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architectourism ISSN 1982-9930


abstracts

português
Neste artigo Vladimir Bartalini nos conta sobre a experiência de Petrarca e a janela aberta pelo mesmo para espiar o mundo de cima, dos topos de morros, que estão entre as atrações mais comuns de diversos lugares turísticos

english
This article by Vladimir Bartalini tells us about the experience of Petrarch and how it helped to spy on the world above, the hilltops, which are among the most common touristic attractions

español
En este artículo Vladimir Bartalini nos cuenta la experiencia de Petrarca y la ventana abierta por él mismo para espiar el mundo desde las cimas de las montañas, que están entre las atracciones turísticas más comunes


how to quote

BARTALINI, Vladimir. Petrarca é o culpado. Arquiteturismo, São Paulo, ano 01, n. 010.04, Vitruvius, dez. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/01.010/1386>.


Em 2008 completam-se 672 anos da escalada do Monte Ventoux, na Provence, empreendida por Francesco Petrarca, seu irmão e os servos que os acompanhavam. Há tempo Petrarca procurava, entre seus amigos, quem pudesse associar-se a ele na aventura, mas sem sucesso. Chamou então seu único irmão, mais novo, que aceitou o convite com prazer. Pernoitaram na vila de Malaucène, aos pés do monte, e na manhã seguinte se puseram em marcha.

Naquela época não era comum galgar morros sem motivo, muito menos o Ventoux, a quase 2.000 metros de altitude e fustigado pelo frio e seco mistral, soprando a 100, 200, até 300 km/hora, o que, aliás, explica o nome do monte. Um velho pastor, que os irmãos encontraram logo no começo da jornada, tentou dissuadi-los do propósito disparatado. Fazer o que lá em cima? Por que enfrentar pedras e espinhos? Ele próprio tivera suas vestes rasgadas e o corpo ferido ao realizar o mesmo feito cinqüenta anos antes! Mas as advertências do pastor foram o que bastou para atiçar a disposição daqueles “jovens” decididos, mais que nunca, a prosseguir.

Quando Petrarca pôs os pés no topo do Ventoux era plena primavera e o mistral não soprava. Apesar disto, a subida não foi fácil para ele, que já estava com 32 anos. É o que se lê na carta ao seu amigo e conselheiro espiritual, Dionigi da Borgo San Sepolcro, onde ele relata as desorientações e o cansaço, as oscilações da vontade e as astúcias inúteis do corpo na busca de um caminho que conduzisse, sem agruras, ao alto.

Depois de muitos tropeços, atingiu, por fim, seu objetivo. A data da subida, mais precisamente, 26 de abril de 1336, é tida como o marco inicial do olhar moderno sobre a paisagem, pois Petrarca subiu por subir, por mera curiosidade, simplesmente “pelo desejo de ver um lugar reputado por sua altura”.

Hoje, em quase todo lugar turístico, uma das atrações mais comuns é o topo de algum morro, coroado por um Cristo, santo, cruzeiro ou galpão de teleférico, de onde se pode ver a paisagem de cima. Se não tem morro, uma torre – de TV, de igreja – faz as vezes.

Pode-se subir sem esforço físico – o trabalho fica por conta dos cabos, elevadores e escadas rolantes, dos motores dos carros – ou com o uso dos músculos, numa trilha bem batida e, normalmente, congestionada.

Uma vez no alto, anulam-se os acidentes, misérias e feiúras de baixo: deformidades, cheiros, ruídos. Lá em cima, a visão impera, uma visão sem empecilhos, asséptica, livre dos distúrbios que a proximidade, por uma conspiração de todos os sentidos, deixa expostos.

O mundo se afasta quando visto de cima. Por outro lado, no alto, o distante se torna próximo, como constatou Petrarca ao divisar, saudoso, do cume do Ventoux, as terras da Itália, da qual se sentia tão longe. Mas percebeu também, “saciado quase até a embriaguez” pela visão do alto da montanha, que ele se afastava de si mesmo. Tracionado por forças tão opostas, pôs-se a refletir sobre a vida e tomou o caminho de volta sem proferir uma só palavra, indiferente aos apelos do irmão falante e não poeta.

Consta que as angústias de Petrarca não o impediram de continuar viajando e, provavelmente, de subir outros montes, mas não se sabe se manteve a crítica à “estupidez dos homens que, descuidando de sua parte mais nobre, extraviam-se pelos caminhos e se perdem em espetáculos vãos”. O fato é que ele abriu uma janela para espiar o mundo de cima, e uma fila se formou atrás dele, com um número expressivo de pintores de paisagem.

Ver de cima tem suas vantagens, principalmente quando se está emaranhado. Foi o que liberou Dédalo do Labirinto que ele mesmo havia projetado (Dédalo era arquiteto), e onde seu cliente, o rei Minos, o mantinha preso. Engenhoso, Dédalo fabricou dois pares de asas com penas de aves coladas com cera, um para si e outro para seu filho, Ícaro, que também estava preso no Labirinto.

sobre o autor

Vladimir Bartalini, arquiteto, mestre e doutor pela Fau-Usp. Atua profissionalmente na área da arquitetura paisagística desde 1973 e leciona disciplinas de paisagismo em escolas de arquitetura desde 1975

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