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CORTI, Marcelo. Crise das matrizes espaciais. Reflexões a partir de um livro de Fábio Duarte. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 039.01, Vitruvius, mar. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.039/3166>.


(Num quarto gótico, com abóbadas altas e estreitas, Fausto, agitado, sentado à mesa de estudo)
FAUSTO
Ai de mim! da filosofia,
Medicina, jurisprudência,
E, mísero eu!
Da teologia,
O estudo fiz, com máxima insistência.
Pobre simplório aqui estou
E sábio como dantes sou!
De doutor tenho o nome e mestre em artes.
J.W. Goethe, Fausto (1)

A concepção da arquitetura como uma arte do espaço tem se alternado na crítica moderna com outras vertentes interpretativas: as que privilegiam critérios semióticos, as diversas genealogias, os dispositivos sincrônicos e diacrônicos, o neopositivismo. De um lado, posturas tão diversas como as de Giedion e Zevi, que provavelmente só coincidem nessa caracterização espacial; do outro, uma também uma variada plêiade que inclui Venturi, Jencks ou Tafuri. Ainda não esgotado o ciclo histórico de pós-modernismos, regionalismos e deconstrutivismos, é estimulante a leitura do livro de Duarte sobre a crise das matrizes espaciais contemporâneas. Sobretudo se o leitor, mesmo sem compartilhar, ao menos admitir uma concepção "espacialista" da disciplina, sente esse mesmo "impulso fáustico" que parece animar Fábio Duarte a buscar nas distintas correntes do conhecimento humano um sustento filosófico para a teorização e para a práxis da arquitetura.

Espaço, território e lugar são três manifestações distintas dos fenômenos espaciais. Duarte não admite uma relação hierárquica entre elas, nem tampouco que alguma em particular se sobreponha a outra. O espaço, tomando um conceito do grande Milton Santos, "é aquele cujos fixos e fluxos compõem o ambiente vivido pelos seres humanos de forma coletiva"; segundo Henri Lefebvre, um espaço construído mais que postulado. O lugar é uma porção de espaço significado que adquire sentido individual ou coletivo; o território, finalmente, é o espaço institucionalizado – "legalizado".

As três instâncias se agrupam em matrizes de conhecimento, no sentido proposto por Kuhn: uma organização de paradigmas que conformam uma "predisposição" para a apreensão, compreensão e construção do mundo. Esta matriz tem entrada a partir de distintas variáveis, das quais o autor privilegia, por formação e interesse pessoal, a questão do espaço arquitetônico. A desterritorialização geopolítica, a pretendida anulação do espaço pelas tecnologias digitais, a globalização, a fragmentação, questionam estas matrizes modernas e geram essa crise contemporânea.

Objeto de questionamentos em certos discursos dos anos 60, o espaço é sem dúvida uma condição essencial da cidade, condicionada e condicionante de qualquer outra categoria de análise que se procure. Para Duarte, o espaço não tem uma lógica absoluta, "nem sequer a lógica de um espaço absoluto", pois é construído na relação entre três partes: os objetos, as ações e os seres humanos.

Duarte desenvolve assim um completo percurso pelo espaço contemporâneo, que incita a uma reflexão pessoal: por exemplo, sobre a dualidade entre o espaço arquitetônico de Le Corbusier presente em suas propostas ou realizações urbanísticas. A arquitetura corbusiana apresenta uma riquíssima concepção do espaço, aonde a fluidez se articula a um sentido rigoroso do interior, do exterior e das transições; a idéia da Promenade Architecturale realiza o conceito de Giedion do espaço-tempo, enquanto que a planta livre e o terraço-jardim ampliam e multiplicam a experiência do espaço arquitetônico. Ao contrário, seu espaço urbano se perde na abstração, na homogeneidade e na desqualificação (sem dúvida, as implantações urbanas de sua arquitetura podem ser exemplares e, na prática, não existem talvez edifícios corbusianos que se relacionem mal com sua cidade).

Mas esta ambigüidade é essencial a toda essa arquitetura moderna: basta comparar os espaços de Wright com o âmbito de seus projetos de Broadacre City. Ou a escassa definição dos espaços cívicos de Alvar Aalto, magníficos no contexto de sua arquitetura. Nos trabalhos do Team X, primeira crítica pós-bélica à ortodoxia arquitetônica do século XX, se falava do não-lugar como um resultado da indeterminação abstrata do espaço moderno, particularmente na arquitetura do Bauhaus e na cidade corbusiana. Era uma crítica que questionava a idéia de continuidade espacial, de fluidez e de transparência, de homogeneidade do espaço. Em palavras de T. S. Elliot, citado por Duarte, há uma ligação entre a anomia (ausência de normas o valores sociais) e a atopia, ausência de lugar.

Estas críticas estiveram na base de posteriores desenvolvimentos neo-racionalistas e neo-realistas que propuseram distintas formas de articulação com a história da cidade.

Ao contrário, os não-lugares antropológicos de Marc Augé se definem mais por sua indiferença territorial do que por sua indeterminação constitutiva: de fato, muitos destes não-lugares são projetados com referências historicistas e com um preciso sentido de composição de seus limites e articulações. Contra o que se deixa entrever em uma leitura apressada, não são tão anônimos nem tão lúgubres: Augé descreve com maestria essa espécie de felicidade sentida por quem os percorre, a segurança que dão em qualquer parte do mundo aos usuários da hiper-modernidade.

O junk space descrito por Rem Koolhas é outra forma de entender o não-lugar: "a modernização tinha um programa racional: compartilhar universalmente as bênçãos da ciência. O espaço-lixo é sua apoteose, ou seu derretimento. O espaço-lixo é o fruto do encontro entre a escada-rolante e o ar-condicionado, concebido em uma incubadora de Pladur". Segundo Daniel Parrochia, as sociedades chamadas móveis e flexíveis conduzem de fato a um espaço completamente totalitário: "a noção de rede encontra ali seu sentido original de instrumento de aprisionamento, cada vez mais presente e ameaçador".

Nesse sentido, temos como resultado um paradoxo da urbanização contemporânea: a coexistência de uma marcada fragmentação e heterogeneidade espacial na organização metropolitana, com a extrema homogeneidade das partes individuais. O que define a "maldição" espacial contemporânea é, sem dúvida, a extrema fragmentação entre as partes urbanas e, inclusive, entre as partes dos grandes objetos urbanos: a indefinição dos grandes estacionamentos diante da simulada hiper-definição dos espaços interiores. Com paradoxos impensados: em alguns shoppings, são arquitetonicamente mais interessantes alguns de seus espaços exteriores e suas transições com a cidade, do que os pátios e galerias internas. Aqui, novamente Milton Santos: assim como não há um tempo global, senão um relógio global, também não há um espaço global, mas apenas alguns espaços globalizados.

Esta fragmentação, além disso, define melhor o espaço contemporâneo do que os jogos biomorfológicos sobre a indeterminação e a fluidez, como no caso do Estúdio NOX, ou as postulações de espaços a partir de modelos informáticos, à maneira de Winka Dubbeldam. É algo que o videoclip, com sua anulação da perspectiva e dos códigos narrativos convencionais, explica com mais precisão. E nem sempre esta estética do videoclip está baseada na rapidez do corte e da montagem de imagens: é só prestar atenção nas distorções espaciais presentes em clips como Love is strong, dos Rolling Stones, as hipnóticas seqüências por autopistas que caracterizam a os vídeos de música eletrônica, os planos seqüências de notável interesse, como em Bitter Sweet Simphony de The Verve, alguns vídeos do grupo U2, o Wanna Be das Spice Girls ou Come into my world, de Kylie Minogue.

Com diz o mestre chileno Juan Borchers, não estamos diante de uma anulação do espaço, mas diante de sua ampliação quase infinita: "com a exploração do "espaço" incorremos em um novo pleonasmo. O planeta nos aparece como algo inteiro. A circulação global, se diz, reduziu sua extensão. Penso o inverso. Que se tornou na verdade muito mais vasto, ao abarcar cronologicamente territórios outrora distantes, dos quais se possuía uma idéia superficial" (Meta-arquitetura, Mathesis Edições, Santiago de Chile, 1975).

Com muita clareza conceitual e descritiva, e com uma erudição que é equiparada pela qualidade didática do texto, o autor consegue esboçar um tipo de "teoria unificada" do espaço contemporâneo ou, melhor, de sua crise. O resultado permite associar a queda do Muro, a cidade global e a ameaça ambiental a um sistema que inclui a realização do espaço arquitetônico: no processo, se enlaçam a proxemia de Edward Hall (2), a leitura da "imagem da cidade" por Kevin Lynch, a reivindicação da rua por Jane Jacobs, a qualidade rizomática que enuncia Deleuze, a economia mundialmente integrada mas espacialmente dispersa descrita por Saskia Sassen. A arquitetura, a globalização econômica, as reacomodações políticas internacionais, a ciência física, as tecnologias informatizadas e os efeitos de cada uma destas sobre nossa concepção do espaço, são assim reelaboradas por Duarte em uma fascinante operação interpretativa, que se beneficia da modéstia do autor em não propor nem prognosticar uma solução para a crise. Afinal, esta crise das matrizes nos acompanhará, seguramente, durante nossas vidas e será o contexto teórico no qual deveremos pensar o espaço em nossas respectivas disciplinas.

[resenha publicada originalmente em espanhol no website "Café de las Ciudades" <http://www.cafedelasciudades.com.ar/arquitetura_28.htm>.]

notas1GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. Tradução de Jenny Segall Klabin. São Paulo, Edusp, 1981, p. 41.

2Nota do editor – Na comunicação existem paralinguagens não codificadas nas linguagens oral/escrita que contribuem para o entendimento. Entre elas estão, por exemplo, a cinestesia (movimentos e posturas corporais, incluídos o olhar e o contato corporal) e a proxemia (concepção, estruturação e uso do espaço).

leia também

"As propostas das vanguardas modernas", de Renato Luiz Sobral Anelli, sobre o livro de Ozenfant e Jeanneret e o livro Arquitetura do século XX e outros escritos de Gregori Warchavchik

sobre o autor

Marcelo Corti é editor do website argentino especializado em urbanismo "Café de las Ciudades"

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