1. É irresistível ceder à comparação da paisagem urbana de Istambul com a grafia de seu nome. Marcante, a primeira imagem da cidade para quem chega pelo Bósforo é um plano de altura uniforme, com certo desenho montanhoso, perfurado com finas elevações em forma de torre: são os minaretes das mesquitas – que soam cinco vezes ao dia – com suas vozes convocando para a reza. Istambul: é como se a palavra estivesse em busca de tocar o céu.
2. Sem acréscimo, a paisagem que acolhe o visitante é sem dúvida uma das mais belas do mundo. Somada ainda à sua qualidade única de mediar Europa e Ásia, fato que desde vários séculos a tornou palco fundamental da história da humanidade. Assim, um passeio pelo canal é ter de cada lado um hemisfério, geográfico e cerebral, natural e cultural, guerra e paz, onde a luz nasce, se põe e ilumina claramente e diferentemente, cada qual.
3. Passo adentro, Istambul é terra firme. Mas ainda há as pontes. Todos os dias, todas as horas, centenas de homens, e somente homens, pescam nas pontes sobre as águas – e as águas-vivas, sim, milhares delas – do Bósforo. Passam horas debruçados nos corrimões, costas para as pessoas e a cidade, varas em riste, olhos ao mar, e parece não importar o saldo do anzol. Mas sim fisgar um sinal de esperança. É no aguardo de uma surpresa divina que estão. E a partir dessa cena é possível entender a “hulzu”, a melancolia de Istambul.
4. A fisionomia do turco reforça a hulzu, pois é a sua estampa máxima. Pessoas com densidade de povo antigo. Diferente dos brasileiros, americanos, canadenses, australianos, povos jovens. É muita partilha, batalha, troca de poder, cultura e resolução. Um ar desiludido, cansado de crer, mas impelido a fazê-lo. As pessoas parecem precisar de um tempo para deixar todo o outro tempo que veio atrás, pois em parte ainda vivem nele. O fim do Império Otomano e o começo da República foi o último dos rompimentos, que com ele levaram diversas das suas tradições. Há pessimismo. Por isso quando estão felizes, parece ser apesar de algo.
5. Em Istambul, as ruínas não são conservadas e reapresentadas como patrimônio histórico a exemplo das cidades européias ocidentais. Elas apenas estão lá. Isso dá à cidade a sensação do passado ainda estar presente, mas não só isso: traz a sensação de feridas expostas, como se, ao não legitimá-las devidamente, elas residissem numa sub-memória, ora reforçando um trauma antigo, ora resolvendo-o.
6. É pena que a cultura islâmica tenha ficado tão estigmatizada – negativamente – nos tempos de hoje. Os muçulmanos de Istambul guardam lindos rituais, mesquitas, uma cultura de alegria, comércio, cultura e muita música. Há poucas coisas mais sublimes do que ver um dervixe girar.
7. Nas mesquitas, as câmeras fotográficas não tem paz. Na terra dos incríveis doces árabes e delicioso café, o Starbucks está sempre cheio. Os turcos fazem grande esforço para serem europeus ocidentais. E aí tudo se parece. A globalização pasteuriza. Mas com paladar atento e um pouco de lupa, é sempre possível sentir o gosto da nata.
8. Em turco peruca é “peruk”, cigarro é “sigara”, táxi é “taksi”, polícia é “polis”, tráfico é “trafic” e lavabo é “lavabo”. Além disso, escuto no turco um sotaque português. Mas não importa. Mesmo assim, turco ainda é russo pra mim. Só quando um búlgaro fala inglês para ser entendido aqui, só aí é que dá uma certa confiança.
9. O nariz do turco não mente.
sobre o autor
Felipe Arruda é produtor cultural e escritor.