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architexts ISSN 1809-6298


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LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Cultura e habitação: revitalizando a área portuária do Rio de Janeiro. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 019.07, Vitruvius, dez. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.019/825>.

A partir do estudo para a revitalização da área portuária do Rio de Janeiro – pesquisa realizada no Laboratório de Pesquisas Urbano-Arquitetônicas do Instituto Metodista Bennett –, este artigo discute, analisa e apresenta uma série de propostas para devolver à cidade uma área há mais de vinte anos em estado de degradação, na medida em que as atividades portuárias se modernizaram.

A Área Portuária do Rio de Janeiro, próxima ao centro histórico e empresarial mantém ainda uma tipologia peculiar nos sobrados, casarões, e nos grandes galpões do início da industrialização, apresentando-se como uma área degradada, em lastimável estado de conservação. A necessidade de encontrar uma solução urbanística que integrasse essas áreas marginalizadas à vida útil e econômica da cidade – promovendo seu desenvolvimento sem expulsar os atuais habitantes-, motivou o Projeto de Revitalização que ora divulgamos.

Conciliando teorias urbanas culturalistas e progressistas, o projeto preserva o tecido antigo das áreas mais elevadas e anteriores a sucessivos aterros, destinando-o basicamente ao uso residencial com algum comércio nos pavimentos térreos. Paralelamente, tentou-se encontrar soluções viáveis para as áreas aterradas no início do século XX hoje em desuso pela modernização das atividades portuárias. Como geralmente ocorre quando uma área é utilizada por indústrias que se deterioram, a área adjacente ao porto do Rio de Janeiro transformou-se num bairro de passagem, fato acentuado desde que, nos anos 70, uma via expressa denominada Elevado Juscelino Kubitschek (avenida Perimetral), eliminou a relação do tecido urbano com a frente marítima. Ocorre, entretanto, que além de apresentar uma paisagem privilegiada da baía de Guanabara, a região oferece grandes possibilidades de espaços públicos para a população residente e para a cidade como um todo.

Cultura e Habitação foi o binômio selecionado como estratégia para os novos usos que deverão substituir o antigo uso industrial dos galpões abandonados, os vazios urbanos da rede ferroviária e os inúmeros sobrados ainda recuperáveis, muitos dos quais já invadidos. Existem estudos do governo municipal para acelerar a ocupação de imóveis ociosos com moradias nas áreas centrais do Rio de Janeiro, inclusive na área portuária. Contudo, é necessário transformar projetos em realidade e, nesse sentido, fizemos propostas especificando quais os imóveis a serem reciclados. Ao lado do uso residencial, o uso cultural alavancará o desenvolvimento da área, pois o previu-se a ocupação dos antigos galpões fronteiros ao mar com restaurantes, teatros, antiquários, centros de design e moda, escolas técnicas e universidades.

Após a investigação teórica sobre as possíveis metodologias de intervenção, e a Análise Crítica dos Planos Existentes Para a Área, desde 1986, com base nos fundamentos de Jane Jacobs, Kevin Lynch e Patrick Geddes, foram efetuadas pesquisas que integram o diagnóstico da área de estudo. Através de análises comparativas entre projetos análogos em outras cidades e as possibilidades de adequação à realidade brasileira, foi elaborada uma proposta para as áreas públicas e privadas desta extensa região carioca em pleno processo de deterioração e desuso. O estudo sobre as experiências já implantadas permitiu verificar quais as características de projeto e de gestão experimentadas com êxito e sem a remoção da população moradora. Na primeira etapa da pesquisa foram investigados artigos e teses sobre as revitalizações dos portos de Boston, Baltimore, South Seaport (Nova York), Porto Madero (Buenos Aires), Expo’98 (Lisboa), Barcelona, Recife, Belém e Docklands (Londres).

Identificou-se a necessidade urgente de um plano de ação social quanto à população sem recursos e uma total conivência dos proprietários da área- nem sempre moradores –, para que concordem com as obras de restauro, reciclagem e renovação de uso. Além disto, será fundamental que esses usos sejam multifuncionais, ou seja, é insuficiente transformar a área em centro de serviços sem que haja também residências, pequenos comércios e incentivo ao artesanato mais característico da região. Nada mais ineficaz do que uma excelente infra-estrutura de transportes, esgoto, abastecimento de água, iluminação pública, coleta de lixo, escolas e hospitais, se a cidade, à noite, se torna fantasmagórica e vazia, mero cenário para a exibição de um patrimônio iluminado.

Áreas mais antigas e elevadas: um reduto habitacional

No que tange às áreas onde o tecido é homogêneo, na parte alta e onde as antigas construções estão ainda em grande parte vinculadas ao uso residencial (figura 1), o projeto prevê a reabilitação das habitações existentes através de financiamentos especiais da Caixa Econômica Federal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Entendemos que a identidade cultural de um povo faz-se através da manutenção de suas referências, sendo a arquitetura, a morfologia urbana e as tradições partilhadas pela população residente, os melhores referenciais de um grupo social (2). Neste sentido, os habitantes da área a ser revitalizada devem permanecer em seus habitats, e as áreas elevadas poderão preservar a fisionomia que reflete a antiga ocupação. (figura 2)

É evidente que requalificando os espaços públicos, como ruas, avenidas, largos e praças, melhorando a infra-estrutura e iluminando locais de encontro dos residentes, já se inicia um processo de valorização da área. Mas o perigo maior ocorre quando esta mesma valorização causa o aumento imediato dos aluguéis e dos impostos, expulsando a população residente, muitas vezes constituída de famílias tradicionais de antigos trabalhadores que acabam buscando abrigo na periferia ou nos morros da cidade, para não arcar com os novos ônus (3). Os planos de ações urbanísticas e sociais devem ser acionados nos órgãos competentes, no sentido de não expulsar a população, mas, paralelamente, alcançar a reabilitação dos imóveis.

A experiência portuguesa da reabilitação dos bairros de Alfama, Mouraria, Bairro Alto e Mandragoa – áreas de entorno do centro de Lisboa –, bem como a recuperação da zona portuária da cidade do Porto, podem ser citadas como exemplo de eficácia na recuperação do patrimônio edificado com a permanência da população residente, através de mecanismos financeiros e sociais atrelados às técnicas de restauro das edificações e à requalificação dos espaços públicos (4).

Já o governo francês também tem conseguido excelentes resultados em vários centros históricos, graças à montagem de um esquema metodológico de intervenções em Setores Preservados ou em Zonas de Proteção do Patrimônio Arquitetural, Urbano e Paisagístico (5). Os aspectos arquitetônicos, de infraestrutura e de habitabilidade são acompanhados por técnicos do governo, ou por este contratados, mas a base do processo de reabilitação é o sistema de financiamento concedido aos proprietários que, através de organismos para a melhoria da habitação, executam as obras, valorizando seu patrimônio, porém obrigando-se a manter os aluguéis ditos sociais, após as obras de reabilitação.

O antigo porto e a reabilitação dos galpões: cultura e habitação

O projeto incentiva a reabilitação e reestruturação dos espaços sub-utilizados que se encontram hoje em deterioração e, que, apesar de distantes poucos metros do mar, não têm qualquer ligação com a paisagem que se esconde atrás do extenso viaduto e dos antigos armazéns desativados. Como intervir urbanisticamente na região trazendo benefícios econômicos não só para os residentes do bairro, porém para toda a cidade que se vê privada de uma infra-estrutura de lazer e convívio, em especial nos bairros centrais e da zona norte da cidade? Como equacionar a necessária renovação correspondente à área do aterro com questões viárias que abrangem espaços mais amplos do que o universo municipal? Como minimizar as difíceis questões fundiárias da área que já não atende mais às necessidades do Porto do Rio?

Em síntese, a filosofia do projeto foi revitalizar a área portuária física, econômica e socialmente, reintegrar a orla marítima ao tecido urbano da área portuária, reabilitar e re-estruturar espaços sub-utilizados em processo de deterioração, reduzir o impacto do viaduto existente, aumentar a consciência ecológica dos habitantes e visitantes implantando parques e praças que serão oferecidos à população, conforme demanda constatada nos questionários aplicados.

A metodologia do trabalho constou da análise de todas as propostas já realizadas, da delimitação de nova Área de Intervenção, de estudos diversos sobre novas possibilidades de sistema viário com meios de transportes integrados, da identificação das áreas a renovar, das propostas preliminares e da elaboração de novos cenários urbanos. Na segunda etapa definiu-se o aproveitamento de áreas e edificações a partir do perfil da população residente e usuária, através de mecanismos que permitirão uma verdadeira revitalização do espaço.

O maior desafio foi estabelecer uma proposta viável para retirar o tráfego da avenida Rodrigues Alves, artéria de intensa circulação de ônibus municipais e interestaduais que se dirigem à praça Mauá, no centro da cidade. Foram criados binários articulando-se os vários modais: ônibus, veículo sobre trilhos e barcas. A rodoviária será interligada com os demais terminais de transportes da cidade. (figura 3) O elevado, reminiscência do período desenvolvimentista, receberá um tratamento adequado, sobre a pista e sob a mesma, criando uma ambiência mais convidativa ao transeunte. (figura 4)

A área delimitada – estendendo-se do bairro da Saúde ao Santo Cristo – apresenta muitos imóveis abandonados, vazios urbanos e imóveis em ruína, motivo pelo qual a equipe delimitou uma área mais extensa para o projeto, extrapolando os limites da Área de Especial Interesse Urbanístico. Observou-se a urgente necessidade de intervenção nos galpões sub-utilizados da companhia DOCAS e da integração de um novo sistema viário, retirando-se o tráfego pesado da Avenida Rodrigues Alves e articulando-se os vários tipos de transporte, inclusive o VLT – Veículo Leve sobre Trilhos. Paralelamente, foram atribuídos aos terrenos a renovar parâmetros urbanísticos tais como: altura máxima das edificações, uso do solo, taxa de ocupação. O projeto global manteve a meta da transformação da área portuária em local aprazível tanto para residências quanto para comércios, indústrias leves e serviços, bem servido de áreas verdes e de atrativos.

A melhoria da infra-estrutura existente e a requalificação dos espaços públicos aumentarão os índices de qualidade de vida dos habitantes da Saúde, Gamboa e do Santo Cristo, permitindo a inserção de novos extratos sociais sem contudo expulsar a população local. A expansão das atividades econômicas, no sentido de auto sustentabilidade da área. prevê geração de empregos, em especial pela implantação de um pólo de produção de softwares. Os galpões tombados e reciclados acrescidos da grande extensão de áreas verdes projetadas ao longo do antigo cais, transformarão a área pela implantação de atividades turísticas, alavancando o desenvolvimento econômico da cidade, e permitindo a visibilidade para o mar.

No que tange à valorização físico-territorial do ambiente, foram projetados: novos P.A.Ls , com o redesenho de espaços públicos e implantação de ciclovias. A reabilitação de conjuntos de valor cultural, reciclados com usos habitacionais, serviços ou comércio, nova proposta para a Praça Jornal do Comércio, a implantação o Centro de Convenções, a Marina e o Aquário Público, o redesenho da Praça Mauá, novos complexos habitacionais (no antigo terreno do Moinho Inglês, Enseada da Gamboa, Galpão da Barão de Teffé), galpões 1, 2 3, 4, 5 e 6 com shoppings, cafés-concerto, casas de shows, teatros e centros de artes. A interligação de nodais inclui a reciclagem do Touring Club como Estação Turística de Passageiros, a implantação de Estação de catamarãs para Niterói, São Gonçalo e ilha do Governador próximo à Rodoviária Novo Rio além de um mono-rail interligando a Rodoviária à Estação da Leopoldina. Completa a integração a construção de duas linhas de VLT – Veículo Leve sobre Trilhos, uma partindo da Rodoviária Novo Rio em direção ao Aeroporto Santos Dumont e outra em direção à Central do Brasil.

notas

1
Este trabalho contou com a colaboração Ana Gabriella Steinhäuser, Filippe Cabral e Sabrina Guimarães e integra estudos do projeto de pesquisa A Área Portuária do Rio de Janeiro: uma proposta de revitalização, desenvolvida com apoio da FAPERJ e coordenada pela Professora arquiteta Evelyn Furquim Werneck Lima com a participação dos Professores arquitetos Luiz Neves e Mara de Souza.

2
Cf. RONCAYOLO, Marcel. LA Ville et ses Territoires. Gallimard, 1992

3
Cf. LIMA, Evelyn F.W. Avenida Presidente Vargas. Rio de Janeiro: SMCTE/DGDI, 1990.

4
Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana. Lisboa, 1995.

5
Paris-Projet – Centres Anciens, 1995.

sobre o autor

Evelyn Furquim Werneck Lima é coordenadora da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto Bennett do Rio de Janeiro.

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