"Eu não precisei, para fazê-las renascer, senão pronunciar estes nomes: Balbec, Veneza, Florença, no interior dos quais havia acabado por se acumular o desejo que me tinham inspirado os lugares que eles designavam".
Marcel Proust. Em busca do tempo perdido.
Todas as cidades são literárias, no sentido que todas são capazes de provocar a escritura e de evocar imagens. E, neste caso, poder-se-ia pensar que há, ao menos, duas possibilidades: a cidade poderia ser o tema de uma obra literária, ou, ainda, poderia se constituir em uma espécie de paisagem na qual flanariam personagens e narradores. E, é importante acrescentar, mesmo os simples e cotidianos espaços de casas já foram o tema de, ao menos, um romance — A vida: modo de usar, escrito por Georges Perec —, e de um estudo filosófico — o conhecidíssimo A poética do espaço, do igualmente francês Gaston Bachelard.
Ora, se, de fato, como defende a maioria dos críticos e historiadores, o romance surgiu com o incremento da vida urbana, a estreita ligação entre cidades e palavras é uma hipótese bastante plausível. Pelas razões acima elencadas, não causa espécie que o urbano tenha tido tanto espaço na obra capital de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido. No entanto, poder-se-ia argumentar que, neste caso, é o tempo que deveria ser recuperado e não o espaço, e que sob esta ótica é o tempo que é um topos importante e não o espaço. Este argumento é impecável e dificilmente poderia ser contrariado, mas não é nossa intenção contrariá-lo, pretendemos apenas matizar a questão e afirmar que, nesta obra literária, a busca pelo tempo se dá no espaço, e que este espaço é, muitas vezes, o espaço urbano. Devemos lembrar que, nesta tradição literária, o tempo ressurge, recuperado, a partir de um encontro fortuito com certos espaços.
Assim, admitidos como corretos estes argumentos, seria importante acrescentar que na economia deste romance uma cidade em especial — para além de Paris, de Combray e de Balbec, naturalmente —, torna-se importante: a cidade italiana de Parma. Para a personagem narradora esta palavra que, na língua francesa (Parme) começa pesada para terminar suavemente, parecia-lhe “compacta, lisa, malva e suave”, e a própria cidade, por sua vez, passa a possuir tais atributos.
A personagem conheceu esta cidade lendo o romance de Stendhal, A cartuxa de Parma — que é ambientado, como o leitor já terá adivinhado, nesta cidade italiana —, e é a suavidade do romance que, por associação, faz com a cidade se torne suave. A literatura, não nos esqueçamos, tem o poder de fundar, ou melhor, de re-fundar as cidades, criando fantasmagorias, mitos, legendas, imagens e expectativas. Há a cidade de Parma, localizada na Emilia Romanha, mas há a Parma do narrador de Em busca do tempo perdido, perfeitamente particular, da qual ele é, certamente, o “único senhor e proprietário.”
No entanto, assim como a leitura de Stendhal criou, no imaginário da personagem, toda uma cidade, a leitura de Proust é responsável por fundar uma Parma na qual se busca recuperar tempo e espaços perdidos. É neste sentido que se pode afirmar que Parma é uma cidade macia, suave no fluxo preguiçoso do seu rio, suave nas brumas que a envolvem em uma manhã de inverno e nas suas construções de tijolos que lembram a flor de malva.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.