Num primeiro instante, ao olhar o índice do livro Arquitetura Antituberculose de André Tavares pode sentir-se uma vertigem. As designações dos seus capítulos como Álbum Fotográfico, Aromas balsâmicos à beira-mar, Encontros entre dois médicos, Rotas helioterapêuticas, Le tour d'Europe, A morte da soleira, Contágio disciplinar, Imagem e propaganda, A reconstrução do Homem, A higiene como virtude política, Medicina ortogonal ou Natureza e Betão Armado poderão surpreender num livro de arquitetura (pp.10-11). Contudo são eles que apontam, desde o início, um dos aspectos mais relevantes deste texto, sendo simultaneamente âncora para um entendimento amplo do que é arquitetura e dos processos onde se tece. Assim, a pertinência deste livro, para além do tema, fixa-se no modo como se faz (e comunica) investigação em arquitetura e, simultaneamente, em história da arquitetura. E porquê? Porque o caso de estudo de cada capítulo é apresentado como uma narrativa dedicada a um tema, configurando, no seu conjunto, uma visão panorâmica, rica de sentidos e de pontes entre saberes.
Este livro trata o período de construção dos sanatórios para a tuberculose em Portugal e na Suíça, até à invenção dos antibióticos específicos. Ou seja, entre 1929 e o enceramento do "ciclo sanatorial", que se prolonga do final dos anos 50 até ao início dos anos 70 (pp.151-158). Este momento do combate à tuberculose centra a atenção nas qualidades do espaço construído, como fator capaz de regenerar os doentes, o que perspectiva o desejo de uma nova forma de vida numa sociedade mais saudável, com uma consciência moderna do corpo, da higiene e do habitar. Com estes aspectos o livro, apresenta-nos o "novelo" onde se viveu esta etapa da cura, entregando-se não só à reconstrução das arquiteturas e da história do seu estaleiro de obra, mas também a trazer-nos informação sobre a investigação médica da tuberculose e da helioterapia, o aparecimento de novos meios técnicos, o debate do eugenismo, a troca pessoal de experiências, a cumplicidade entre turismo e saúde, as rotas das viagens como retrato do ambiente físico e social destes movimentos (pp. 28-49), etc., não como meras curiosidades mas como fatores de uma "renovação moderna", em curso, das mentalidades e da prática construtiva (pp.19-25). Todos estes aspectos, decorrentes de uma pesquisa arquivística em Portugal e na Suíça realizada por André Tavares, abordam sistematicamente as interações da arquitetura com a luta contra a tuberculose, no plano técnico, social e cultural, promovidas pelos médicos Joaquim Ferreira Alves (1883-1944) e Auguste Rollier (1874-1954) e o arquiteto Francisco de Oliveira Ferreira (1884-1957).
A investigação agora apresentada, ao inscrever-se no desdobramento destas narrativas, contribui para uma releitura (crítica) das Histórias da Arquitetura moderna. Ao clarificar o papel da Clínica Heliântia de Francelos (1929) no seio da arquitetura portuguesa do século XX, por exemplo, este livro abre outras vias de conhecimento (não canônicas) sobre os processos de difusão e construção da arquitetura moderna (pp. 53-66). Quando ilumina os seus atores (praticamente ignorados) e marca as suas viagens no mapa da Europa, permite outras interpretações da construção da arquitetura moderna, para além das obras dos grandes mestres, que decifram o sentido e a importância na história desta outra arquitetura.
Para observar a importância deste estudo e das perspectivas que abre, para os processos de investigação e para o conhecimento da arquitetura do século XX, importa realçar que até aos anos 60 a historiografia da arquitetura apresentava o Movimento Moderno como uma sucessão coerente de obras e autores, e não como uma realização polissêmica e dispersa que era. Este entendimento de Moderno, centrado em Sigfried Giedion (1888-1968) co-fundador em 1928 dos CIAM (Congrès Internationaux d'Architecture Moderne), defendia a transformação da sociedade pela ação da "nova" arquitetura. Esta construção da História permitiu rejeitar, esquecer e desvalorizar processos arquitetônicos com outro entendimento de moderno (e com um peso efetivo na construção da cidade) que, ocorrendo no mesmo espaço e tempo, turvavam uma leitura "branca" da obra dos pioneiros do Movimento Moderno (1).
A reivindicação da complexidade do processo onde a arquitetura se tece permitiu, desde o final da década de 60, pôs fim a uma visão ortodoxa do moderno. A obra de André Tavares, ao estudar as trocas e os tráficos na construção terapêutica, observa e registra que os encomendadores, os arquitetos e as arquiteturas viajam, mergulhando, assim, num mar de influências que conduzem o projeto arquitetónico e a sua necessária hibridez (2).
Este livro está construído a partir destas outras narrativas. Descobre-as e defronta a construção de uma história da arquitetura do lado da complexidade, da sua diversidade cultural e semântica. Ao adotar esta posição, André Tavares está a afirmar não só o enredo dos argumentos em estudo mas, também, uma posição face ao mundo da arquitetura contemporânea, não se compadecendo com a volatilidade de algum do seu pensamento. Aqui caberia esclarecer, brevemente, que se está perante uma história/narrativa que reclama a sua operatividade no projeto, evidenciando um entendimento crítico da situação actual da arquitetura. Sabemos que desde a década de 70, a aceitação da ampliação e complexidade do território epistemológico da arquitetura esbarra numa posição não consensual (ver Tafuri versus Renato de Fusco): para uns é fundamental a separação de competências entre história e arquitetura, que permita impedir a instrumentalização do passado como garantia de resultados; para outros o estudo do passado é sempre um entendimento crítico da situação atual. A obra de André Tavares alia-se à segunda, o único estudo que o arquiteto faz ou lhe interessa, não como comemoração do passado, mas antes como forma de interpretar o presente (3).
A história da Arquitetura Antituberculose mostra-nos um lugar de cruzamentos de pessoas e ideias, políticas e estratégias, materiais e técnicas que constituem uma trama onde se constrói a arquitetura. A pluralidade de narrativas apresentadas nos diferentes capítulos não é somente consequência da abertura disciplinar a outros conhecimentos, mas também da indispensabilidade de os considerar, para além de complementares, como parte integrante do saber arquitetônico. Ou seja, a afirmação de um espaço de trabalho próprio da arquitetura, tal como a sociologia, antropologia, medicina ou engenharia… com quem necessariamente, ainda que não total nem hegemonicamente, partilha áreas de saber (4).
Os sanatórios e clínicas estudadas, ao serem a expressão das "trocas e tráficos na construção terapêutica entre Portugal e a Suíça" afirmam uma cumplicidade entre saberes e arquiteturas, o que permite deixar uma interrogação: e a arquitetura o que é que determina nas terapêuticas? Perante esta questão o livro é cauteloso, conduzindo-nos na descoberta do dispositivo espacial pela comunidade sanatorial como fator, não só de cura, mas também de reconstrução social do Homem. A hipótese de um determinismo espacial, na saúde, na cidade ou no doméstico é provocadora de acesos debates, tema que agora é (cautelosamente) deixado à porta de futura discussão (5).
O livro Arquitetura Antituberculose foi finalista dos prêmios FAD (Fomento de las Artes y del Diseño) 2006 na secção Pensamento e Crítica. A sua seleção para este prêmio Ibérico, instituído pela associação cultural e interdisciplinar Arquinfad, com um júri presidido por Manuel de Solà-Morales, e que distingue trabalhos nas categorias Arquitetura, Interiores, Intervenções Breves, Pensamento e Crítica e Cidade e Paisagem, vem reconhecer a importância deste trabalho para a releitura dos processos da arquitetura do século XX.
No campo da bibliografia da "arquitetura da saúde" esta obra apresenta aspectos inovadores pela forma como a investigação é conduzida e comunicada, acompanhada ainda por uma criteriosa seleção da documentação gráfica apresentada e do redesenho dos projetos de arquitetura dos edifícios estudados. No mesmo campo de investigação, e com idênticos atributos, no mesmo ano da sua publicação (2005) destaca-se Architecture et santé. Le temps du sanatorium en France et en Europe (6), onde as "machines de santé" são estudadas do século XIX até serem considerados estruturas obsoletas.
Para o estudo de uma obra, como salienta T. S. Eliot, os aspectos mais determinantes não residem na sua individualidade, mas no seu papel no conjunto da produção de um autor. Ou seja, quando uma obra ultrapassa o seu valor intrínseco sendo parte e contributo de uma produção, que se ergue ao longo do tempo e num contexto histórico. Serve esta observação para referir que o significado de Arquitetura Antituberculose ultrapassa os aspectos aqui referidos, inscrevendo-se numa contínua investigação, conduzida pelo o autor, das estruturas complexas da construção do Moderno. O livro Os Fantasmas de Serralves (Dafne, 2007), também de André Tavares, centrado em outro fenômeno arquitetônico (o processo da casa de Serralves, actualmente pertença da Fundação de Serralves), prossegue com a mesma curiosidade e metodologia o trabalho agora analisado, confirmando a ampliação do seu círculo interpretativo.
notas
1
Esta construção do moderno foi redutora. Mas foi igualmente eficaz e essencial. Sem esta redução da complexidade ou sem a eleição de arquiteturas-chave, a pretensão do desenho para todos (com maior racionalidade, eficácia e gratificação estética), de um International Style, não se teria constituído como um novo horizonte. A unidade de habitação-tipo, onde todos deveriam ser "iguais", não teria sido sonhada.
2
Jacques Gubler introduz a ideia da arquitetura que viaja, como permanência vital do processo de projeto e de criação arquitetônica, no prefácio ao livro em análise.
3
Como refere António Pizza, hoje, na prática, é difícil optar por uma única via, contudo os riscos são conhecidos devendo ser ponderados. PIZZA, Antonio, La Construcción del Pasado: Reflexiones sobre Historia, Arte y Arquitectura, Madrid, Celeste Ediciones, 2000; MATTOSO, José, A Escrita da História: Teoria e Métodos, (1988), Estampa, Lisboa, 1997
4
Nuno Portas salienta a necessidade de contrariar a persistência de uma "visão redutora ou academizante da matriz moderna que filtra outras entradas que conduzem à necessária semantização dos espaços". PORTAS, Nuno, "Deficit periférico", A&V Monografías de Arquitectura y Vivenda, nº47, 1994, p.2
5
HILLIER, Bill; BURDETT, Richard; PEPONIS, John; PENN, Alan, "Creating Life: Or, Does Architecture Determine Anything?", Architecture & Comportement, vol. 3, nº 3, Éditions de la Tour, Lausanne, 1987, p.233-250
6
CREMNITZER, Jean-Bernard, Architecture et santé. Le temps du sanatorium en France et en Europe, Picard, 2005, 161 p.
sobre o autor
Rui Jorge Garcia Ramos é arquiteto licenciado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP, 1986) e doutorado em Arquitetura pela mesma universidade com investigação, na área dos cultural studies, sobre arquitetura e projeto doméstico na primeira metade do século XX português. Atualmente é professor auxiliar de Projeto 3, no Mestrado Integrado, e no Programa de Doutoramento em Arquitetura da FAUP