Munique é um destino conhecido por turistas.
Representa em muitos aspectos a imagem da Alemanha no exterior. Um país organizado, apreciado por sua eficiência, mas também por certos aspectos pitorescos de tom romântico e nostálgico. Sublimados os terrores da segunda guerra, bonequinhos de porcelana com roupas bavarianas e canecões de cerveja com salsicha são evocados. Localizada no sul da Alemanha tem “ o relógio com caixinha de música” gigante na fachada da Prefeitura, simbolizando toda a sabedoria mecânica alemã e a narrativa de lutas pela defesa da antiga cidade murada . As grandes cervejarias e as mesas ao ar livre na praça do mercado lembram a grande Oktoberfest de imagens tão divulgadas.
Munique tem a elegância do eixo monumental de inspiração renascentista da Ludwigstrasse e ainda, o maravilhoso Englisch Garten, à maneira dos parques britânicos, e também a torre de televisão e as belas estruturas da Olimpíada de 1972 que abriram o caminho para a estética contemporânea na cidade. Localizadas fora do centro, contudo, não constituem a marca mais forte. Mas é a Munique do centro, reconstruída depois dos grandes bombardeios da guerra que evoca também a Alemanha perdida para os próprios alemães expatriados.
Nos anos 1980 e 1990 fui algumas vezes à cidade acompanhando minha sogra, uma das milhares de pessoas expulsas daquele país durante o período nazista. Ela era nascida em Frankfurt, cidade irreconhecível em sua modernização pós 1950, e lugar pleno de más lembranças que não mais a atraiu. Buscou então referências do passado perdido em outro local. Hospedando-se no centro da velha Munique, sentia-se ao mesmo tempo em contato com as imagens de sua infância e desfrutava dos confortos da riqueza crescente do país.
Passei muitos anos sem voltar à cidade. Em 2010 retornei depois de mais de uma década esperando encontrar as referências de apelo nostálgico de sempre. E me surpreendi.
É certo que se conservam todas as características essenciais mencionadas. A afirmação do território se dá como antes nos trajes bavarianos típicos nas vitrines e nas ruas de pedestres, porém o tom da modernização agora é outro. Não se limita à tecnologia ou aos edifícios fora do centro. Para o bem ou para o mal, a globalização trouxe o impensável, há muitos poucos anos: café expresso em pé à beira de um balcão. E afastou as antes onipresentes toalhinhas de renda de papel que cobriam pires, apoiando xícaras de café e chá, bules, bolinhos e vasinhos de flor, agora substituídos por prosaicos guardanapos de papel dobrados ao meio, se tanto.
Uma tentativa de convívio entre o velho e o novo agora perpassa também o campo da arquitetura. Os edifícios antigos do centro histórico em grandes projetos são re-apropriados com respeito à tradição, mas são reagrupados, novos usos e espaços são propostos com a melhor arquitetura contemporânea.
Sem o excessivo apego à conservação dos materiais e traços originais que costuma orientar as restaurações do patrimônio preservado classificado como tal no Brasil, saliento e recomendo a visita a dois grandes projetos que revolucionam o centro da cidade.
As remodelações para uso comercial e habitacional, repovoando o coração da cidade, no Alter Hof e ainda mais impactantes o Fünf Höfe, transformado em um grande centro de compras. Nestes dois últimos exemplos, as fachadas voltadas para a rua são respeitadas, sem excessos, como foi dito. Novos materiais são agregados, se necessário. Já o interior dos pátios internos ocupados com maestria, como pátio aberto no Alter Hof, como centro de compras no Fünf Höfe. Também vale um olhar pelo edifício da Bayerische Staatskanzlei (Palácio do Governo da Baviera) no Hofgarten, jardim da Residenz.
Todos os turistas sabem como é prazeroso ser conduzido em uma visita, com calma, por um habitante local. E os arquitetos, mais ainda, valorizam o privilégio de serem guiados por um colega morador da cidade.
Em minha visita tive a felicidade de ser levada por minha amiga arquiteta Benelisa Franco que trabalhou com preservação do patrimônio cultural no Brasil e vive em Munique há mais de vinte anos. Artista de olhar sensível apresentou-me a paisagem da transformação. Convido-os a ser conduzidos por Benelisa por estes projetos inovadores e bem cuidados.
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Cada vez que Silvia vem a Munique vivenciamos juntas uma etapa na vida desta cidade. Desta vez, entretanto, e pela primeira vez, ela ficou impressionada com algumas mudanças. Acho que porque mudanças a gente espera de outras cidades que sempre nos surpreendem por seu ritmo de transformações, como São Paulo. E não de uma cidade que para Silvia, repetindo a expressão usada por ela, seria assim “meio como um presépio”. Acontece que as transformações aqui parecem ocorrer de forma menos espetacular, quase imperceptível. Isso não impediu que Munique adquirisse nos últimos anos um ar de metrópole moderna e cosmopolita, conservando, entretanto valores tradicionais que tanto encantam os turistas. Resolvi mostrar a ela então dois projetos significativos feitos no centro da cidade, executados já no novo milênio. Para mim eles expressam uma forte tendência no desenvolvimento da arquitetura européia dos últimos anos, inserindo-se em uma política urbana de compatibilização entre poder público, iniciativa privada e participação da sociedade. Ambos foram consequência de concursos abertos de projeto.
O primeiro concurso, de 2001, visava recuperar com mudança de uso o “Alter Hof”, antiga residência da corte no século XV, conjunto edificado composto de cinco alas, com uma longa história de reconstruções atrás de si (foi praticamente destruído pelos bombardeios de 1945).
Dentro de um processo de incentivo para o investimento privado, incluindo arrendamento parcial da área, com uso por tempo limitado, a escolha do projeto vencedor foi demorada e difícil, tendo no juri não só o governo da Baviera, proprietário do terreno, como o órgão de preservação e a opinião pública. Os vencedores foram dois escritórios de arquitetura: Auer + Weber, de Munique e Peter Kulka, Colônia-Dresden.
As principais determinações urbanísticas eram a manutenção da volumetria, gabarito e panos dos telhados, com tratamentos diferenciados das cinco alas históricas. Quanto ao uso procurou-se um equilíbrio entre escritórios, moradia, lojas, áreas de lazer e serviços.
Peter Kulka executou o projeto de renovação e preservação de uma das alas tombadas, introduzindo escritórios e lojas. No bloco voltado para a praça atrás da prefeitura sua preocupação principal foi a de acentuar um portal de acesso, com altura dupla, ligando espaço público frontal, galeria de lojas e pátio interno, além de acompanhar a linha da cumeeira do edifício vizinho, criando um conjunto harmônico. Os panos de telhado (um dos condicionantes principais do concurso), foram executados em vidro estampado, com grafismo em cor vermelha. Durante o dia tem-se uma impressão de telhado clássico de cerâmica, à noite através da iluminação, obtem-se um efeito mágico de transparência, visto da praça principal.
O escritório Auer + Weber optou pela completa demolição e nova construção da ala precariamente reconstruída entre os anos 50 e 60. Este novo bloco abriga apartamentos de plantas flexíveis, assim como escritórios na cobertura; uma garagem subterrânea oferece vagas para 108 veículos. A volumetria original foi mantida e uma passagem, com escadaria, abriu o bloco para a rua traseira, permitindo a circulação de pedestres até o pátio central e consequentemente até a praça frontal ligada à prefeitura, acentuando a permeabilidade que caracteriza o conjunto como um todo.
As alas tombadas, de propriedade estatal, foram restauradas pelo Órgão de Preservação da Baviera, abrigando instituições culturais e administrativas.
O segundo concurso – “Fünf Höfe” (traduzido ao pé da letra “Cinco Pátios”) refere-se a uma quadra central onde funcionavam originalmente a filial do banco HypoBank e seu setor administrativo, além da administração de outra agência bancária, Vereinsbank. Com a fusão dos dois decidiu-se revitalizar completamente o conjunto, com uma nova concepção urbanística, partindo da idéia da união entre planejamento urbano, reciclagem e uso misto.
O concurso de projetos de 1994 foi ganho pelo escritório suiço, da Basiléia, dos arquitetos Jacques Herzog e Pierre de Meuron, que desenvolveram o conceito de “redefinição do shoppingmall americano”. A proposta dos arquitetos convenceu os jurados do ponto de vista da análise histórica do conjunto, conservando a sequência de fachadas tombadas com visual para a catedral, identificação clara dos blocos edificados significativos, alguns até monumentais, e a releitura da tipologia dos pátios internos tradicionais, citando formalmente a Residência Real localizada nas proximidades. A quadra como um todo foi praticamente demolida em seu interior, sendo preenchida por edifícios restaurados ou reformados,assim como novos, mantendo-se o gabarito original e as linhas de cumeeira. As novas fachadas variam entre austeras, revestidas de tijolinho, até extremamente leves, de aço e vidro. Uma rede diferenciada de ruelas e pátios internos resultaram numa galeria extremamente sofisticada, garantindo a permeabilidade do conjunto composto por lojas, dentre elas um supermercado, restaurantes e cafés, escritórios, incluindo as novas instalações bancárias, unidades de apartamento e galerias de arte.
O projeto partiu do fechamento da quadra para as ruas circunvizinhas construindo acessos estreitos, portais, ligados à rede de caminhos internos que se cruzam em um ponto central. Este conforma o coração do conjunto caracterizado pela galeria principal com 90 metros de comprimento, fechada por paredes de 14 metros de altura, totalmente envidraçadas. Trepadeiras pendem do teto, através de uma malha metálica, formando uma espécie de “jardim suspenso”, iluminado artificialmente e sempre verde. Esta cobertura interna verde também é responsável pela qualidade climática da passagem.
Outros escritórios de arquitetura ficaram responsáveis por determinados edifícios do complexo: Ivano Gianola (suiço) e Hilmer & Sattler (Munique). Artistas plásticos também participaram da obra, entre outros Thomas Ruff (fotos de cenas urbanas e paisagens impressas a laser em lajes de concreto do piso), Olafur Eliasson (globo metálico de 8 toneladas que pende em um dos pátios de acesso), sem esquecer do maravilhoso projeto dos “jardins suspensos” da artista alemã Tita Giese.
referências bibliográficas
Neues Leben im Alten Hof. Alter Hof <www.alter-hof.de/html/projekt.php>
Neues Leben im Alten Hof. Architekten 24 <www.architekten24.de/projekt/alter-hof-muenchen/uebersicht/3086/index.html>.
Fünf Höfe <www.fuenfhoefe.de>.
Kunstobjekt. Architekten 24 <www.architekten24.de/projekt/fuenf-hoefe/uebersicht/1303/index.html>.
Kunsthalle in den Fünf Höfen. ArchInform <http://deu.archinform.net/projekte/9884.htm>.
Einblicke.Rückblicke.Ausblicke. München. Ein Magazin anlässlich 30 Jahre Referat für Stadtplanung und Bauordnung. Landeshauptstadt München, Referat für Stadtplanung und Bauordnung. Munique, 2009.
sobre as autoras
Silvia Ferreira Santos Wolff é arquiteta formada pelo Mackenzie, mestre e doutora em História da Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. É técnica da UPPH/Condephaat, onde tem se concentrado na atividade de identificação e pesquisa. Realiza também orientação e análise de projetos de intervenção em bens tombados, como o de instalação do Museu do Futebol no Estádio do Pacaembu e a proposta para o Museu da História de São Paulo, na Casa das Retortas. É autora dos livros Jardim América e Escolas para a República pela Edusp e co-autora, entre outros, de Dez Roteiros a pé por São Paulo, pela Narrativa Um.
Benelisa Franco, arquiteta formada pela FAUUSP, trabalhou no Condephaat de 1982 a 1987. Com bolsa de estudos da Fundação Humboldt fez estágio de especialização no Órgão de Preservação do Patrimônio da Baviera de 1985 a 1986. Desde 1991 vive com sua família em Munique, onde se tem dedicado às artes plásticas e à traduçao de livros de arquitetura do alemão para o português. Entre outros, traduziu a nova edição do Arte de projetar em arquitetura de Ernst Neufert, para a Editora Gustavo Gili.