Let me recite what history teaches.
History teaches.
(Gertrude Stein, 1874-1946)
Este texto parte de uma grande saudade (1). A saudade do tempo que passei em Providence, capital de Rhode Island, durante uma viagem pelo estado de Nova York e região da Nova Inglaterra. O que me motiva a compartilhar aqui a minha vivência dessa cidade é a riqueza de sua história, claramente transmitida pelo acervo construído. Mais ainda, o cuidado na sua preservação, refletindo o grande apreço que este acervo recebe de seu povo.
Vindo de Boston, depois de uma agradável viagem de duas horas em um confortável trem, desembarquei na Providence Station (1982-1986). Esta linda estação é um projeto de Marilyn Taylor, quando de sua participação no escritório de Skidmore, Owings & Merrill, em Washington. Era janeiro de 2010, auge do inverno, o céu escurecendo por volta das quatro da tarde. Assim, já era noite quando cheguei ali. Gosto disso, ver primeiro a cidade noturna, para descobri-la sob o sol da manhã seguinte.
Tendo a adorável chance de estar hospedada na casa da amiga americana que motivou a minha viagem, fiquei em uma colonial clapboard house do século XVIII [foto 1]. O endereço, na Transit Street, era em pleno setor histórico dessas casas de madeira que remontam ao período dos colonos ingleses, ali estabelecidos nos primórdios da cidade. Originalmente construída para uma só família, a casa, atualmente dividida em três apartamentos (um por andar) é um condomínio residencial multifamiliar. Essa solução foi adotada em boa parte das clapboard houses, mantendo a vitalidade do setor histórico. Eis aqui uma primeira ideia das práticas conservacionistas usuais na cidade.
É comum ver, nesse setor histórico, casas que ainda trazem a bandeira americana com treze estrelas, representando as colônias inglesas ligadas à origem de Rhode Island, dado histórico que abordarei mais adiante. Entre as casas que trazem tal bandeira, figura a construída por William Church, em 1826, informação estampada em placa afixada à fachada, como é usual em todas as áreas históricas da cidade [foto 2]. Tal identificação é parte do trabalho da sociedade que se encarrega da conservação do acervo da cidade, a Providence Preservation Society (PPS), que será muitas vezes mencionada neste texto. Sendo ainda o início de janeiro de 2010, quando a foto dessa casa foi tirada, suas janelas traziam as velinhas natalinas, como faziam várias outras residências da cidade. O Natal estende-se longamente em terras norte-americanas.
A Transit Street é uma das ruas cujo nome repercute um uso, sendo esta uma das categorias da interessante nomenclatura dos logradouros da cidade. Outro exemplar dessa categoria é a Meeting Street (Rua do Encontro). Nos setores históricos há também nomes de ruas que refletem valores, tais como Hope Street (Rua da Esperança), Power Street (Rua do Poder) e Benefit Street (Rua do Benefício). Além disso, sendo a cidade implantada em colinas, os nomes destas são igualmente instigantes. Esses, ora revelam uma relação com a paisagem, tal como Prospect Hill (Colina do Panorama), ora com uma construção histórica definidora do local. Neste último caso insere-se a College Hill, onde está a sede do antigo College of Rhode Island, colégio que viria a se tornar a atual Brown University.
A breve incursão na nomenclatura, acima relatada, foi feita na minha primeira manhã na cidade. Já naquele momento, a riqueza do apanhado de nomes me fez pensar no quão proveitoso seria realizar uma toponímia da cidade. Não me arriscarei a tanto neste artigo, porém. Aqui, viso apenas apresentar essa bela cidade histórica e universitária, sede de importante acervo do National Register of Historic Places (NRHP), enfatizando o modo como é conservada. Para tanto, iniciarei por um breve histórico da cidade, desenvolvendo, a seguir, por suas principais características urbanas e arquitetônicas, contextualizando o processo de sua conservação.
O estabelecimento de Providence data de 1636, quando Roger Williams fundou o estado de Rhode Island. Nesse ano, conta a história, Williams estabeleceu a primeira colonização branca em Rodhe Island, sediando-a em Providence, em terras adquiridas dos índios Narragansett. Coagido a escapar de Massachusetts por força de perseguição, Willians constituiu ali uma postura de liberdade religiosa e política. Posteriormente, em 1663, o Rei Carlos II da Inglaterra outorgou aos colonos uma carta real. Com esse instrumento legal, concedeu-lhes o maior grau de autogoverno de qualquer outra colônia do Novo Mundo e autorizou a continuidade da liberdade de religião (2). Portanto, os primeiros colonos do lugar foram ingleses convictos da separação entre Igreja e Estado. Essa postura teve forte influxo sobre a organização da cidade, eximindo-a tanto de foco cívico, quanto de foco religioso (3). Tanto assim, que até o século XVIII Providence não conheceu nenhum cemitério, nenhum quarteirão religioso ou cívico.
De início, Providence foi mormente um estabelecimento de agricultura de subsistência. A propósito, a considerar a narrativa de Johnson, contemporâneo dos fundadores da cidade, os primeiros tempos de Providence foram muito duros. Eis o que conta o autor sobre tais pioneiros, em seu em seu Wonder-Working Providence: “eles cavavam a terra, na encosta do monte, para preparar seu primeiro abrigo, e atirando terra sobre a lenha, acendiam um fogo fumacento, do lado mais alto”. Por fim, prossegue o autor, somente construíam casas, “depois que a terra, pela benção de Deus, produzia pão para alimentá-los”. Segundo Johnson, a colheita do primeiro ano foi tão frugal, que os forçou a “cortar o pão em fatias muito finas durante um longo período” (4).
A cidade voltou-se para a navegação em meados do século XVII, sendo as suas casas anteriores a 1750 modestas em tamanho e detalhes. À riqueza posteriormente auferida com a navegação, devem-se as casas maiores e mais elaboradas, bem como escolas, igrejas e construções públicas. Foi, porém, no final do século XVIII e início do século XIX que a cidade floresceu, graças à pioneira entrada de seus comerciantes no ramo do comércio com a China, então excepcionalmente lucrativo. Outra importante atividade econômica vinculada ao desenvolvimento da cidade foi a primeira produção mecanizada de têxteis, financiada pelo capital de Providence nos primórdios de 1790 (5).
Entre os agentes econômicos ligados à navegação e aos primórdios do comércio com a China figura John Brown (1736-1803), um ardoroso advogado de causa nada honrosa: a escravidão. Como lembra Woodward, quando criança John Brown teria definido si mesmo como “o garoto mais inteligente da cidade de Providence”. Assim, para esse historiador, a casa de John Brown reflete a postura de seu proprietário, “comandando seus arredores do alto de um outeiro e um pouco altivamente virando a face contra a Benefit Street” (6). As fotos 4 permitem avaliar a pertinência de tal avaliação [fotos 3 e 4].
No curso de sua longa vida, a casa veio a ser posteriormente adquirida por outras famílias de poder na região, em um histórico no qual não vou me estender aqui, preferindo que os leitores o conheçam no próprio local. Sim, pois o fato é que essa casa vale cada minuto de sua visitação. Não são parcos os motivos para justificar isso. O terreno no qual está implantada rende um passeio muito agradável, com seu jardim sempre movimentado por intrépidos esquilinhos. Os esquilos, aliás, foram os animais escolhidos por John Brown como marca da residência, simbolizando a industriosidade. Assim, a figura deles aparece desde a portada da casa, espalhando-se por todo o seu interior, por exemplo, na forma de estampas, entre outros recursos. Vale notar ainda que o interior, onde a maior parte do que se vê remonta à construção original, é muito bem conservado em arquitetura e mobiliário. Valorizando ainda mais a visita, a história da casa, suas características estéticas e as posturas de preservação ali adotadas são exemplarmente explicadas aos visitantes por guias versados em história e altamente receptivos.
Não obstante o histórico antes relatado sobre John Brown, vale notar que Rhode Island foi a primeira colônia americana a proibir a importação de escravos. Por outro lado, à família Brown, em especial, a Nicholas Brown (1769–1841), liga-se a formação inicial do College of Rhode Island em Warren, Rhode Island. Fundando em 1764, e registrando seus primeiros alunos em 1765, esse colégio mudou-se para a sua atual localização em College Hill, em Providence, em 1770, quando prédio ainda era chamado The College Edifice [foto 5]. Foi em reconhecimento a um importante donativo de Nicholas Brown que o colégio foi renomeado, em 1804, recebendo o nome que persiste atualmente: Brown University (7).
Nicholas Brown, o importante doador, foi o segundo proprietário da chamada Nightingale-Brown House (1791- et seq), visível na foto abaixo [foto 6]. Originalmente construída para o mercador Joseph Nightingale (1748–1797), a casa foi vendida a Nicholas Brown em 1814. Tendo os descendentes de Nicholas vivido ali até 1985, a Nightingale-Brown House abrigou cinco gerações da família Brown. Para Woodward, a Nightingale-Brown House consiste em um importante palimpsesto da história cultural local. Segundo Woodward (8), embora o rico detalhamento da casa possa parecer datado da década de 1790, sua riqueza fala da duradoura afeição de Providence por tais adornos.
Iniciada como um grande cubo, na tradição das residências dos ricos de Providence, para, Woodward, no entanto, é nas modificações feitas pela família Brown que reside o verdadeiro encanto da casa. Entre tais mudanças, são citados os acréscimos feitos por John Carter Brown (1791 – 1874), filho de Nicholas Brown: a asa de serviços com dois andares, no lado sul; o celeiro e a cocheira adicionados, no fundo do terreno, construídos em 1855, seguindo projeto do arquiteto Thomas Tefft. Igualmente são referidos por Woodward os jardins encarregados a Olmested & Olmested, pela viúva de John Carter Brown. Desses jardins, persistem ainda alguns fragmentos no local. De minha parte, reconheço os préstimos dessas adições para a volumetria da casa. A meu ver, porém, seus maiores encantos devem-se à implantação no terreno, com dois acessos diferentes em topografia e direção, atravessando os lindos jardins. Devem-se também, tais encantos, aos finos adornos em madeira presentes em toda a casa.
A Nightingale-Brown House é considerada a maior casa de estrutura de madeira sobrevivente do século XVIII nos Estados Unidos da América e foi listada como National Historic Landmark em 1989 (9). Doada à universidade, a casa passou a abrigar o The John Nicholas Brown Center for the Study of American Civilization, sendo aberta à visitação. Entre outras linhas de pesquisa, funciona ali um centro de estudos do patrimônio cultural.
Como já se percebe, a Brown University é um atrativo por si só, e boa parte da cidade gira em torno dela. Os lindos jardins, os pátios repletos de estudantes, as largas calçadas, as bicicletas circulando ou colorindo os vários bicicletários, tudo ali alegra a cidade. Além disso, a Brown University confirma a tradição americana de belas universidades, de que Harvard, em Cambridge, e Columbia, em Nova York são casos modelares. Além de prédios dos séculos XVIII e XIX, como os antes ilustrados, a Brown tem várias outras tipologias de arquitetura que valem a visitação. Mesmo os seus muros, portais e portões, por exemplo, atestam tal atratividade.
Entre os muitos exemplares de belos portões, para ficar apenas em um exemplo, destacam-se os Van Wickle Gates, que dão acesso à área do antigo College Edifice e ficam diante da John Hay Library [foto 7]. Construídos com doação recebida de Augustus Stout Van Wickle, presidente de banco e de várias empresas de carvão, a cujo nome rendem homenagem, os Portões Van Wickle foram inaugurados em 1901. Formados por três entradas, uma central e duas laterais, os portões permanecem com sua entrada central sempre fechada, abrindo apenas em duas ocasiões especiais. Uma delas é no começo do ano letivo e do segundo semestre, quando essa entrada é aberta para dentro, na admissão dos estudantes. A outra é no chamado Commencement Day, a tradicional cerimônia de formatura, quando os portões são abertos para fora, permitindo a passagem da procissão de formandos. É nessa travessia que os estudantes tradicionalmente lançam seus capelos ao alto.
A John Hay Library, que se atinge ao atravessar para o lado oposto dos portões Van Wickle foi construída em 1910. Financiada majoritariamente por Andrew Carnegie, que, entre outras realizações, construiu a consagrada casa de espetáculos Carnegie Hall, de Nova York, a biblioteca foi nomeada de John Hay a pedido desse doador. Formando da turma de 1858 da Brown, John Hay (1838-1905) foi secretário pessoal de Abraham Lincoln (presidente em torno do qual gira uma coleção ali abrigada), e secretário de estado sob Mckinley e Roosevelt. Obra do escritório de Boston Shepley, Rutan & Coolidge, a biblioteca apresenta linhas classicistas em seu volume de mármore branco. Seu acervo atualmente abriga livros raros, arquivos e coleções especiais.
No jardim que ladeia a John Hay Library, repousa um pedestal em homenagem a um dos expoentes literários americanos nascidos em Providence, Howard Phillips Lovecraft (1890 –1937), mais conhecido como H. P. Lovecraft. Inaugurado no centenário do nascimento do autor, em 20 de Agosto de 1990, pela cidade de Providence, a Brown University e os amigos de H.P. Lovecraft, este pedestal traz uma placa com o perfil do autor e um poema seu sobre Providence. A segunda estrofe do poema, fortemente figurativa, dá a justa medida da paixão do autor por sua cidade natal, como se pode ver a seguir.
Ruas com portais entalhados, onde os raios do por do sol
Inundavam velhas básculas e pequenas vidraças
E torres georgianas cobertas com palhetas douradas –
São essas as visões que moldaram meus sonhos infantis (10).
Admitido como um mestre dos gêneros de horror, fantasia e ficção científica, Lovecraft viveu a maior parte da vida na sua cidade natal, onde está sepultado no oitocentista Swan Point Cemetery. A última casa do escritor em Providence, a Mumford-Lovecraft House (de cerca de 1825) está preservada no número 65 da Prospect Street, para onde foi deslocada no final dos anos 1950. Entrevê-se aí, mais uma postura patrimonial: o deslocamento, para outro endereço, de construções de interesse de preservação, em nome de conservá-las em sua integridade física. Originalmente construída na College Street, a residência é um exemplar típico do chamado Estilo Federal de Providence (11). A casa tem telhado em empenas com mansarda provida de escotilhas, portada principal emoldurada por colunetas góticas e encimada por um arco estendido semi-elíptico, em báscula de vidro. Embora não se possa conhecer seu interior, por ser residência particular, sua contemplação externa e o entorno valem o passeio.
Providence tem muitas outras vinculações com a literatura, tantas que se torna difícil selecionar resumidamente. Assim, por imperativo de síntese, será citado aqui apenas um nome a mais – Sarah Helen Whitman (1803 – 1878). Essa ilustre poetisa, noiva de Edgar Allen Poe, em meados do século XIX morou na casa de número 88 da histórica Benefit Street.
Retornando ao tema das bibliotecas, bem perto da John Hay Library fica a John Carter Brown Library [foto 8] sendo possível visitar as duas em um único passeio a pé, por sinal, muito agradável. Abrigando coleção de material publicado nas Américas do Norte e do Sul ou sobre elas, essa biblioteca foi iniciada na década de 1830 por John Carter Brown (1797-1874) em sua própria casa, a Nightingale-Brown House, na Benefit Street. Seu filho John Nicholas Brown (1861-1900) fez desse acervo particular uma doação para a Brown University, sendo a John Carter Brown Library inaugurada no campus em 1904.
Originalmente projetada pelo escritório Shepley, Rutan & Coolidge, de Boston, a John Carter Brown Library é um prédio de planta cruciforme, ao estilo beaux arts. Apresenta paredes e cornijas em calcário de Indiana, cobertura em telhas de cerâmica vermelha, contornada por uma platibanda cujos ornamentos derivam do padrão curvilíneo do tipo escalope e de motivos indígenas. Tais motivos foram inspirados nos cocares dos índios brasileiros, que capturaram a imaginação europeia e chegaram a simbolizar o exotismo dos nativos das Américas (12). Em razão de duplicar seu tamanho, a biblioteca original foi copiada no início de 1990, com projeto de Hartman-Cox. Afigura-se, aqui, mais uma postura patrimonial: a réplica estilística e formal, para acréscimo de área, mantendo a identificação da parte original. Neste caso, a solução foi adotada para um aumento necessário ao desempenho funcional da construção histórica.
Adentrando a John Carter Brown Library, acessa-se o vestíbulo revestido de mármore italiano, abrindo-se diretamente para o principal cômodo do prédio, a W. Duncan MacMillan Reading Room [foto 9]. Esta sala de leitura ocupa quase metade do piso do prédio original e sua altura total. Nela, quatro pilares de calcário de Indiana suportam o telhado e emolduram a porta de entrada e a lareira defronte a este acesso. Por si só uma obra de arte, esta sala expõe vários trabalhos dignos de nota. Entre as pinturas oitocentistas, destaca-se o retrato de John Nicholas Brown, pintado ao vivo, em Paris, por Léon Joseph Florentin Bonnat, em 1887. Há também duas belas tapeçarias dispostas em extremidades opostas e simétricas da sala, representando temas bíblicos relacionados a São José. Datadas, ambas, de cerca de 1650, foram tecidas em Bruxelas, uma por Franz van Maelsack e a outra por Jan van Aerts.
Além das obras de arte antes descritas, o mobiliário e a iluminação da sala W. Duncan MacMillan Reading Room concorrem fortemente para o conforto e a fruição estética desse espaço. O mobiliário é marcado por estantes de bronze, manchadas ao estilo de mogno, madeira usada nas mesas de leitura, todas elas entalhadas. A iluminação é feita por luminárias desenhadas por E. F. Caldwell, e abajures com lâmpadas de coloração dourada sob cúpulas de vidro verde pontuam as mesas de leitura. Para completar, tapetes turcos cobrem o piso, fazendo dessa sala um lugar extremamente agradável. Há ainda um cuidado especial para com os livros e seus leitores: suportes de espuma com inclinação ideal para a leitura são dispostos nas mesas, apoiando os livros e tornando mais confortável a leitura.
Como é natural a uma universidade de longa tradição, com seu vasto acervo bibliográfico a Brown abriga outras tantas bibliotecas, bem diferentes entre si. É o caso, por exemplo, da modernista John D. Rockefeller Jr. Library (1962-1964), projetada por Warner, Burns, Toan & Lund, considerada parte do movimento do novo formalismo do início dos anos 1960 (13). Funcionando inclusive nos finais de semana, esta biblioteca possui uma notável coleção de literatura brasileira, além de receber diariamente os maiores jornais do mundo, inclusive brasileiros. Seu nome homenageia John D. Rockefeller, Jr. (1874-1960), filho do empresário de petróleo John Davison Rockefeller (July 8, 1839 – May 23, 1937), fundador da Standard Oil. Graduado na Brown, em seus tempos de estudantes John D. Rockefeller, Jr recebeu o apelido de Johnny Rock e foi morador do dormitório Slater Hall [foto 10], construído em 1789.
Na tipologia de residências estudantis, figuram também os quadrangles, blocos residenciais para estudantes construídos em torno de jardins e pátios, carinhosamente chamados de quads. Entre os muitos quads, todos garantindo um passeio divertido, o chamado The Wriston Quadrangle é um exemplar notável. Projetado por Perry, Shaw e Hepburn, construído entre 1950 e 1952 (14), esse quad tem nove prédios residenciais em estilo georgiano e um refeitório, o Sharpe Refectory. Essas construções estão implantadas em torno do Hughes Court, um lindo jardim, sempre movimentado por estudantes. Os prédios residenciais são nomeados em homenagem a personalidades diversas. São professores, alunos, reitores, secretários de estado, homens públicos e benfeitores que lideraram as campanhas de habitação e desenvolvimento para financiá-lo. Na foto que o ilustra neste texto [foto 11], por exemplo, vê-se, ao centro, o prédio Wayland House, que dá acesso ao quad pela Brown Street.
Outro ponto de encontro de estudantes que vale a visita é a livraria Brown University Bookstore (244 Thayer Street). Além do excelente acervo e dos vendedores realmente conhecedores de livros, o amante da literatura encontra ali uma deliciosa sala de leitura e cafeteria. Nesses ambientes, todos com acesso wi-fi, pode-se permanecer o quanto quiser, sem jamais ser incomodado. Estando já nesta que é a principal rua de comércio e serviços da cidade, visitar o Avon Theatre, onde funciona o Avon Cinema [foto 12] é uma ótima opção. Originalmente chamado The Toy Theatre (teatro de brinquedo), foi idealizado como um pequeno teatro de vizinhança, segundo projeto de William R. Walker & Son, construído em 1915.
Projetando trailers de filmes o dia inteiro na tela que ocupa o espaço da báscula sobre a porta de entrada, a portada do cinema para a Thayer Street é ponto de parada infalível dos passantes. Adentrando-a, conhece-se um interior lindamente adornado ao gosto art déco, objeto de cuidadoso restauro, realizado em 1990. Os grafismos que estampam suas paredes, o balcão de bilheteria e baleiro em metal trabalhado do seu saguão repercutem o forte vínculo entre arquitetura e o desenho de imprensa art déco. O mesmo padrão estilístico é adotado no site do cinema (15). A face do Avon Cinema para a Meeting Street, por sua vez, traz como atrativos lindos pôsteres com fotos em preto e branco de clássicos hollywoodianos. Vale a pena dobrar a esquina para vê-los.
Providence ainda tem cinemas de rua, com saguões que permanecem abertos mesmo fora dos horários dos filmes. As pessoas que amam o cinema bem sabem o quanto isso é agradável aos cinéfilos. A cidade é generosa nisso, permitindo citar, entre outros exemplares de cinema de rua, Cable Car Movie. Misto de cinema e cafeteria, com sala de projeção mobiliada como uma sala de estar e adotando o trólebus como sua marca oficial, o descolado Cable Car Movie (204 South Main Street) é uma diversão imperdível.
Flanando pela alegre Thayer Street, devaneando sobre as colinas, ou margeando o rio, um passeio em Providence é sempre agradável. A sua pequena escala favorece enormemente os percursos a pé. Essa característica enseja uma breve incursão histórica no desenho da cidade. Providence foi inicialmente desenhada de forma linear, paralelamente ao Rio Providence, e os seus primeiros lotes residenciais estendiam-se a partir da antiga The Towne Street. Desta primeira rua resta somente o traçado da implantação original (16). Na atualidade, a antiga The Towne Street recebe os nomes de North Main Street and South Main Street. Formando uma mesma rua, os dois trechos constituem dois logradouros apenas por suas distintas denominações, conforme o trecho geográfico. Ambos os trechos valem a visitação, pois sediam construções fortemente vinculadas ao histórico da cidade e descortinam belos panoramas.
Na North Main Street, fica a Primeira Igreja Batista [foto 13]. Projetada pelo arquiteto Joseph Brown, unindo as tradições das casas de reunião da Nova Inglaterra e das paróquias da Igreja Anglicana (17), a Primeira Igreja Batista foi construída entre 1774-1775. Devidamente reconhecida em sua importância histórica, a igreja foi Registrada no National Register of Historic Places (NRHP) e no National Historic Landmark (NHL). Por fim, vale lembrar que Providence foi a primeira cidade dos Estados Unidos a ter uma igreja batista, por iniciativa pioneira de Roger Williams, em 1638.
A South Main Street, por sua vez, é o endereço da The Joseph Brown House (1774), projeto do mesmo arquiteto da Primeira Igreja Batista. Recebendo o nome de seu arquiteto e proprietário, essa casa é admitida como o exemplar existente mais antigo de residência construída por um arquiteto americano para o seu próprio uso [foto 14].
Casas coloniais de madeira, construções dos estilos federal americano, classicista, beaux arts, art déco constituem um acervo variado para a cidade, muito atrativo para os interessados em arquitetura e história. Nesse diversificado acervo histórico, o ditame “Speak to the past and it shall teach thee” (fale com o passado e ele te ensinará), ecoa em toda parte da cidade. Impresso forma de selo em publicações de bibliotecas e estampado em fachadas de prédios universitários, como o Caspersen Building (a adição que duplicou a John Carter Brown Library), esse ditame poderia ser o lema da cidade [foto 15].
Será, porém, no acervo de madeira que talvez se encontre o maior interesse para os arquitetos brasileiros, em especial por constituir tipologia totalmente diversa daquela da arquitetura do Brasil. É precisamente o conjunto de madeira que constitui o grande destaque de Providence no acervo patrimonial americano. Vale lembrar que o estado de Rhode Island tem também um dos maiores acervos americanos listados no National Register of Historic Places (18). Providence, cumpre dizer, tem grande participação nesse diferencial do estado.
Nos guias turísticos e arquitetônicos da cidade, o grande destaque do acervo de clapboard houses e demais representantes do acervo de madeira da cidade fica para a Benefit Street, inclusive os sobrados [foto 16], tipologia rara na cidade. Foi nessa rua que se deu o passo inicial do movimento preservacionista da cidade. Em meados da década de 1950, a Benefit Street tinha muitas construções em estado de desmazelo e quase abandono, correndo risco de demolição por parte do poder público. Diante de quadro tão desolador, organizou-se um grupo de visionários preservacionistas para salvar a rua.
O movimento posteriormente estendeu-se por toda a região de College Hill. Foi ali propulsado pela iniciativa pioneira de Happy Chace, que começou a comprar, restaurar e tentar revender casas nesse local, quando poucos as consideravam habitáveis, e, menos ainda, em voga. Apaixonadamente movido para salvar College Hill do abandono e da sanha de bulldozers, em 1956 o movimento preservacionista já estava organizado, tendo à frente o fundador John Nicholas Brown. Neste mesmo ano, foi oficialmente fundada a Providence Preservation Society (PPS, Sociedade de Preservação de Providence), em reunião na Rhode Island Historical Society (Sociedade Histórica de Rhode Island).
No curso de sua longa existência, a Providence Preservation Society criou diferentes formas de apoio à preservação do acervo da cidade, entre elas destacando-se os grupos de orientação. Uma primeira iniciativa nesse sentido foi a criação do Consultants Bureau. Tratava-se então de um grupo de mulheres especializadas em paisagismo, pintura, papel de parede, entre outros serviços comprometidos com a pesquisa e o aconselhamento para a preservação. Com o envelhecimento dessas primeiras voluntárias, a sociedade acabou por criar uma rede para apoiar os esforços por elas iniciados. Nomeada de Old House Doctors (Doutores das Casas Antigas), essa rede é formada por arquitetos, decoradores, paisagistas e construtores. O novo grupo deu continuidade ao voluntariado precedente, conduzindo seminários e dando consultoria aos proprietários de imóveis de interesse histórico.
Além das atribuições já citadas, a sociedade assume, entre outros encargos, a gerência de políticas de preservação, dos quais participa o Programa de Placas Históricas. Por meio dele, a PPS reconhece construções que contribuem de modo positivo para a apreciação e entendimento do patrimônio arquitetônico, histórico e cultural único de Providence. A intenção do programa ultrapassa a identificação das construções de significância histórica e arquitetônica. Para além dessa meta, visa encorajar, por meio de elevada atenção comunitária, o cuidado contínuo e a preservação individual dos edifícios e vizinhanças.
Para participar do programa, o proprietário ou responsável inicialmente apresenta a candidatura do imóvel a uma placa de identificação. As candidaturas são administradas pelo Coordenador de Preservação e Advocacia e são analisadas por um comitê composto por arquitetos locais, historiadores de arquitetura e consultores de preservação. Reunindo-se quinzenalmente, o comitê delibera as decisões, que são notificadas aos candidatos. A conservação da integridade do desenho original, a boa e apropriada manutenção e a idade mínima de cinquenta anos são critérios para a outorga de placas aos imóveis.
Quando um imóvel é aprovado para receber a placa, a PPS indica um consultor de preservação para pesquisar a história da propriedade, mediante o pagamento da taxa do programa. Pesquisa terminada, com base no histórico por ela produzido fabrica-se uma placa, segundo modelo especialmente desenhado para a identificação do imóvel. Além disso, o proprietário do imóvel recebe a placa fabricada e o histórico da propriedade. A foto abaixo mostra uma edificação identificada na Benefit Street [foto 17].
Construída em cerca de 1750, originalmente na Chalkstone Avenue, esta casa foi implantada em seu atual endereço, na Benefit Street, em 1982, sendo mais um caso de postura patrimonial de deslocamento de imóvel, mantendo a integridade da edificação. Tais informações, constantes da placa de identificação do imóvel [foto 18], resultam da pesquisa de avaliação do imóvel, antes citada. A propósito, é interessante ressaltar que ao contrário de receber isenção de impostos ou quaisquer outros descontos para preservar as suas casas, os detentores desses imóveis pagam para participar do programa de identificação histórica. Essa constatação sugere o alto nível de consciência histórica e conservacionista presente na cidade de Providence.
Dona de exitosa história preservacionista, a Providence Preservation Society funciona em um lindo prédio de madeira [foto 19], sendo muito receptiva aos visitantes, como eu mesma pude comprovar. A receptividade estende-se aos eventos populares promovidos pela Providence Preservation Society, como o Festival of Historic Houses (Festival de Casas Históricas). Movido por propósitos didáticos na área de preservação, o festival acontece anualmente, contando mais de trinta anos de existência. Entre seus vários atrativos, o festival promove passeios turísticos temáticos nas áreas focalizadas na edição, quando casas particulares são abertas à visita do público.
Por fim, tudo o que vi em Providence me fez compreender que nessa cidade o passado é não somente preservado, mas tomado como lição. Em Nova York, onde começou a viagem inspiradora deste texto, eu conheci a Catedral Episcopal de Saint John The Divine. Em seu piso, entre as placas dedicadas a luminares da literatura americana, encontrei um aforismo de Gertrude Stein: “Deixe-me recitar o que a história ensina. A história ensina”. Em Providence, nada ecoou mais em minha mente que essas sábias palavras de Gertrude Stein.
notas
1
Para Lauren, seus pais, seu irmão, seu tio Frankie, sua tia Clorinda e Caroline, suas amigas Sarah e Kari, com todo o meu carinho.
2
PALUMBO, John J. Rhode Island official 2007 travel guide. Providence, Rhode Island Monthly Communications, 2007.
3
WOODWARD, Wm McKenzie. PPS/AIAri Guide to Providence architecture. Providence, Providence Preservation Society, 2003.
4
JOHNSON (s/d). Apud THOREAU, Henry David. Desobediência civil e Walden. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1985, p.62.
5
WOODWARD, Wm McKenzie. Op. cit., nota 4.
6
Idem, ibidem, p. 58, tradução nossa. No original: “Commanding its environs from atop a knoll and somewhat haughtily turning its face from Benefit Street, it assumes a posture appropriate for an owner who, as a child, described himself as “the Cleverest Boy in Providence Town”.
7
BROWN UNIVERSITY. History. Disponível em: <www.brown.edu/web/about/history>. Acesso em: 29 jul. 2010.
8
WOODWARD, Wm McKenzie. Op. cit., nota 4.
9
THE JOHN NICHOLAS BROWN CENTER. The Nightingale-Brown House. [Providence, s/d]. 1 folder.
10
LOVECRAFT, H.P. Excerto sem título. Providence, The City of Providence, Brown University, amigos de H.P. Lovecraft, 1990. Tradução nossa. No original: “Streets with carved doorways where the sunset beams/Flooded old fanlights and small window-panes,/And Georgian steeples topped with gilded vanes – /These are the sights that shaped my childhood dreams”.
11
WOODWARD, Wm McKenzie. Op. cit., p. 240, nota 4.
12
JOHN CARTER LIBRARY. The John Carter Brown library building. [Providence, s/d]. 1 Catálogo de acervo.
13
WOODWARD, Wm McKenzie. Op. cit., p. 164, nota 4.
14
MITCHELL, Martha. Wriston Quadrangle. In: Encyclopedia Brunoniana. Providence, Brown University, 2010. Disponível em: <www.brown.edu/Administration/News_Bureau/Databases/Encyclopedia/search.php?serial=W0400>. Acesso em: 2 ago. 2010.
15
Cf. Site oficial do Avon Cinema. Disponível em: <www.avoncinema.com>. Acesso em: 12 ago. 2010.
16
WOODWARD, Wm McKenzie. Op. cit., nota 4.
17
Idem, ibidem.
18
O National Register of Historic Places é a lista oficial dos lugares meritórios de preservação nos Estados Unidos da América. Trata-se de uma lista nacional, autorizada pelo Ato Nacional de Preservação de 1966 (National Historic Preservation Act of 1966), com efeito de lei. Essa lista é parte de um programa nacional americano para coordenar e apoiar esforços públicos e privados para identificar, avaliar e proteger os recursos históricos e arqueológicos da América. Para conhecer mais, ver: <www.nps.gov/history/nr/about.htm>.
sobre a autora
Eliane Lordello é Arquiteta e Urbanista (UFES, 1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) na área de Teoria e Projeto, Doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008), na área de Conservação Urbana (2008). Atua, sobretudo, nos seguintes campos: Memória e Patrimônio Urbanos; Representações Sociais de Arquitetura e Cidade; Poéticas Visuais de Arquitetura e Cidade.