Em 2008 completam-se 672 anos da escalada do Monte Ventoux, na Provence, empreendida por Francesco Petrarca, seu irmão e os servos que os acompanhavam. Há tempo Petrarca procurava, entre seus amigos, quem pudesse associar-se a ele na aventura, mas sem sucesso. Chamou então seu único irmão, mais novo, que aceitou o convite com prazer. Pernoitaram na vila de Malaucène, aos pés do monte, e na manhã seguinte se puseram em marcha.
Naquela época não era comum galgar morros sem motivo, muito menos o Ventoux, a quase 2.000 metros de altitude e fustigado pelo frio e seco mistral, soprando a 100, 200, até 300 km/hora, o que, aliás, explica o nome do monte. Um velho pastor, que os irmãos encontraram logo no começo da jornada, tentou dissuadi-los do propósito disparatado. Fazer o que lá em cima? Por que enfrentar pedras e espinhos? Ele próprio tivera suas vestes rasgadas e o corpo ferido ao realizar o mesmo feito cinqüenta anos antes! Mas as advertências do pastor foram o que bastou para atiçar a disposição daqueles “jovens” decididos, mais que nunca, a prosseguir.
Quando Petrarca pôs os pés no topo do Ventoux era plena primavera e o mistral não soprava. Apesar disto, a subida não foi fácil para ele, que já estava com 32 anos. É o que se lê na carta ao seu amigo e conselheiro espiritual, Dionigi da Borgo San Sepolcro, onde ele relata as desorientações e o cansaço, as oscilações da vontade e as astúcias inúteis do corpo na busca de um caminho que conduzisse, sem agruras, ao alto.
Depois de muitos tropeços, atingiu, por fim, seu objetivo. A data da subida, mais precisamente, 26 de abril de 1336, é tida como o marco inicial do olhar moderno sobre a paisagem, pois Petrarca subiu por subir, por mera curiosidade, simplesmente “pelo desejo de ver um lugar reputado por sua altura”.
Hoje, em quase todo lugar turístico, uma das atrações mais comuns é o topo de algum morro, coroado por um Cristo, santo, cruzeiro ou galpão de teleférico, de onde se pode ver a paisagem de cima. Se não tem morro, uma torre – de TV, de igreja – faz as vezes.
Pode-se subir sem esforço físico – o trabalho fica por conta dos cabos, elevadores e escadas rolantes, dos motores dos carros – ou com o uso dos músculos, numa trilha bem batida e, normalmente, congestionada.
Uma vez no alto, anulam-se os acidentes, misérias e feiúras de baixo: deformidades, cheiros, ruídos. Lá em cima, a visão impera, uma visão sem empecilhos, asséptica, livre dos distúrbios que a proximidade, por uma conspiração de todos os sentidos, deixa expostos.
O mundo se afasta quando visto de cima. Por outro lado, no alto, o distante se torna próximo, como constatou Petrarca ao divisar, saudoso, do cume do Ventoux, as terras da Itália, da qual se sentia tão longe. Mas percebeu também, “saciado quase até a embriaguez” pela visão do alto da montanha, que ele se afastava de si mesmo. Tracionado por forças tão opostas, pôs-se a refletir sobre a vida e tomou o caminho de volta sem proferir uma só palavra, indiferente aos apelos do irmão falante e não poeta.
Consta que as angústias de Petrarca não o impediram de continuar viajando e, provavelmente, de subir outros montes, mas não se sabe se manteve a crítica à “estupidez dos homens que, descuidando de sua parte mais nobre, extraviam-se pelos caminhos e se perdem em espetáculos vãos”. O fato é que ele abriu uma janela para espiar o mundo de cima, e uma fila se formou atrás dele, com um número expressivo de pintores de paisagem.
Ver de cima tem suas vantagens, principalmente quando se está emaranhado. Foi o que liberou Dédalo do Labirinto que ele mesmo havia projetado (Dédalo era arquiteto), e onde seu cliente, o rei Minos, o mantinha preso. Engenhoso, Dédalo fabricou dois pares de asas com penas de aves coladas com cera, um para si e outro para seu filho, Ícaro, que também estava preso no Labirinto.
sobre o autor
Vladimir Bartalini, arquiteto, mestre e doutor pela Fau-Usp. Atua profissionalmente na área da arquitetura paisagística desde 1973 e leciona disciplinas de paisagismo em escolas de arquitetura desde 1975