Sua formação resulta da curiosidade de viajante?
Acho que minha trajetória não obedece a uma formação regular acadêmica. Antes deriva das pesquisas que fui desenvolvendo ao longo dos anos (estudei jornalismo, depois fiz o mestrado em historia da arte, doutorado na ECA, livre docência e titulação na FAU). Pesquisas sobre Modernismo, e artistas modernistas, museologia, em função dos museus que dirigi, arte e arquitetura do período colonial, arte na América Latina, ou seja, me formei pesquisando. Acho que é uma maneira de aprendizado.
Isso pode querer dizer também que não possuo um embasamento filosófico, uma sistemática teórica densa. Esse dado sempre me preocupou, me dava certo complexo de inaptidão. Até um dado momento. Depois, relaxei. Se eu podia dar uma contribuição embora com essas lacunas, essa seria minha contribuição. Mais de uma vez tentei assistir aulas de Estética na Filosofia da USP. Achava uma chatice, os professores se preocupavam com o objeto artístico apenas como inicio de reflexão. Depois, voavam, longe. Vi que não era minha praia.
A vida acadêmica combina com o gosto de viajar?
Uma vez o historiador de arte e arquitetura argentino Damián Bayon me disse que importante para ele era viajar com câmera na mão e caderno de anotações no bolso, algo assim. Era um excelente fotógrafo de arquitetura. E escreveu muitos livros e foi longos anos professor de história da arte, na França, México e Argentina. Acho que comigo também foi assim, embora a Pentax tivesse chegado com atraso...
Quando entrei para a ECA e depois para a FAU precisava viajar para fazer diapositivos e levantar dados sobre arte brasileira (onde acho que fui pioneira nessa disciplina, no caso da ECA) e da América Latina (idem, no caso da FAU), que não possuía acervo bibliográfico ou de diapositivos sobre esses territórios... Você ir a lugares com um objetivo, procurando determinadas pessoas, travando relações que depois duram décadas, dando palestras, participando de colóquios e congressos. E tendo que antes ou depois entregar um paper sobre o assunto. Ou ser solicitado a colaborar em determinada revista, por exemplo.
E observando nossa condição, e, na América Latina, as similaridades (quando estamos na Europa ou Estados Unidos), e as diferenças quando estamos entre latino-americanos na América Latina (entre o Brasil e eles). E mesmo que não exista a barreira do idioma, há uma coisa cultural, forte, distintiva.
Viajar a trabalho pode ser gratificante?
Acho melhor o tipo de viagem a trabalho que simplesmente fazer turismo. Claro que corresponde a um momento na vida da gente. Uma motivação objetiva. Que depois redunda num trabalho. Acho que devo admitir hoje que sou workaholic. Mesmo há anos aposentada, continuo trabalhando. Por várias razões, claro. Mas, até quando? Não sei. Mudou muito a sistemática de trabalho de curadoria de exposições e eventos. Hoje a terceirização me desgasta demais pois você perde o controle do andamento do trabalho em suas diversas etapas. Acho que é mais confortador, talvez, você desenvolver um projeto de pesquisa solitário, apenas em função de uma edição, publicação, e não de tanta dependência de patrocinadores...
Vale a pena viajar para conhecer o patrimônio cultural brasileiro?
Acho que o patrimônio brasileiro está em risco violento desde que agora se desenvolve um turismo predatório (não estou falando de Fernando de Noronha ou Bonito). E há muito turismo interno no Brasil, cada dia mais. E isso é atemorizador. Pois o brasileiro em geral não é respeitoso, não é educado, e o turismo respeitoso parte de pessoas cultas. E a cultura e educação no Brasil estão em baixa. Todos o sabem.
A maior parte de nossos problemas deriva da falta de educação. Talvez somente uns 20% da população brasileira saiba escrever uma carta, expor uma opinião, fazer uma reclamação por escrito (para mim, saber assinar o nome nunca significou que uma pessoa seja alfabetizada. É apenas uma garatuja para quebrar um galho, em carteira de trabalho, recibo, etc. Uma vergonha. Ninguém lê anúncios de publicidade, nem jornais, nem revistas). É a “cultura da tv”, ou do rádio, oral e passiva. Pois nem expor verbalmente não se sabe. Ouve-se e se vê, em geral sem entender. E fica por aí.
O patrimônio brasileiro está bem conservado?
Qual patrimônio brasileiro arquitetônico está bem conservado? Da época colonial? É só viajar pelo Brasil e nos darmos conta do estado desses remanescentes... Volto ao dito anteriormente. Onde falta educação falta preservação.
O período do ecletismo? Como, se a maior parte desses prédios hoje nas grandes cidades, salvo exceções honrosas, estão repintadas de vermelho vivo, amarelo forte, azul-bandeira por fora? E por dentro, acaso estarão conservados?
A primeira casa modernista (1927), de Warchavchik, na rua Santa Cruz, que deveria ser um marco (na verdade poderia ser um centro de documentação do modernismo brasileiro) está como? E as casas de Warchavchik na rua Itápolis ou Bahia, são acaso monumentos visitáveis abertos ao público com pequenos acervos de arquitetura moderna ou literatura moderna, distinguindo-os do resto do bairro?
E a arquitetura moderna brasileira mais recente?
Em Brasília, nada foi concebido para ser duradouro. Um Congresso (como aliás o Ibirapuera e o Memorial da América Latina em São Paulo), que precisa ser repintado regulamente, a preços elevados, em custo e mão-de-obra, demonstram bem que o arquiteto maior deste país nunca se preocupou em materiais nobres, para edifícios que pudessem ter uma manutenção menos cara e/ou mais resistente.
Inclusive na sensibilidade que se deveria ter tido no que respeita ao clima quente (caso do Minhocão, Univ. de Brasília, entre outros prédios). Isso reflete a história da nossa arquitetura do século XX, bem diferente da arquitetura colombiana moderna e contemporânea, por exemplo, que tem uma historia de excelência, em execução invejável.
Nossos equipamentos culturais estão preparados?
Os museus de arte, tipo de edificação que em todo o mundo se transformou nas últimas décadas na menina dos olhos de governantes e arquitetos, aqui no Brasil se acham relegados a serem “projetos” exclusivos do escritório Niemeyer, sem qualquer preocupação pelos programas dessas entidades? Terrível, pois seja a série inumerável prevista, em construção ou já prontos (Ceará, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Curitiba, Niterói...) de pobre concepção, ou que, quando terminados, são de péssimo acabamento, despreocupados de suas funções, só para que essas cidades digam que têm a “grife” repetitiva do arquiteto.
E o que dizer da arquitetura de um museu como o MASP, tão festejado pelos arquitetos e em fotografias e postais? Lina Bo foi uma personalidade muito inteligente porém não teve a previsão do lugar e do tempo.
A fisicalidade desse museu é agressiva (sua escadaria de pedra que o diga), não possui um lobby acolhedor (aliás não tem lobby, como qualquer grande museu do mundo para as boas vindas ao visitante!); tem um vão livre, que apesar de todas as justificativas conhecidas é inútil seis dias por semana (servindo apenas para a feirinha de antiguidades e há anos para reunião de manifestantes de comícios infernais da Avenida Paulista), é de reduzido espaço expositivo, não possui garagem, etc. Melhor é não me deter em comentar seu interior. Aliás, me sinto mal em falar dessa arquitetura pois sua autora não está mais entre nós.
Daí por que o único museu contemporâneo no Brasil que reconheço de qualidade internacional, mesmo que se possa fazer reserva a este ou aquele ponto, é o Museu Iberê Camargo, projeto de Álvaro Sisa, em Porto Alegre. Esse museu sim, pode ombrear com o MALBA, de Buenos Aires, ou qualquer outro museu do mundo. Pela qualidade de sua concepção, pela execução cuidada, seleção de materiais empregados e visível acompanhamento técnico do arquiteto e sua equipe.
Os modernistas da Semana de 22 inventaram o turismo interno?
Os modernistas de São Paulo, indo ver o carnaval no Rio e conhecer a Semana Santa em Minas, ou no caso de Mario de Andrade, fazer uma viagem até o Norte, e pelo Amazonas, chegar até Iquitos, no Peru, realmente demonstraram que conhecer o Brasil era importante forma de nos identificarmos. Assim vejo a coisa, especialmente numa época de “redescobrimento” do Brasil como foi colocado posteriormente. Era o momento de tentar ver o Brasil, e não apenas o nosso bairro.
Não que eles tenham inventado o turismo interno mas daí saiu também, como se sabe, a idéia do que seria o IPHAN após 1937, a preocupação com a preservação de nossos monumentos... Era o momento que denominamos de “nativismo”, assumir o que somos. Na musica, na literatura, e deixar isso transparecer nas artes visuais. Exceção feita, claro está, a artistas como Ismael Nery, ou Anita Malfatti, de teor mais internacionalista nessa década de 20.
Tarsila do Amaral aprendeu mais viajando para a Europa ou para o interior do país?
Tarsila se insere dentro desse quadro. Procedente de família fazendeira, do interior paulista, tendo vivido algum tempo na França, já com sua filha menina interna em colégio na Inglaterra, se contaminou por esse espírito de brasilidade dos modernistas depois que volta para cá no segundo semestre de 1922. E desenvolveria a partir de 1923 essa preocupação em deixar transparecer a cor cálida brasileira em suas telas, ou resgatar memórias de infância, a magia do universo tropical. Mesmo que tivesse tido aulas nesse ano de 23 com Lhote, Gleizes, e tivesse olhado com muita atenção as pinturas de Léger.
A pintura de Tarsila reflete nosso país atual?
O Brasil mudou tanto que não vejo como a pintura de Tarsila pode ser estimulo a se querer conhecer o Brasil. O artesanato de Serra Negra (bordados, tricôs, trabalhos em palha, em madeira com pirogravura, bugigangas, enfim), são as mesmas que podemos ver em Foz do Iguaçu ou em “casas de artesanato” pelo país, seja Goiás, como Gramado.
Está tudo muito banalizado, industrialização de baixa criatividade por toda a parte. As exceções talvez sejam a beleza do artesanato mineiro da região do Jequitinhonha (espero que ainda esteja bom!), da maravilhosa tradição da região de Prados, e do Nordeste, no Ceará, em particular, no Cariri. Até o artesanato indígena, tão bom, hoje parece manipulado pela FUNAI (me pergunto?), e parece declinante, embora com olho bom se possa ainda encontrar preciosidades surpreendentes.
Como é viajar para a Europa hoje?
Atualmente quando acontece de eu ir à Europa, os países europeus me parecem cada vez mais exóticos com sua qualidade de vida. Foi o que pude ir observando quando por quatro anos ia três vezes por ano a Haia (com eventos contínuos em Roterdã, Amsterdã, ou Maastricht) na Holanda, como membro da Comissão Internacional de Premiação do Prince Claus Fund (2002-2005).
Participar de um Colegiado assim é também um forte aprendizado: tentar discutir em idioma estrangeiro, ceder, apreciar e estudar as contribuições de asiáticos, africanos, comparando-os com as de nosso Continente, e ao mesmo tempo perceber desalentada como todos conhecemos tão pouco dos outros... apesar da tão falada globalização.
Qual sua viagem inesquecível e qual falta fazer?
Viajar sem propósito de trabalho, acho que foi somente para lugares com os quais sempre sonhei visitar para olhar, ver e guardar na memória: foi o caso de ir à Patagônia, Ilha de Páscoa, Turquia e Capadócia, Nepal, Cambodge, Tailândia, Egito e Marrocos (agora, bem que gostaria de conhecer outros lados, como Samarkanda, no Uzbequistão, ou Petra, na Jordânia, por exemplo). Acho que conhecer a China de hoje é um investimento necessário para uma pessoa de nosso tempo, deste momento em que vivemos. É um impacto, um choque cultural, e impressionante.
sobre o entrevistado
Aracy Amaral é professora e historiadora de arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.