Poucos arquitetos brasileiros possuem tantas obras saídas de sua prancheta como João Filgueiras Lima, o Lelé (2). Lelé é carioca de nascimento, radicado em Salvador e atuante em todo o país. Participou como protagonista de um dos momentos mais importantes do modernismo brasileiro, o nascimento de Brasília, projetando, construindo e colaborando com outros arquitetos, como Oscar Niemeyer. Ele foi capaz de desenvolver ao longo de sua carreira uma obra única, mesmo no contexto internacional, extremamente ligada a dois aspectos básicos da construção: o clima e a pré-fabricação.
O recém-formado João Filgueiras chegou ao árduo e vazio centro-oeste brasileiro ainda em 1957, ano de início das obras que transformariam aquele deserto na nova capital brasileira. O interesse por uma arquitetura industrializada surge desde este momento, quando Lelé vê-se obrigado a construir um sem número de acampamentos e barracões em madeira. Algo que, sem a devida racionalização, tomaria uma eternidade para ficar pronto. Desde o princípio, no entanto, a idéia de fazer arquitetura, mesmo na provisoriedade, acompanhou o ofício do arquiteto. Mesmo estas construções transitórias em madeira ganharam atenções especiais, revelando-se um primeiro campo de experimentações.
O próprio andamento do processo da construção de Brasília e o avanço nas obras dos edifícios, em contraposição ao tempo exíguo, motivaram nos profissionais ali atuantes um sentimento de praticidade:
“A equipe foi aumentando e, com ela, a necessidade de fazer as coisas andarem mais depressa, e o interesse pelos pré-fabricados. Na própria construção dos prédios principais seria preciso industrializar alguma coisa, aproveitar os elementos repetitivos para ganhar tempo na construção” (3).
Trabalhando junto ao antropólogo e educador Darcy Ribeiro na recém-nascida Universidade de Brasília, Lelé viaja pelo leste europeu para investigar a tecnologia de racionalização do uso do concreto armado, utilizada por países como União Soviética, Tchecoslováquia e Polônia, então dominados pelo regime socialista. Ao contrário dos Estados Unidos, cuja temática mais comum remetia ao uso do aço, o uso do concreto nestes países, em prol de uma política de construção em massa e recuperação da 2ª guerra, aproximava-os da nossa realidade, segundo Lelé, enquanto um país que não dominava a construção metálica.
A pré-fabricação
Destes primeiros contatos com a pré-fabricação nasceram algumas importantes experiências, como o Hospital de Taguatinga (1968) e as Secretarias do Centro Administrativo da Bahia (1973). Depois do concreto pré-moldado, foi a argamassa armada, ou ferro-cimento (4), um importante objeto de pesquisa de Lelé. Uma das experiências com este material deu-se em Salvador, em 1979, na urbanização e melhoria de algumas áreas de ocupação irregular nas encostas da cidade. Neste caso, o arquiteto utilizou as placas de argamassa armada (nata de cimento e malha de ferro) para desenvolver peças mais leves e flexíveis, que fossem fáceis de transportar e instalar, utilizando mão-de-obra de baixa especialização e permitindo uma obra menos invasiva dentro de um território complexo. Como parte de um programa da prefeitura chamado RENURB, Lelé desenvolveu o projeto de escadarias drenantes, contenções de encosta e canais de drenagem, além de uma série de outros equipamentos. Questões políticas levaram ao fim do programa, em 1982, mas ainda assim, ficou registrada a experiência de uma primeira fábrica para equipamentos comunitários, que Lelé pode testar a seguir em Abadiânia, uma pequena cidade do interior de Goiás.
Em 1980 inaugura-se em Brasília o primeiro hospital da Rede Sarah Kubitschek, um conjunto de hospitais públicos, hoje presentes em seis cidades brasileiras, e especializados na reabilitação de pessoas com problemas físico-motores. Conceitualmente, a integração entre arquitetura e medicina é especialmente potencializada nestas obras, tornando-os experiências importantíssimas na criação de espaços alternativos para terapia e cura de doentes.
As obras em Abadiânia tornaram-se protótipos para a experiência que seguiu, a Fábrica de Escolas e Equipamentos Urbanos do Rio de Janeiro. Junto à Darcy Ribeiro, na época vice-governador do Estado e amigo desde a colaboração na Universidade de Brasília, Lelé constrói uma série de edifícios usando peças pré-moldadas e um sistema de montagem altamente racionalizado. Além de rápido, o sistema revela-se útil na manutenção dos empregos da população local, que não perde os postos de trabalho, apesar da industrialização do processo, raciocínio que persiste até hoje. A rapidez e a engenhosidade das construções permitiu ao arquiteto construir mais de duzentas escolas em cerca de dois anos (1984-1986), sempre utilizando a máxima de que a repetição é a base de uma arquitetura industrializada viável.
Restauradas as condições político-administrativas favoráveis a seu trabalho, Lelé retorna a Salvador para um projeto mais abrangente que o primeiro. A Fábrica de Equipamentos Comunitários (FAEC), que esteve em atividade entre 1985 e 1989, deixou importantes marcas na cidade e atuou em diversos bairros através de elementos como bancos e contenções de jardim, passando pelas passarelas de pedestres até a construção de escolas e creches. Mais de quarenta escolas foram construídas com esta tecnologia. Outra contribuição importante da FAEC foi a sua colaboração com o projeto de revitalização do Centro Histórico, comandado por Lina Bo Bardi e que produziu alguns bons exemplos de intervenção, como a Casa do Benin e a Ladeira da Misericórdia.
A diversidade e complexidade dos elementos a serem construídos, transformaram a FAEC numa fábrica mais completa que as anteriores. Além do núcleo produtor das peças de argamassa armada, houve necessidade de criar um setor de metalurgia, responsável não só pelas fôrmas dos elementos de cimento e ferro, mas também pela estrutura de alguns edifícios e passarelas, tornando este um experimento pioneiro na utilização conjunta de aço e argamassa armada.
Arquitetura hospitalar
Ao final de quatro anos, em 1989, e com a troca de governo no comando do município, o projeto da FAEC foi descartado pelo prefeito que seguiria. O momento, no entanto, coincidiu com a vontade do governo federal de dar prosseguimento à Rede Sarah, criando hospitais satélites em outras cidades. Assim, Lelé e o médico Aloysio Campos da Paz decidem criar em Salvador não só uma unidade da rede, mas também um núcleo capaz de produzir industrialmente todos os elementos componentes deste modelo de edifício hospitalar. Surge assim o Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS), uma fantástica fábrica de prédios composta por diversos núcleos de produção: metalurgia pesada (estruturas), argamassa armada, marcenaria (utilizando apenas aglomerados e compensados), injeção de plástico e fibra de vidro, dentre outros. Até mesmo os equipamentos especiais de uso hospitalar, como macas e camas, são produzidos no núcleo de metalurgia leve, com desenho exclusivo de Lelé, no intuito de integrar espaço construído, equipamentos e usuários.
No projeto da unidade soteropolitana, Lelé aproveita o clima estável e quente da cidade para criar enfermarias ávidas pelas trocas com o ambiente externo, conectadas a solários e jardins, colírios aos olhos e magníficas entradas de luz ao edifício. A renovação do ar, preocupação ainda mais importante por conta da higiene exigida, faz-se através de um sistema de exaustão que puxa o ar do exterior e o injeta para o interior, forçando assim a ventilação. Uma verdadeira cidade no subsolo do prédio, na mesma projeção da construção térrea, é responsável por levar o vento a todos os cômodos. Apenas o centro cirúrgico possui climatização artificial, exigência de normas internacionais.
Ao hospital de Salvador, inaugurado em 1991, seguiram os de São Luís (1993), de Belo Horizonte (1997), Fortaleza (2001) e Rio de Janeiro (2002), além de mais uma unidade em Brasília, recém-inaugurada. Do CTRS, em Salvador, as peças são mandadas para todo o Brasil, seja para a manutenção dos edifícios existentes, seja para a construção de novas unidades, transformando esta fábrica num grande centro de produção e desenvolvimento de tecnologia.
Escolas
A experiência da FAEC em Salvador também será o lastro técnico para um outro projeto, a nível federal, chamado de Centro Integrados de Ensino (CIAC), de 1990. Projetado para ser construído nos quatro cantos do país (total de 5.000 unidades), o CIAC foi o projeto escolar mais intricado de Lelé. Chegou a empregar mais de duzentos tipos de peças diferentes, enquanto as primeiras escolas em Abadiânia não utilizavam mais do que vinte tipos de elementos. Com o impeachment do presidente na época, o projeto perdeu continuidade e apenas poucas unidades foram construídas seguindo fielmente o projeto original. Ainda assim, o modelo se mostra capaz de adaptar-se às mais diversas realidades geográficas, numa solução de rápida construção e grande eficácia.
O papel do arquiteto
A idéia de concretizar uma arquitetura mais humana, preenchida por luz e ventilação natural, além de racionalizada e economicamente viável, tornou a Rede Sarah um símbolo de boa arquitetura (e boa administração) em nosso tropical e carente Brasil. O Centro de Tecnologia fornece hoje peças não só para os hospitais da rede, mas também para outras obras como Escolas, Tribunais de Contas e Tribunais Eleitorais em todo o país, provando seu sucesso. A força das propostas de Lelé, capazes de romper a descontinuidade das políticas públicas, e penetrarem em grande parte de nosso território, mostra que a arquitetura pode, sim, ter sua parte num mundo e num Brasil melhor.
Mas é preciso quebrar a cabeça.
notas
1
Artigo publicado originalmente no número especial, dedicada ao Brasil, da revista suíça Tracés. EKERMAN, Sergio Kopinski. “Le oeuvre multiforme de Lelé“. Lausanne, Tracés, n° 15/16, ano 131, 17 agosto 2005, p. 26-28. O artigo de Renato Anelli, presente no volume, já foi publicado em Vitruvius. As partes deste número são os seguintes:
- GUERRA, Abilio. Arquitetura e Estado no Brasil. Arquitextos, São Paulo, n. 06.064, Vitruvius, set. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.064/420>.
- OLIVEIRA, Olivia de; BUTIKOFER, Serge. Uma viagem pela arquitetura brasileira. Arquitextos, São Paulo, n. 06.064, Vitruvius, set. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.064/421>.
- ANELLI, Renato Luiz Sobral. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educação em São Paulo. Arquitextos, São Paulo, n. 05.055, Vitruvius, dez. 2004 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.055/517>.
- ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. As quatro escolas do FDE em Campinas. Arquitextos, São Paulo, n. 06.064, Vitruvius, set. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.064/422>.
- EKERMAN, Sergio Kopinski. Um quebra-cabeça chamado Lelé. Arquitextos, São Paulo, n. 06.064, Vitruvius, set. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.064/423>.
- SALOMON, Maria Helena Röhe. Programa Favela-Bairro: construir cidade onde havia casa. O caso de Vila Canoa. Arquitextos, São Paulo, n. 06.064, Vitruvius, set. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.064/429>.
2
João da Gama Filgueiras Lima, Lelé, nascido em 10 de janeiro de 1932, no Rio de Janeiro é formado pela Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro em 1955. Iniciou sua carreira durante a construção de Brasília, onde teve participação ativa, colaborando diretamente com Oscar Niemeyer. Participou da implantação da Universidade de Brasília, onde lecionou e coordenou a Pós-Graduação. Notabilizou-se pelo trabalho com a arquitetura pré-fabricada, realizando diversas obras em diversas capitais como Brasília, Rio de Janeiro e Salvador, transformando-se num dos mais importantes arquitetos do Brasil. Desenvolveu o projeto da Rede Sarah de Hospitais em todo o país. Recebeu diversos prêmios em sua carreira, dentre eles o Grande Prêmio da Primeira Bienal de Arquitetura e Engenharia de Madrid pelo projeto da unidade do Sarah em Salvador. Recentemente, representou o Brasil na Bienal Internacional de Veneza, em 2000.
3
LIMA, João Filgueiras. O que é ser arquiteto. Em depoimento a Cynara Menezes. Rio de Janeiro, Record, 2004, p. 46.
4
“Os primeiros relatos sobre este material remontam ao final dos anos 1840, quando um engenheiro francês chamado Lambot começa a fazer pesquisas com a argamassa para construir embarcações. Desde que o concreto surgiu, a argamassa veio paralelamente, porque usa os mesmos ingredientes. Só que em vez de usar uma armação específica como o concreto, usa uma armação difusa, que torna o material mais homogêneo”. In LIMA, João Filgueiras. Op. cit., p. 55.
sobre o autor
Sergio Kopinski Ekerman, arquiteto e urbanista pela Universidade Federal da Bahia. Trabalha com o Arq. Paulo Ormindo de Azevedo e ensina na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia