas Online, São Paulo, ano 03, n. 032.03, Vitruvius, ago. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/03.032/3181>.


A preservação do patrimônio cultural em suas diversas formas e aspectos vem ganhando cada vez mais espaço na sociedade ocidental contemporânea (e também, embora de modo mais discreto, entre as culturas orientais), seja atrelada ao turismo cultural patrocinado por grandes empresas e incentivado por ações governamentais, seja na luta por igualdade e democratização no acesso e fruição da cultura, como no caso de grupos representativos de minorias étnicas ou sociais. Desde a década de 1960 verifica-se ainda a ampliação do raio de alcance das práticas patrimoniais, estendendo-se a um número cada vez maior de países, que passam a ser signatários da Convenção do Patrimônio Mundial e das recomendações internacionais para salvaguarda de bens culturais.

Na atualidade, preservar a memória tem sido mesmo uma obsessão. Muito além dos meios acadêmicos ou técnicos, preservar o passado e seus traços deixou de ser tarefa restrita de historiadores, arqueólogos, arquitetos ou urbanistas; a memória não mais se restringe a objeto de estudo de antropólogos, etnólogos, cientistas sociais ou ainda psicólogos. Cada indivíduo faz-se historiador de si mesmo e do grupo em que está inserido e os discursos relativos à preservação do patrimônio – seja arquitetônico e urbanístico, ambiental ou cultural, material ou imaterial – ganham a mídia e aparecem cada vez mais intensos entre os mais distintos grupos.

Nesse sentido, a problematização das questões relativas às motivações para a conservação e usos atribuídos ao patrimônio na sociedade contemporânea, tendo em vista o exponencial crescimento do que se considera patrimônio cultural, sua extensão territorial e o aumento de seu público em escala mundial, torna-se imprescindível. Também se faz premente uma reflexão sobre as diferentes formas de preservação da memória e ainda sobre o aparato teórico-conceitual, bem como sobre as práticas de restauração empreendidas em favor da manutenção dos suportes materiais dessas memórias.

A recente tradução para língua portuguesa da Teoria da Restauração, de Cesare Brandi, permitirá a um público mais amplo o aprofundamento da reflexão sobre as questões relacionadas com a prática do restauro. Para muitos que trabalham com preservação no Brasil esse importante texto de teoria do restauro permanece desconhecido e, entre aqueles que já o conhecem, tem sido inúmeras vezes classificado como pouco aplicável na prática, restringindo-se a pura reflexão teórica sobre problemas filosóficos ligados ao tema. Na realidade, o trabalho de Brandi ao desenvolver sua Teoria, funda-se na necessidade de excluir o empirismo dos processos de restauração das obras de arte, garantindo, assim, que aquele imperativo moral de preservar nossas relíquias para as gerações futuras seja levado a cabo a contento.

Desde os últimos anos do século XIX e início do século XX vinham sendo empreendidas diversas tentativas com o intuito de disciplinar e limitar as ações de restauração, tendo em vista que as más restaurações estavam causando prejuízos maiores às obras de arte do que a própria ação do tempo sobre elas. Preconizava-se a necessidade de tornar o restauro um ato científico, que seguisse princípios e métodos cientificamente determinados, respeitando os monumentos enquanto documentos históricos, para os quais deveriam ser dispensados cuidados de filólogo, tal como defendia Gustavo Giovannoni, cujas idéias tiveram grande repercussão no entre-guerras europeu.

Entretanto, com a maciça destruição das cidades européias durante a Segunda Guerra e, conseqüentemente, a necessidade de reconstrução também em larga escala, as teorias do restauro científico ou filológico, defendidas por Giovannoni, foram postas em cheque. Não se podia pensar nos monumentos destruídos apenas como documentos, ignorando sua existência como obra figurativa com significação social e simbólica. Em razão da grande escala das intervenções não se podia cogitar o tratamento de lacunas como “neutros”. Assim, esses questionamentos suscitaram o pensamento de que o restauro era, para além de um ato científico de filólogo, também um ato crítico (para um histórico sobre preservação e as transformações das teorias do restauro, ver Giovanni Carbonara, Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti. Napoli, Liguori Editore, 1997).

Nesse contexto, Cesare Brandi será figura de grande destaque. À frente do Instituto Central de Restauração (ICR) de Roma, do qual foi diretor por duas décadas, desde sua fundação, em 1939, até 1960, coordena a restauração de inúmeras obras de arte destruídas nos bombardeios e, paralelamente, desenvolve sua Teoria da Restauração, em que delimita preceitos teóricos que servirão de embasamento à prática do restaurador, aliando suas pesquisas teóricas nos campos da estética e filosofia da arte com as práticas e experiências desenvolvidas no âmbito do ICR.

Publicado pela primeira vez em 1963, Brandi apresenta em seu texto o conceito de restauro como “o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro” (p. 30), isto é, condiciona o ato de restauração à compreensão / experimentação da obra de arte enquanto tal, o que resulta na prevalência do estético sobre o histórico, na medida em que é exatamente a condição de artística o que diferencia a obra de arte de outros produtos da ação humana. Tal colocação refuta as teorias precedentes que preconizavam a manutenção dos monumentos apenas como documentos históricos, relegando a um segundo plano sua imagem figurativa, embora não exclua a importância do valor histórico, intrínseco a todo monumento.

De seu conceito de restauro, Brandi extrai dois axiomas:

1º. axioma: “restaura-se somente a matéria da obra de arte” (p. 31), que se refere aos limites da intervenção restauradora, levando em conta que a obra de arte, em sua acepção, é um ato mental que se manifesta em imagem através da matéria e é sobre esta matéria – que se degrada - que se intervém e não sobre esse processo mental, no qual é impossível agir. Daí decorrem as críticas às restaurações baseadas em suposições sobre o “estado original” da obra, condenadas a serem meras recriações fantasiosas, que deturpam a fruição da verdadeira obra de arte.

2º. axioma: “A restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo” (p. 33). Ainda que se busque com a restauração a unidade potencial da obra (conceito de todo distinto de unidade estilística), não se deve com isso sacrificar a veracidade do monumento, seja através de uma falsificação artística, seja de uma falsificação histórica.

Assim, é o estado de conservação da obra de arte no momento da restauração que irá condicionar e limitar a ação restauradora, a qual deverá, sob o ponto de vista da instância histórica, “limitar-se a desenvolver as sugestões implícitas nos próprios fragmentos ou encontráveis em testemunhos autênticos do estado originário” (p. 47). E em relação à instância estética, os limites da ação do restaurador estão postos em função da matéria original da obra e de sua definição mesmo como obra de arte, pois “a unidade figurativa da obra de arte se dá concomitantemente com a intuição da imagem como obra de arte” (p. 46).

O que deve guiar a intervenção é, portanto, um juízo crítico de valor, idéia presente já no pensamento do historiador da arte vienense Alois Riegl (Le culte moderne des monuments. Son essence et sa genèse. Paris, Seuil, 1984) e que aparece também na Carta de Veneza (1964), complementada pela seguinte ressalva: “O julgamento do valor dos elementos em causa e a decisão quanto ao que pode ser eliminado não podem depender somente do autor do projeto”. Daí a afirmação da restauração como processo coletivo, que não pode depender do gosto ou do arbítrio de um único indivíduo, antes deve ser sustentado por profundos conhecimentos, seja do ponto de vista da técnica a ser empregada, seja do ponto de vista humanístico, relacionado com o domínio da história, estética e filosofia, sem os quais não se pode assegurar a legitimidade das escolhas efetuadas nos procedimentos de restauro.

Brandi define ainda como princípios para intervenção restauradora mais dois aspectos fundamentais:

1º. “a integração deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem que por isto se venha a infringir a própria unidade que se visa a reconstruir” (p. 47);
2º. “que qualquer intervenção de restauro não torne impossível mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras” (p. 48).

Com esses pontos, mantém-se, como já havia sido posto – desde o século XIX – por Boito ou Giovannoni, a regra da reversibilidade e distingüibilidade das intervenções contemporâneas nos monumentos do passado, datando a restauração como fato histórico indissociável do presente histórico que o produziu. Também no texto brandiano, como nas recomendações da Carta de Veneza, fica clara a extensão dos procedimentos de restauro para o ambiente ou entorno da obra como forma de garantir sua adequada conservação física e também sua leitura como obra de arte.

O rigor de princípios é a marca da reflexão de Cesare Brandi em sua Teoria, na qual fica patente que a restauração é um ato crítico-cultural do presente e, portanto, condicionado pelos valores do presente; valores esses que não podem menosprezar ou se eximir à responsabilidade que o ato de restauro traz em si, tanto para sua própria geração quanto para as seguintes. Nisso consiste a atualidade do pensamento brandiano e o grande mérito de sua tradução em língua portuguesa, a qual certamente aproximará aqueles profissionais que atuam na conservação e restauração no Brasil, tanto quanto os estudiosos e interessados do assunto, da reflexão – fator imprescindível para uma atuação fundamentada e responsável em um campo de conhecimento a cada momento mais extenso e com princípios cada vez mais esgarçados.

[resenha desenvolvida como atividade de pesquisa do mestrado que vem sendo desenvolvido junto à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, que conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.]

sobre o autor

Claudia dos Reis e Cunha, arquiteta, especialista em História e Cultura pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP e mestranda no programa de Pós-Graduação da FAU-USP, na linha de pesquisa História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo

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Teoria da restauração

Teoria da restauração

Cesare Brandi

2008

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