O Chefe contou que a coisa vinha se materializando na cabeça dele havia um certo tempo.
E seu único interlocutor, de toda confiança, era eu. Mas – devo confessar – pensei que tudo não passava de uma brincadeira, mais uma maluquice dele.
Antes de continuar este relato, preciso me apresentar: podem me chamar de Ramires, sou um imigrante cubano naturalizado americano, agente do serviço secreto alocado na Presidência desde os tempos de Bush pai.
Pois W. Bush me disse que não era brincadeira, não: o maior sonho de todo presidente americano desde Kennedy era circular em Havana em um conversível, lembrando o passeio que Hitler fez de madrugada em Paris, incógnito, porém prodigiosamente filmado.
E completou: "Nós vamos a Havana, só eu e você. Vamos visitar o Fidel".
Foi uma loucura! Era um modorrento entardecer de sábado e de seu rancho no Texas, W. começou a dar ordens secretas, que eram encaradas como trotes ou invasões de hackers nos sistemas da Casa Branca, ao mesmo tempo em que eram captadas e reenviadas pelos serviços secretos de todo o mundo.
Para se assegurar de que não seria bloqueado ou interditado por seus próprios pares, George determinou que eu fizesse os primeiros contatos diretamente com a residência de Fidel, onde nossos agentes infiltrados que sempre cuidaram para que Castro não fosse envenenado, agora forneciam os sofisticados medicamentos que cancelaram por várias vezes as cerimônias fúnebres, já exaustivamente ensaiadas.
Minha maior surpresa foi a reação de Fidel: sentindo-se também abandonado, resolveu testar o que restou de sua capacidade de comando, e aceitou imediatamente as condições de Bush... Que eram, na verdade, condição nenhuma, agenda nenhuma, só os dois e mais uma pessoa acompanhando cada um deles, cada um com seu Ramires, sem duração definida... E que fosse logo, se possível na manhã seguinte, bem cedo.
As famílias Castro e Bush queriam muito se encontrar já de tempos atrás, pois sendo as que dominam países no mundo pelo maior período, devem na verdade sua quase perpetuidade uma à outra. Porém agora os ventos tanto para Bushs como para Castros estavam soprando em outras direções.
O que motivou mesmo Bush foi o descaso que vinha sentindo nos últimos meses, sentimento que se agravou com a campanha eleitoral e a crise econômica. Consciente da sua realidade, George não pensou em dar um grande passo para a humanidade, mas em fazer uma visita e bater um papo com o cara que ficou a vida toda do outro lado de um muro, hoje quase imaginário.
Tanto o Chefe quanto Castro, eu soube depois, não conseguiram dormir naquela noite. E, sem combinar, tiveram as mesmas atitudes com relação aos seus aliados, mesmo os mais próximos, como seus respectivos irmãos: não atenderam a nenhum telefonema e não responderam aos comunicados recebidos. As reações mais iradas (que ambos leram, empilharam e mostraram depois um ao outro), vieram dos "amigos íntimos" – como Chaves, que ameaçou cortar o fornecimento de petróleo; e o primeiro ministro inglês, que Bush esqueceu o nome, que prometeu retirar as tropas do Iraque, no dia seguinte.
Preocupado em não criar constrangimentos nem mal-entendidos durante a visita, Fidel pediu ao camarada chefe da propaganda estatal, que proibisse temporariamente as rádios de tocar a canção Guantanamera. E deu um jeito de deixar meia dúzia dos melhores cadilaques conversíveis de prontidão numa garagem discreta do Malecón – para o caso de um carburador engasgado ou uma ponta-de-eixo quebrada...
O Chefe, na saída, ainda se lembrou de passar no quarto e pegar um agasalho Nike no armário da casa de campo, que levou de presente para o cubano. Era uma gentileza, claro. Mas era também um recado sutil... A bem da verdade, ele sentia um desconforto muito grande toda vez que via as fotos de Fidel nos jornais e na tv, sempre com aquele jaleco Adidas.
Os dois foram rápidos, um na partida e o outro na recepção. Poucas horas depois do primeiro contato, o Air Force One, pousava no domingo, antes do amanhecer, em Havana, com uma compacta tripulação e somente dois passageiros.
O ponto alto do encontro, na opinião de todos, foi quando Castro contou a primeira piada sobre presidentes americanos e Cuba. Bush que ouvia piadas desse tipo, só que invertidas, contadas por seu irmão, desde o tempo em que governara a Flórida, retrucou rapidamente. E assim foram mais de vinte piadas para cada lado (muitas originalíssimas), numa seqüência impagável que só parou porque Fidel colocou a mão na barriga, temendo sofrer algo, de tanto rir.
Se dependesse de Fidel, o passeio de conversível incluiria uma parada no centro de Havana Vieja, para uma visita ao quarto de hotel onde Hemingway – que Fidel fazia questão de chamar de "o outro Ernesto, o de vocês" – viveu durante muitos anos. Mas o Chefe não demonstrou o menor interesse – e, cá entre nós, parece que também não entendeu a piada...
Educado, Fidel acompanhou Bush até o monumento em homenagem a John Lennon – mas não saiu do carro. O Chefe deixou um buquê de rosas brancas junto à estátua, e voltou assobiando para o conversível.
Vários charutos depois, ao se despediram com um forte abraço, verificaram que dos recados e advertências que receberam do mundo todo, apenas um influente líder, não se manifestara. Pensaram um pouco e – neste guardanapo de papel da base militar onde o Air Force One já esquentava as turbinas – redigiram a duas mãos o único registro sobre o encontro:
"Bin Laden, join us: give peace a chance!"
sobre os autores
Michel Gorski é arquiteto e co-editor de Arquiteturismo
Valdir Zwetsch é jornalista