Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo nos fala a respeito da importância da atuação do arquiteto Sérgio Bernardes. O autor conta a história da vida profissional do arquiteto, situando-o no panorama da arquitetura brasileira e faz uma análise de sua carreira, suas obras e seus ideais

english
Lauro Cavalcanti analyses the importance of an architect as Sergio Bernardes. He describes his carrer and notes his place within brazilian architecture panorama

español
Lauro Cavalcanti describe la importancia de la actuación de Sergio Bernardes. Cuenta la historia de su vida profesional, y lo ubica en el panorama de la arquitectura brasileña


how to quote

CAVALCANTI, Lauro. A importância de Sér(gio) Bernardes. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 111.00, Vitruvius, ago. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.111/31>.

Sérgio Bernardes, nascido em 1919, era dezessete anos mais novo que Lucio Costa e doze anos mais jovem que Niemeyer, destacando-se como o melhor arquiteto da segunda geração de modernistas cariocas. Bernardes adotou e desenvolveu a gramática do estilo em uma linguagem absolutamente pessoal que misturava influências até então consideradas antagônicas. A arquitetura de Bernardes partia do interior para o exterior, privilegiava os detalhes e adotava uma postura minimalista em relação à distribuição espacial, imperando o ângulo reto em suas construções da fase inicial. Diversamente dos demais arquitetos cariocas – cuja linguagem partiu, inicialmente, de um diálogo com a tradição francesa de Le Corbusier – a arquitetura de Bernardes guardava, em alguns aspectos, uma relação mais estreita com a concepção racional e minimalista de Mies van der Rohe. As casas que realizou nos anos cinqüenta, estabeleciam, contudo, um constante diálogo com a natureza circundante, postura oposta àquela de Rohe, que deixava a paisagem atravessar a arquitetura e vidro, como na casa Farnsworth, ou as isolavas do mundo imperfeito, abrindo-as, apenas, para pátios internos. A troca visual com a paisagem, o uso de materiais sem revestimento algum – de modo a explorar suas texturas naturais –, assim como uma dominância horizontal em suas composições, o aproximaria da linguagem orgânica que tinha no americano Frank Lloyd Wright o seu maior expoente. Bernardes criou uma arquitetura própria, concomitantemente orgânica e racional; mesclando posturas díspares, ajudou a descaracterizar e tornar ineficaz tal divisão simplista para o entendimento da produção arquitetônica.

Outro ponto singulariza Bernardes em relação a seus antecessores brasileiros: a implantação do estilo moderno em nosso país teve, sobretudo pela participação de Lucio Costa, a singularidade de estabelecer uma dialética entre as construções pretéritas e a criação de formas revolucionárias para o futuro. Quando Bernardes começa a atuar com maior vigor, essa ligação já estava feita e a arquitetura moderna havia se estabelecido como um estágio evolutivo da produção cultural. Os vetores apontavam apenas para a frente e na direção da busca de soluções inovadoras. Sérgio Bernardes funda, então, uma linguagem específica e inconfundível que, sem descartar o concreto armado, explora as potencialidades de estruturas metálicas; em algumas composições antecipou uma linguagem que acentuava as sensações estéticas de peso estrutural. A obra de Bernardes sensibilizou importantes críticos internacionais e dificultou a homogeneização redutora que se tinha a respeito de uma escola carioca na qual preponderariam atributos de leveza e linhas sinuosas.

Uma casa nas nuvens

Petrópolis era o local de veraneio mais seleto das elites cariocas e foi um dos principais centros das construções de Sérgio Bernardes, na primeira fase da sua carreira – verdadeiras jóias arquitetônicas em termos de interação com a paisagem, detalhes construtivos e inventivas soluções formais e de espaço. A obra-prima desse extraordinário período foi a casa em Samambaia criada para Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop.

Lota não era uma cliente qualquer. Livre, culta, rica, intelectual não-esquerdista com sofisticação européia e simpatia norte-americana, uma postura pessoal irreverente, personalidade complexa e sexualidade heterodoxa. Amiga pessoal dos principais intelectuais brasileiros da época, era ligada ao grupo que funda o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, auxilia na constituição de seu acervo e, sobretudo, no contacto com Happy e Nelson Rockfeller, fundamentais no processo inicial de criação do museu. Sua companheira, a poeta Elizabeth Bishop, gostava da serra com o mesmo vigor e paixão com que estranhara, profundamente, o clima tropical e o ambiente do Rio de Janeiro. Lota comprara um terreno em um dos pontos mais altos de Petrópolis, um verdadeiro recanto das águias. Perfeito para uma casa isolada, mas aberta para personalidades e intelectuais. Era o modelo do lar de Gertrud Stein/Alice B. Tolklas, abrigo da geração perdida na Paris do início do século vinte, que encontrava nova versão e espaço naquele ponto da Serra do Mar. Com vista imponente, o terreno dominava as montanhas e o vale. Por vezes envolto por nuvens, apenas alguns cumes de montanhas surgiam da massa de neblina. Queria que a casa aproveitasse ao máximo o panorama e demonstrasse o mesmo arrojo que a paisagem.

Sérgio Bernardes, com apenas 32 anos, elabora um dos mais radicais projetos de residência moderna. Um telhado de alumínio ondulado repousa sobre uma treliça metálica e finos pilares de aço, sobrevoando e protegendo a construção, que alterna espaços abertos e fechados. Planos de vidro, tijolos e pedra organizam os espaços: numa das extremidades estava o apartamento íntimo das moradoras, com nível um pouco mais elevado que os demais. Uma longa e elegante galeria em rampa de dois trechos serve como varanda e conduz ao estar social e aos aposentos dos inúmeros e constantes hóspedes, situados na outra extremidade, de modo a garantir-lhes o máximo conforto e privacidade. Visitas que incluíam, além daqueles amigos intelectuais já citados, estrangeiros ilustres que visitavam o Brasil, como o poeta Robert Lowell, Alexander Calder, Monroe Wheeler e Aldous Huxley.

A casa, aberta para os amigos e para a natureza foi edificada ao longo de três longos anos, devido ao pioneirismo de muitos de seus materiais e o esmero dos acabamentos. As treliças, por exemplo, foram montadas no canteiro de obras a partir da dobragem de longarinas de vergalhões de aço usualmente empregados como estrutura interna das estruturas de concreto armado. Os vergalhões foram soldados em “zig-zag”, entre as compridas peças laterais. No acabamento final essas últimas foram pintadas de preto enquanto os trechos intermediários, em ”v”, eram brancos.

A casa obteve o prêmio para obras de arquitetos abaixo de 40 anos na II Bienal de São Paulo, conferido por júri ilustre integrado por Alvar Aalto, Walter Gropius e Ernest Rodger. Esse não foi, contudo, o único prêmio a contemplar a casa e seus habitantes. Elizabeth Bishop foi agraciada, em 1955 com o Pulitzer de Poesia, em reconhecimento a seu livro Poems: North & South – A Cold Spring. Escrito em Samambaia, tinha entre seus poemas um dedicado à própria morada, a “Canção para a estação das chuvas” que assim terminava: “o vapor / escala a vegetação espessa / sem esforço, volta-se / e envolve ambas, /casa e rocha, / numa nuvem particular” (2).

Essa “residência-galpão”, embora ainda artesanal, foi o primeiro experimento consistente do uso de estruturas metálicas no Brasil, prenunciando um fértil caminho que seria desenvolvido por Bernardes nos anos que se seguiram. A sobriedade e economia de suas formas retas e planos abertos incorporava a paisagem e a rusticidade dos materiais locais.

A consolidação da carreira

Em 1954 obteve, com o projeto da casa de Jadir de Souza, o prêmio da Trienal de Veneza e recebeu o convite da Companhia Siderúrgica Nacional para realizar, no bojo das comemorações dos 400 anos de São Paulo, um pavilhão com sustentação em aço.

No projeto paulistano, Bernardes fez um verdadeiro manifesto das possibilidades oferecidas pela estrutura metálica, concebendo, em cima de um curso d’água, o prédio que abrigava um pavilhão suspenso entre duas pontes. A planta ortogonal possuía uma concisão radical que contrastava com a forma trapezoidal da complexa estrutura e com a curvatura da cobertura atirantada. A construção atraiu grande polêmica: uns achavam-no similar a formas tradicionais orientais, outros sublinhavam sua leveza e elegância futurista. Todos, entretanto, concordavam que Bernardes sugeria a promessa de uma poética arquitetônica diversa daquela produzida no Brasil até então.

Sérgio Bernardes, ocupado com seu escritório e desentusiasmado com a transferência da capital, foi dos poucos arquitetos de prestígio a não participar do concurso para Brasília (3). O ano de 1958 marca seu projeto para a Exposição Internacional em Bruxelas, devotada a antevisões do futuro.

Feiras foram sempre eventos de demonstração de novas tecnologias e especulação das perspectivas futuras. No caso daquela de Bruxelas não era diferente. Em 1958, entusiasmados com a conquista do espaço sideral e as descobertas nucleares, o átomo foi escolhido como símbolo e construído um enorme objeto com esferas coloridas que pairava sobre o espaço da Feira. Não era nada bom o lote reservado para o Pavilhão Brasileiro. No final do terreno, inclinado e, ainda por cima, vários metros abaixo dos outros participantes, que incluíam um “poema eletrônico” desenhado por Le Corbusier para a Phillips.

O tema do Pavilhão era “O Brasil constrói uma civilização ocidental nos trópicos”, expresso através de mostra sobre a pluralidade de nossa cultura, com destaque para fotos e maquetes de excelentes prédios modernos. Ciente da possibilidade de o visitante jamais descobri-lo, enterrado na ribanceira, Bernardes decide construir um enorme caminho vermelho, por ele apelidado “arrasta-pé”, que, transformado em rampa, induz e conduz o visitante diretamente ao interior da construção. Descia-se no pavilhão através desse passeio arquitetônico de uma volta e meia ao redor do jardim de Roberto Burle-Marx. A estrutura do prédio era, a um só tempo, engenhosa e simples: uma cobertura curva pendurada entre 4 esguias torres de metal. Treliças na borda maior transferiam parte de sua carga para finos e altos pilares de metal. A área coberta, sem nenhuma coluna interna, abrangia área de 2400 metros quadrados. Perguntado sobre o significado da obra, arquiteto dizia, divertido, que a fina cobertura era “a mão de Deus pousada sobre o Brasil”. As paredes externas eram baixas, de modo a permitir a entrada de luz e, sobretudo, evidenciar o seu total descompromisso com a sustentação do prédio. O nome Brasil – grafado em Português, em elegantes letras do ferro grafite, mesma cor das estruturas metálicas – sobressaía no tom creme da fachada. Em dias sem chuva pairava, acima da construção, um enorme balão de gás, com 7 metros de diâmetro, do mesmo vermelho do caminho e da rampa. Quando fazia muito frio ou chovia o balão descia, através de uma estrutura cilíndrica no centro do Pavilhão, preenchendo a abertura circular da cobertura. No caso de precipitações a água caía, domesticada nas bordas da esfera, acumulando-se no pequeno lago previsto no centro do jardim interno. O Pavilhão de Bruxelas, infelizmente demolido pouco depois do evento, foi um dos mais belos exemplares da arquitetura moderna brasileira. Bernardes ali testou, exemplarmente, as possibilidades estruturais de seu tempo, assim como adicionou à arquitetura preciosas funções de comunicação visual. Obteve o reconhecimento de vários prêmios no evento e valeu ao arquiteto a condecoração como “cavaleiro da Coroa Belga” (4).

Em 1959 Bernardes concebe o projeto Casa Alta, condomínio de luxo no Rio de Janeiro. A idéia central era fornecer ao morador a possibilidade de configurar o espaço de seu apartamento, escolhendo e localizando suas divisões internas. Desse modo, uma unidade de 300 metros quadrados poderia ser um loft ou ter de 1 a 5 quartos. Partiu Bernardes do princípio que apenas os elementos de circulação vertical –escadas e elevadores- e os cômodos que possuíam instalações de água e gás necessitavam ter sua localização pré-definida no início da obra. As demais paredes divisórias podiam ser determinadas pelas necessidades específicas dos habitantes que teriam, caso assim o desejassem, a assistência dos arquitetos na feitura da planta personalizada. Agradava a Bernardes, também, o uso de divisórias leves e móveis, como aquelas das plantas-livres dos escritórios, de modo que o espaço pudesse mudar sem necessidade de grandes obras.

Entusiasmado com a bem-sucedida experiência do Casa Alta, Bernardes resolve ir além no seu conceito de mobilidade e flexibilidade das unidades verticais de habitação. Concebeu o projeto do “Apartamento/Elevador”, com o qual pensava combater a monotonia de se ter sempre a mesma vista em cada apartamento. Idealiza um prédio na encosta – localizado, hipotéticamente, em Santa Tereza- no qual o elemento fixo é a plataforma de entrada, acessada através de ponte que a ligaria à rua. Propunha inverter o sistema de um elevador nos conduzir ao andar das unidades. No “Apartamento/Elevador” o morador ou habitante apertaria um botão que “chamaria” o apartamento, que se moveria lentamente para o nível do sagüão. Este plano expressava o desejo de aplicação da tecnologia a favor da anticonvencionalidade, tendência que dominaria, cada vez mais, o futuro de seu trabalho (5).

Nos anos sessenta a produção de jóias arquitetônicas não diminuiu seu ritmo na prancheta de Bernardes: alguns de seus melhores projetos de residências e proposta de um aeroporto com uma proposta inovadora, no qual o único elemento acima da pista de aterrisagem e decolagem era a torre de controle aéreo. Inspirado na distribuição espacial dos porta-aviões, Bernardes situou o terminal de passageiros, o estacionamento, os espaços de manutenção, carga e descarga, assim como todos demais serviços abaixo do nível do solo. Apesar de ser um verdadeiro ovo de Colombo, em termos de praticidade e segurança, os militares da Aeronáutica, responsáveis por aprovar as propostas de aeroportos, torceram-lhe o nariz e vetaram o seu plano.

O designer

Sérgio Bernardes estendeu os limites de sua atuação projetual para domínios que pertenceriam ao desenho industrial. A prática sempre foi aliada forte de Bernardes que se formou apenas em 1948, na Faculdade de Arquitetura do Brasil, com vinte e nove anos de idade e já considerável atuação profissional. Aos dezesseis anos, em 1934, ingressou em curso de pilotagem e acrobacia de aviões no aeroclube de Manguinhos/RJ. Nos anos 1950s adquiriu um monomotor que usava para lazer e trabalho, fazendo-o conhecer os rincões mais afastados do Brasil. No rastro de sua experiência de piloto, projetou um planador, batizado de “avião gaivota”, um amálgama daqueles brinquedos em papel com os modelos de planadores existentes. No relato dos especialistas, seu invento era impecável, em termos de elegância e aerodinâmica.

Aos 17 anos, Bernardes participava de corridas pelas avenidas do Rio. A paixão por automóveis de corrida fez com que adquirisse uma Ferrari com o prêmio obtido na Trienal de Veneza de 1954. Como um herói de Ernest Hemingway, Bernardes prolongou a sua estada na Europa, participando de algumas corridas. O amor por carros e a experiência de um acidente fizeram-no refletir sobre a estrutura da carroceria. Percebeu que a resistência do metal duro ao impacto fazia piorar o choque e as conseqüências danosas para seus ocupantes. Pensava, também que a estrutura dos animais e dos homens estava preparada para resistir a impactos compatíveis à velocidade que estes podiam imprimir. A caixa torácica não era completamente rígida: as costelas se retraíam e voltavam à posição normal para amenizar a força do choque. Movimento que se tornava inútil, quando a velocidade era de escala muito maior, como no caso dos inventos criados pelo homem. Pensou na hipótese de um carro de borracha e, a seguir em carroceria que se retrairia quando submetida a um choque. Seguindo o modelo da estrutura óssea, a carroceria apresentaria retração proporcional ao impacto, nos moldes da contração protetora da caixa de costelas dos seres vivos. Retração calculada, também, para não ultrapassar os limites da cabine do automóvel. Desenhou formas novas para o carro, buscando, também, encontrar linhas aerodinâmicas de modo a oferecer menor resistência ao ar e, em conseqüência, alcançar maior velocidade. Preocupou-se em alongar a frente para obter maior distância entre o motor e os lugares do piloto e de seu acompanhante, aumentando, assim, a segurança. Concebeu aquilo que batizou de “carro mole”, bonito e um pouco estranho para os anos 1960s: a sua forma é assombrosamente parecida com o modelo “Picasso” que a Citroën lançaria cerca de quarenta anos depois. Testado em pista, a sua performance era excelente e o gasto de combustível para lá de razoável. Em 1963 foi construído um protótipo na Escola de Ulm, com material emborrachado lexan, um policarbonato produzido pela Bayer e apresentado, com boa receptividade, na Feira de Berlim de 1968. O princípio geral do carro mole estava certo e é aquele adotado em todos os automóveis contemporâneos: a lataria se contrai feito uma sanfona, ao invés de resistir, o que aumentaria a violência da colisão.

Bernardes costumava pedalar. Pensava que era um exercício bastante incompleto, uma vez que só acionava os músculos dos membros inferiores. Concebe a Biocleta, movida através do esforço concomitante de pés e mãos. A posição do biociclista não era a convencional, sentado. A pessoa ficava de bruços, apoiada no abdômen e podia acionar o movimento com pés e mãos ou alternar os esforços entre os membro inferiores e superiores. Excelente para atletas, o evidente desconforto da posição inviabilizou a sua manufatura comercial.

A cadeira era, para Bernardes, um objeto melancólico. Isto porque, desocupada, parecia estar sempre à espera de alguém para completá-la. O arquiteto se compadeceu dessa forma à espera de complemento e decidiu desenhar uma cadeira que formasse um objeto pleno, mesmo quando vaga. Nasceu, assim, a cadeira-rampa. Era composta de dois cilindros de espuma, um no local do assento e outro na posição de encosto. Eram solidarizados por estrutura lateral de madeira e um tripé que fechava a estrutura. Uma “rampa”, com recheio de material sintético e revestimento de tecido, ficava esticada, por molas, nos limites dos dois cilindros, qual esteira de trator. A rampa cedia apenas quando alguém sentava, compondo uma confortável poltrona que, além de fornecer apoio no assento e nas costas, dava sustentação à toda extensão da coluna vertebral. A junção de várias poltronas ensejou o natural aparecimento do “sofá-rampa”. Esses móveis eram comercializados pelo próprio escritório do arquiteto, com boa aceitação. Sucesso mais que justo para um objeto que é a um só tempo original, confortável, bonito e surpreendente.

Bernardes pensava, igualmente, que os apartamentos deviam ser vendidos de acordo com a mesma concepção de um objeto de amplo consumo, como os automóveis. A pessoa poderia adquirir o básico e ir, à medida de seus desejos e recursos, completando a moradia com acessórios como varandas, novos quartos, janelas, treliças, edículas etc. Essa concepção permitiria baratear, significativamente, o preço básico do imóvel, além de fornecer ao morador perspectivas de planejar o investimento em melhorias cuja instalação se daria por meio de encaixes elementares, infinitamente mais simples que as obras convencionais de alvenaria.

O fascínio com a produção em série não era novidade no ideário moderno. Em 1914, Le Corbusier projetara as casas Domino e no seu desenvolvimento, no ano de 1921, as casas Citrohan.Almejava transformar a moradia em bem de consumo e a metáfora automobilística estava explícita no trocadilho com a marca de carros Citroën, a quem buscou, em vão, sensibilizar para a entrada no comércio habitacional.. Le Corbusier situava, todavia, o seu projeto no campo estrito da arquitetura. Não é excessivo, afirmarmos que, em certa medida, a concepção de projeto de Sérgio Bernardes migrou da arquitetura para o design.

A virada de pensamento: mudanças de rumo e escala

Em meados dos anos 1960, começou a nascer em Bernardes certo enfaro com a sua rotina de prédios de escala restrita. O sucesso profissional não mais lhe satisfazia o espírito inquieto. Um convite para visita profissional aos EUA e Europa o impulsionam para outra etapa de sua vida, na qual ampliaria o escopo e as fronteiras geográficas de sua atuação.

Nos EUA visitou algumas siderurgias e escritórios de cálculo de estuturas metálicas. Nada, contudo, lhe impressionou com intensidade parecida a de seu encontro com Buckminster Fuller. O americano não lhe era desconhecido. Em 1954 ambos haviam sido premiados em mostras de arquitetura: o criador da geodésica obtivera o prêmio especial da Trienal de Milão, enquanto Bernardes fora agraciado, em Veneza, com o prêmio pela melhor residência. Nesse longo encontro pessoal na América, Bernardes ficou fascinado com a combinação de inventor de novos sistemas estruturais, pensador holista e ativista político. O norte-americano parecia apresentar algumas respostas e caminhos para as angústias que o vinham acometendo, a respeito dos estreitos limites de atuação de seu campo profissional.

Buckminster, após uma carreira mais ou menos convencional no terreno da construção, determinou-se a encontrar os princípios gerais que regeriam o Universo, de modo a aplicá-los para resolver os problemas recorrentes que atormentavam o ser humano como, por exemplo, a necessidade de abrigo. Lançou o provocativo slogan de “fazer mais com menos” que opunha ao dogma miesiano de “menos é mais”. Propunha-se a fazer um abrigo tão leve que poderia ser transportado por avião. Defendia que o futuro da tecnologia traria mudanças benéficas para a humanidade, caso se alterasse a tendência de concentrar todos os esforços na indústria bélica. O engenheiro pacifista pensava que a tecnologia avançada permitiria que pessoas e mercadorias pudessem se movimentar livremente pelo mundo, aumentando a mobilidade de modo a diminuir o tradicionalismo que uma fixidez excessiva ao solo acarretava às culturas humanas. Propunha, nesse sentido, a utilização de técnicas de produção industrial para criar abrigos baratos que atendessem aos milhões de pessoas necessitadas do mundo.

O princípio geral de Fuller soou como música aos ouvidos de Bernardes: “alcançar a melhora do ser humano através de mudanças no meio ambiente e não no homem em si”. Há muito Bernardes havia ampliado o foco de sua “lente”: do prédio passou a se preocupar com o impacto de sua presença na rua, no bairro, na cidade, na rede de esgotos, nos mananciais naturais. O exemplo do americano o encorajou, também, a se permitir inquirir sobre os menores detalhes de uma realidade que era apresentada como pronta, acabada e inquestionável. A sua arquitetura jamais seria a mesma, tomando um rumo que associava as questões de Buckminster Fuller àquelas levantadas pelos pioneiros do movimento moderno, como Walter Gropius, Le Corbusier e Lucio Costa.

Bernardes radicalizou a figura do arquiteto tal como criada pelo movimento moderno em seu início. Nas primeiras três décadas do século vinte, o profissional de arquitetura, em um primeiro passo, se apropriou da questão de como resolver a habitação do homem contemporâneo. Ampliou suas pesquisas para a vida social desse homem, opinando sobre toda a feição da sociedade. Nesse novo papel, o arquiteto passou a questionar o status quo, não se limitando a projetar para dar concretude espacial a um determinado programa de atividade humana; passou a questionar o próprio sentido da atividade em si. Em outras palavras, não se restringiu a dar formas a estruturas já estabelecidas, passando a propor novas feições para essas estruturas. Não desprovido de certo determinismo estético-espacial, o arquiteto moderno pensava que, através de belas formas e espaços adequados, poderia induzir mudanças de mentalidade e comportamento no ser humano.

Na volta ao Brasil, Sérgio resolve se dedicar a modernizar o moderno, contribuindo para o avanço de seu ideário. Para a primeira geração do movimento, a arquitetura seria o centro e o vórtice modificador da sociedade. Bernardes propõe amalgamar linhas do pensamento de Fuller a pontos da agenda moderna. Efetua um deslizamento do foco pioneiro de transformação centrado na arquitetura em si para a capacidade modificadora da ação interdisciplinar do arquiteto: a obra arquitetônica isolada cede lugar às pesquisas de materiais, sistemas e invade terreno tradicionalmente pertencente à esfera política e econômica da concepção de novas organizações da sociedade.

A ousadia da ampliação do campo seria um gesto arriscado em qualquer local do planeta. No Brasil, com as peculiaridades e agruras inerentes a um país pobre governado por regime autoritário, a audácia aumentava em igual proporção ao risco de um percurso que tinha fortes possibilidades de conduzi-lo a um impasse.

Tempos de Fausto

Bernardes teve a ilusão de estabelecer com o regime militar uma relação similar àquela que Niemeyer possuíra com Juscelino. Para alguém egresso de um círculo de amizade que reunia no Rio de Janeiro a nata da intelectualidade não-esquerdista, a hipótese de uma relação privilegiada com o regime não parecia, de fato, descabida. Os seus projetos de arquitetura eram cada vez mais ousados e complexos, envolvendo tecnologia de ponta e pesquisa tecnológica de estrutura e materiais. Ficavam fora do alcance e do escopo daquilo que um particular, por mais próspero que fosse, considerasse razoável para aplicar em sua residência ou sede de empresa. Os planos em escala maior pertenciam à esfera geo-política e dependiam, caso exeqüíveis, de pesadíssimos investimentos públicos.

Era o caso, por exemplo, de sua proposta de re-arrumação do próprio território nacional ao unir vários grandes rios, criando dezessete grandes ilhas que seriam interligadas por vias fluviais de navegação e escoariam todo o transporte industrial, agrícola e humano. Essa nova divisão político-administrativa foi elaborada a partir do exame dos dados sociais, econômicos e ambientais das regiões e, sobretudo, de minuciosa pesquisa de dados físicos, geológicos e hidrodinâmicos do leito dos rios. Para conceber esse projeto Bernardes sobrevoou, por milhares de horas, o país. Boa parte dos recursos para essa e outras empreitadas semelhantes eram drenados dos ainda grandes lucros de seu escritório de arquitetura. Amante da aviação e da aventura, considerava os enormes gastos um investimento que lhe possibilitaria melhor formular as propostas para posterior adoção pelo governo central. Estávamos na época do Brasil Grande, da Tranzamazônica, de Itaipu, da ponte Rio-Niterói. A integração era o tema preferencial na agenda do poder militar.

Em 1968, Sérgio concebera uma de suas mais arrojadas estruturas arquitetônicas no projeto para o IBC-Instituto Brasileiro do Café a ser realizado na capital federal. O edifício, em estrutura metálica e forma de flecha, estava atirantado a duas torres de circulação vertical em concreto. Essas torres, distantes cinqüenta metros entre si, além de desempenhar função de sustentação, concentravam elevadores, escadas, banheiros e serviços de cozinha. Desenvolvia e explorava plasticamente, de modo espetacular, a idéia do plano livre do projeto Casa Alta, de 1959. O vão livre – à época, um recorde mundial nesse tipo de construção—era vencido por duas vigas laterais em treliça metálica, nos quais se apoiavam os 11 pavimentos do prédio-seta. Por ser considerado muito caro, o plano jamais saiu do papel e das mesas de reunião ganhou o caminho dos arquivos.

A ilusão de que se tornaria o arquiteto que daria formas ao regime militar se fortaleceu com a aproximação de Golbery do Couto e Silva. O mais culto dos militares – considerado a cabeça pensante do regime nos governos de Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo— ficou, a princípio, fascinado com as idéias e a personalidade de Sérgio Bernardes. O convívio com o arquiteto, embora escasso, fornecia-lhe um refinamento intelectual e a oportunidade de debate profundo de temas geopolíticos, qualidades raras de encontrar em seus companheiros de caserna e governo. Unia-os o entusiasmo em criar novas estruturas que possibilitassem o desenvolvimento do país. Eram duas figuras que, embora situadas em um espectro político dito conservador, não pretendiam manter estruturas arcaicas de organização territorial. O projeto mais arrojado, que obteve a simpatia inicial de Golbery, era aquele de uma Escola Superior de Guerra junto à Universidade de Brasília. Buscava Bernardes influir não apenas no espaço físico da escola, como também no currículo e na concepção da construção da mentalidade e do conhecimento que seria ministrado aos próprios oficiais. Despertou, é claro, forte reação dos setores mais conservadores do regime e o decrédito do próprio Golbery, quando este percebeu que o arquiteto estava querendo se ocupar de assuntos considerados fora de sua alçada específica.

O saldo desse namoro com os militares foi trágico para Bernardes. Valeu-lhe uma sólida antipatia por parte da esquerda. Antipatia que não era apenas simbólica, uma vez que esta ocupava postos-chave nos vários institutos e sindicatos de arquitetos, assim como em alguns setores de financiamento cultural do regime militar (6). Bernardes passou a ser tratado com má vontade e a importância histórica de sua excelente obra arquitetônica teve, muitas vezes, um destaque menor do que o merecido, em vários estudos e compêndios da produção arquitetônica moderna. Tudo isso sem nenhum benefício maior com setores da direita, que passaram a considerá-lo pouco confiável, anárquico e independente em excesso.

O ostracismo político de Bernardes, no final dos anos 1970, se refletiu em um contínuo caminho em direção ao universalismo de suas idéias, endereçadas cada vez mais ao ser humano em geral. Invocava, repetidamente, a categoria de Patrimônio Universal, propondo uma quebra das fronteiras nacionais em prol de uma aliança supranacional do continente latino-americano. Seria esperado em uma pessoa mais pragmática um retorno para o seu bem-sucedido escritório de arquitetura, onde não lhe faltariam encomendas de prósperos particulares e empresas privadas. Em movimento contrário, Bernardes intensifica o número de suas publicações, palestras para estudantes e funda o LIC – Laboratório de Investigações Conceituais. No auge da carreira, abdica da possibilidade de trabalhar em construção e abraça, com fervor juvenil, aos sessenta anos de idade, a missão de catequisador de um novo pensamento de vanguarda arquitetônica. Ou, em outras palavras, passa a se empenhar na construção de um novo modelo organizacional do mundo, no qual possa implantar as suas estruturas espaciais. Denuncia que o homem é “um especulador no seu ato de querer tudo para si” e que a centralização constituiria a marca do capitalismo e do comunismo que nada mais seria senão “o capitalismo de Estado”. Propõe “criar situações novas que possibilitem criar oportunidades de o Homem usufruir dos bens da Terra e desfrutar de sua capacidade de inventar”.

Apontava a discrepância no acesso a bens industrializados, fazendo-o afirmar não ter havido uma revolução industrial verdadeira mas, somente, uma evolução artesanal que apenas uma pequena parcela acompanhou e usufruiu.

Universalista e nacionalista a um só tempo, a noção de Patrimônio Universal e o estabelecimento de novas fronteiras eram centrais no pensamento de Bernardes. Para ele, cada país seria responsável pelo Patrimônio Universal, constituído pelo entorno oceânico e a rede hidrográfica complementada pelas florestas em redor. Esse conjunto de espaços deveria permanecer intocado, independentemente de suas riquezas, estando os leitos fluviais destinados, apenas, à navegação e transporte e as matas ao “habitat” dos ali nascidos.

Não era pouca ousadia no Brasil,ainda em tempos de ditadura, fazer proposições tão pouco ortodoxas que incluíam uma reorganização social, administrativa e econômica em termos completamente novos. Cada vez mais isolado, Sérgio comentava, divertido, que “aqueles de direita o consideravam comunista, enquanto estes o tinham como de direita”.

O Rio de Janeiro

O Rio era uma das grandes paixões de Sérgio. Viveu e amou a cidade, onde em quase setenta anos de sua carreira, concebeu grande parte de seus planos, edificou a maior parte de suas obras e, nos anos 1980s, se candidatou ao cargo de seu prefeito.

Preocupava-se Bernardes em potencializar a singularidade do Rio no contexto internacional, fornecendo condições para que a cidade se tornasse um pólo turístico de qualidade e um centro da economia continental, transformando-se em estuário da produção agrícola da América do Sul. O arquiteto propunha, também, soluções integradas de moradia, emprego e circulação entre eles, sob o lema fundamental de que “o sol nunca se põe para o homem do futuro”.

Uma das maiores preocupações do arquiteto era conter o excessivo crescimento horizontal da cidade que representaria grandes distâncias e longas horas do local de trabalho ao de moradia, com a conseqüente marginalização dos subúrbios, especulação imobiliária nas áreas mais centrais e a desesperada solução das favelas para os mais pobres, único modo de eles morarem perto do “centro”. Bernardes chamava atenção para o custo das ligações quilométricas para gente, água, luz, esgoto, telefone, gás e força. Argumentava serem adoráveis as pequenas cidades horizontais, mas que o adensamento da população levava-as a uma verticalização dentro da estrutura de lotes antigos. Um prédio de 12 andares substituía, no mesmo lote, um sobrado de 2 pavimentos: sombra, bloqueio do ar e da vista nas ruas eram algumas das conseqüências, sem falar na saturação das vias públicas, serviços de infra-estrutura e na quase abolição de áreas verdes. Julgava estar o carioca sufocado e empilhado em verticalidade tímida, implantada na estrutura horizontal da cidade antiga. Propunha a verticalidade ousada, com a substituição do apartamento vertical pelo ”bairro-vertical”: nele os homens poderiam voltar a ter o seu lote e jardim.

Nos anos 1930s, durante sua passagem pela América do Sul, Le Corbusier desenhou provocantes propostas urbanísticas para Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires. Com desenhos diversos, os esboços tinham em comum a concepção de usar estruturas gigantescas de prédios que reuniriam as funções de habitação, comércio e lazer, além de abrigar pistas de automóveis em suas coberturas. No caso do Rio de Janeiro, essas estruturas-serpentes estariam implantadas junto às encostas com o objetivo de eliminar, no resto da cidade, as grandes concentrações, ganhando espaço para áreas verdes e esparsas construções de pequena altura. As curvas provocativas do mestre europeu frutificaram no Brasil, de certo modo, na forma sinuosa dos projetos de Afonso Reidy para os Conjuntos do Pedregulho e da Gávea. Nos anos 1980s, Sérgio Bernardes adotou partido similar em seu projeto “Anéis de Equilíbrio”: prédios sinuosos acompanhariam, no nível da cota 100, a topografia dos maciços cariocas, servindo de limite para a ocupação humana; em suas coberturas correriam as pistas de rolamento, vias de distribuição do trânsito para os bairros, que passariam a comportar em suas estreitas ruas apenas o transporte local. Era a sua proposta para amenizar a característica de bairros-corredores que transformaram os locais mais aprazíveis da cidade em não-lugares e beiras-de-estrada para lugar nenhum.

Até o final de seus dias, Bernardes concebeu projetos para o Rio e Janeiro: um anfiteatro que brotava no meio da Lagoa Rodrigo de Freitas, uma torre residencial com 1 km na ilha de Cotunduba, habitações sobre cabos em São Conrado e uma ponte habitada ligando a Barra de Tijuca a Cabo Frio. Tema recorrente quando se examina, em retrospecto, a obra de Sérgio Bernardes é a discussão sobre a viabilidade ou não de seus projetos. Penso que alguns deles seriam perfeitamente realizáveis; outros retratam momento de certa onipotência dos arquitetos modernos. Julgo, entretanto, não ser essa hoje a questão principal. O legado mais importante de Bernardes foi a sua generosidade intelectual de conceber alternativas originais para a cidade e o país. Não importa se algumas delas pareciam descartar negociações mais realistas com o mundo concreto. Em tempos excessivamente pragmáticos e de profissionais medíocres, adestrados para o mercado, é admirável Sérgio ter relegado a segundo plano um escritório lucrativo, de modo a dedicar boa parte de seu tempo a um experimentalismo que levou às últimas conseqüências o uso de sua profissão para tornar melhor o ambiente coletivo.

Um dos fascínios na obra de Bernardes é o modo desenvolto e detalhista com que transita nas escalas urbana, arquitetônica ou objetual. O mesmo homem é capaz de conceber mega-sistemas politicos, hidroviários, urbanísticos, estruturas metálicas, poltronas, automóveis, telhas e os pormenores de funcionamento de um sistema de dobradiças ou de pequenos encaixes. A liberdade de seu pensamento teve a virtude de lembrar o alcance, potência e caráter inconformista que as idéias poderiam ter, em um ambiente profissional cada vez mais estagnado e conformado a dar formas a questões imediatas.

O impasse e a radicalização das utopias

Uma caixa preta. Assim Sérgio definia seu apartamento da Barra, sua última morada. Fez revestir todas as paredes e piso de negro para apagar os limites de seus ângulos e obter impressão de infinito. Referia-se, com a ironia costumeira, à caixa preta que restava de um grande desastre aéreo.

A qual queda se referia Bernardes? À falência de seu Laboratório de Investigações Conceituais? À falta de apoio estatal para os seus ousados projetos? Aos clientes que praticamente sumiram depois que se desinteressou do escritório de arquitetura “convencional”? Aos amigos que, com raras exceções, entre as quais Oscar Niemeyer, passaram a rarear? Embora todas essas hipóteses tenham uma resposta positiva, o trauma principal foi a falência do próprio projeto moderno do arquiteto transformador das estruturas sociais.

Assim como intelectuais brasileiros de outras áreas, Bernardes esticou, ao limite da lógica e da exeqüibilidade, o projeto radical das vanguardas. Nesse sentido, a sua trajetória se assemelha, em certa medida, àquelas de outros criadores geniais, como Glauber Rocha, Helio Oiticica e José Celso Martinez. Nas artes plásticas, a obra saiu do plano, envolve o espectador, convocou a sua participação e ampliou o seu espectro para a fenomenologia da própria existência; a obra é o corpo, a subjetividade reina em uma nova objetividade, que dissolveu a obra tradicional e a própria noção de sujeito autoral. No teatro, as peças de Martinez se fundiram com os ensaios, experiências dos atores com a platéia, o texto passando a mero pretexto para a encenação de uma longa comunhão, que durava normalmente cinco vezes o tempo de um espetáculo normal, findando com o esgotamento dos participantes, que evidenciava a própria impossibilidade física de seu prosseguimento. Glauber Rocha filmou, em grandes “closes” o velório de Di Cavalcanti. No longa-metragem “A idade da Terra” diálogos e cenas eram repetidos inúmeras vezes, construindo e desconstruindo a linguagem cinematográfica, de modo que o espectador parecia estar vendo um material inacabado na moviola. O fim da narrativa tradicional era anunciado junto com o luto de seus geniais realizadores.

Em caminho paralelo, Bernardes não se contentou em inventar estruturas, criar residências impecáveis, ter uma das mais bem-sucedidas e prestigiosas carreiras de arquitetura neste país. Almejava criar um novo modo de ver o mundo, alterar não só a feição das construções, mas os modos de vida, organização e maneira de pensar de seus habitantes. No auge de sua atividade e juventude, viu uma cidade ser criada a partir do nada, sem a sua participação. Brasilia colocou parâmetros muitos altos para toda uma geração de arquitetos. No Brasil de então, o futuro parecia haver chegado. A vontade política havia se aliado ao talento e ao domínio tecnológico. Estava lançado para Sérgio o desafio de avançar ainda mais. Aproveitou sua reputação e credibilidade profissional para lançar suas idéias de urbanismo e soluções, que faziam pouco do ordinário e do usual. Modernizar o moderno. Um arquiteto em permanente revolução.

Quase cego, devido a retinopatia e a uma desastrada cirurgia de catarata, Sérgio destinou boa parte de seu último ano a um projeto relativamente modesto, para um cliente que possuía quantia irrisória e insuficiente para construir uma casa. Passava as tardes com jovens colaboradores que lançavam seus traços e idéias para as telas de dois computadores. O arquiteto assumia aqui a sua condição mais pessoal e inalienável de construtor de beleza e sonhos. Denominava o projeto de casa invisível, pois seria possível acionar um botão que borrifaria água, provocando uma neblina que esconderia a construção. A realidade virtual parecia responder à velocidade e originalidade de sue pensamentos, assim como a pouca pressa e a improbabilidade de o projeto ser executado o liberava para desenvolver seu corpo de idéias com radicalidade ainda maior. Os planos, seguidos de perto pelo cliente entusiamado, eram traçados e retraçados com paixão, interesse e muito afeto.

Embora o mundo lhe tivesse retirado quase tudo, Bernardes exercia, com alegria e gênio, aquilo que tinha de melhor e intransferível: o seu enorme talento e sua capacidade de dar amor e injetar entusiasmo àqueles que o circundavam. E aos arquitetos práticos e medíocres, bem ou mal sucedidos, insistia em lhes ofertar mais uma lição fundamental do sonho criativo. Bernardes foi protagonista épico da tragédia da impossibilidade de transformações drásticas da realidade ao testar os limites do projeto moderno e dos poderes do arquiteto (7).

notas

1
Artigo baseado no livro CAVALCANTI, Lauro. Sérgio Bernardes: herói de uma tragédia moderna. Série Perfis do Rio. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004, e publicado em francês em Le Visiteur, revue critique d'architecture, n. 14, Paris, out. 2009.

2
Apud Flores Raras e Banalíssimas, a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop e Carmen L. Oliveira, p. 71.

3
Além do projeto vencedor de Lucio Costa, foram apresentadas 25 propostas entre as quais aquelas de Vilanova Artigas; Jorge Wilheim; Marcelo e Milton Roberto; Joaquim Guedes e Carlos Millan; Rino Levi; Henrique Mindlin.

4
Para um detalhado estudo sobre o Pavilhão de Bruxelas ver o texto de Paul Meurs em "Expo 58: the Brasil Pavilion of Sérgio Bernardes", organizado por Paul Meurs, Mil de Kooning, e Ronny de Meyer, Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Ghent 4ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, 1999/2000. Artigo do catálogo disponibilizado no Vitruvius: MEURS, Paul. O pavilhão brasileiro na Expo de Bruxelas, 1958. Arquiteto Sérgio Bernardes. Arquitextos, n. 007, Texto Especial 034. São Paulo, Vitruvius, dez. 2000 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp034.asp>.

5
Esse plano me foi relatado no LIC, pelo próprio Sérgio Bernardes, em 1983, durante o processo de feitura de sua mostra no MAM/RJ. Não encontrei nenhum desenho dele mas, pelo interesse de seu conceito, optei por transcrever, de memória, esse relato de 21 anos atrás.

6
Pertinente lembrar que Bernardes não esteve isolado, como intelectual “adesista”, na antipatiada opinião pública da época. Nelson Rodrigues se definia como recionário e garantia a ira da esquerda ao aparecer em fotos com o mais temido dos presidentes militares brasileiros, Garrastazu Médici. Os artigos e entrevistas de Glauber Rocha,, referindo-se a Golbery do Couto e Silva como um dos “gênios da raça” e defendendo o processo de distensão política “lenta, gradual e segura” de Ernesto Geisel, granjearam ao cineasta forte desconfiança de setores oposicionistas e da esquerda brasileira de então.

7
Nota do editor – artigos sobre Sérgio Bernardes disponíveis no Vitruvius:

agradecimentos

Sra. Kykah Bernardes

sobre o autor

Lauro Cavalcanti é arquiteto, escritor e doutor em Antropologia Social. Entre suas principais obras os livros When Brazil was Modern: a guide to architecture 1928-1960, Encore Moderne? Architecture contémporaine au Brésil e Sérgio Bernardes: o herói de uma tragédia moderna, que deu origem a este artigo.

comments

111.00
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

111

111.01

Cidade da Música do Rio de Janeiro: a invasora

Otavio Leonidio

111.02

Dois passos em torno da arte urbana em São Paulo

Vera M. Pallamin

111.03

Brasília, 1959: a cidade em obras e o Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte

Eduardo Pierrotti Rossetti

111.04

Wiederaufbau: a Alemanha e o sentido da reconstrução

Parte 1: A formação de uma nação alemã

Luiz Antonio Lopes de Souza

111.05

O patrimônio arquitetônico em Marília: entre o público e o privado

Rodrigo Modesto Nascimento

111.06

Brotas: turismo e configuração urbana

Amanda Negrão Pimenta and Maria Cristina Schicchi

111.07

Um projeto de Niemeyer marca o ponto mais oriental das Américas

Aristóteles Lobo de Magalhães Cordeiro and Mariama da Costa Ireland

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided