Partimos no sábado, 17 de março de 2012, da cidade do Porto em Portugal em um vôo rumo à “cidade vermelha”, Marrakech, sudoeste do Marrocos, entre o deserto do Saara e o litoral atlântico da África.
Na chegada, o edifício do aeroporto e o trajeto até a cidade amuralhada, a Medina, revelam um Marrocos de empreendimentos imobiliários de luxo, dos campos de golfe e condomínios fechados.
O ponto de partida até se chegar ao hostel escolhido, já dentro da Medina, é a curiosa praça Jemaa El Fna com os seus encantadores de serpente, curandeiros, músicos e os mais diversos vendedores de artigos que vão desde suco de laranja à lagartos. Para a praça convergem uma gama de estreitas ruas labirínticas para as quais se abrem uma série de lojas de tecidos, bolsas, artigos em metal, cerâmicas, vidros, roupas, tapetes, lustres, pigmentos e mais uma infinidade de mercadorias que compõem cenários de colorido intenso. Tais ruas são conhecidas em árabe como os Souks e o seu conjunto forma um dos mais importantes e antigos mercados do norte da África. O trânsito de automóveis nos Souks é quase inexistente, porém são inúmeras as motocicletas, bicicletas e carroças que cruzam a todo o momento e podem esbarrar nos transeuntes menos atentos. O sol de março ainda não é o mais escaldante comparado às temperaturas que se aproximam, no entanto chama a atenção o sistema adotado para o sombreamento dos Souks que variam entre entrelaçados de fibras vegetais (varas) a estruturas mais complexas em madeira; todos estes presos à parte superior das empenas das fachadas. É comum perder-se dentro da Medina, ou não mesmo conseguir encontrar os monumentos e locais de interesse, e é nessa hora que se deve aceitar a ajuda de alguma criança que se ofereça como guia; em troca de algum dinheiro, sempre.
A religião islâmica garante, a meu ver, que todo tipo de mercadoria fique na rua à mostra e que não haja assaltos ou qualquer outro tipo de infortúnio mais sério relacionado à segurança, de modo que é perfeitamente possível caminhar com a sua máquina fotográfica à tira colo sem problemas, devendo-se apenas tomar mais cuidado com os bolsos e com os locais muito cheios de gente. Há muita abordagem a fim de se vender algo, levá-lo a algum lugar, ou mesmo a pedir dinheiro; às vezes, esses atos chegam a ser inconvenientes, porém depois de um tempo, os pedintes acabam desistindo.
Ao norte da praça Jemaa El Fna está o Madraçal de Ben Youssef, que é um anexo da Mesquita de Ben Youssef, e se trata de uma antiga escola islâmica onde jovens estudantes memorizavam o alcorão. O edifício organiza-se em torno de um pátio ricamente adornado e com uma piscina usada para as abluções – lavagem de purificação antes de cada uma das cinco orações diárias. Para este pátio abrem-se as pequenas janelas dos dormitórios / celas dos estudantes. Chama atenção o fino reboco – estuque – trabalhado e os azulejos coloridos e de composições geométricas. As cores predominantes são os azuis vindos do cobalto, os verdes do cobre e os amarelos e ocres do ferro e do manganês. Algo muito próximo dos palácios mouriscos da Alhambra espanhola em Granada e, por sua vez, de toda a Andaluzia, no sul da Espanha.
Bem ao lado do Madraçal de Ben Youssef fica o Musée de Marrakech um antigo palácio do final do século XIX também com a sua planta agenciada ao redor de um grande pátio. Este edifício, ao contrário do Madraçal, já revela alguma influência européia ao gosto de sua época.
Aspecto interessante, igualmente ligado ao Islão, é o de que a religião confere ao skyline das cidades marroquinas os elementos verticais chamados minaretes – a torre das mesquitas – de onde ecoam as cinco chamadas diárias à oração. Figuram em todos os aglomerados urbanos e, normalmente, são os edifícios de maior requinte. Acompanham a escala do seu entorno sendo o seu exemplo maior – verificado nesta viagem – o minarete da Mesquita de Koutoubia, ainda na Medina de Marrakech, com os seus 69 metros de altura, o mais alto edifício da cidade e fonte de inspiração para La Giralda de Sevilha.
A maioria das habitações da Medina tem no pátio a sua fonte de luz e ventilação, de modo que são quase escassos os vãos das paredes exteriores das edificações junto às ruas. A introversão da arquitetura marroquina desperta a curiosidade do passante que busca nas portas entreabertas a descoberta de domesticidades e interiores, por vezes, intrigantes.
Ao redor da praça Jemaa El Fna encontram-se as diversas agências de turismo que oferecem os meios para se chegar à entrada do deserto do Saara passando pela cordilheira do Alto Atlas, as maiores altitudes do norte da África. Nosso grupo parte então, na manhã do dia 18 de março, para o percurso de cerca de 460 km pela rodovia N9 com destino ao acampamento próximo à vila de Mhamid, pertencente à província de Zagora, próximo à fronteira com a Argélia.
Pela estrada, o relevo começa a mudar, pois enquanto Marrakech insere-se em uma grande planície, 63 km ao sul, surge o pico Jbel Toubkal da cordilheira do Alto Atlas, com os seus e 4.167 metros de altitude todo branco e coberto pela neve que ainda permanece. No caminho avistam-se várias e freqüentes vilas de terra. Aglomerados de habitações, assentes sobre platôs que acompanham a morfologia do terreno, formam a paisagem dos grandes horizontes avistados da rodovia tortuosa e revelam a técnica construtiva milenar que tem na terra o seu principal recurso e meio para habitar ambientes hostis aos nossos olhos, mas de rara beleza.
A primeira parada para visita é a milenar cidade amuralhada Aït Benhaddou. Patrimônio da humanidade desde 1987, a cidade está implantada no alto de uma colina e, para acessá-la, é preciso atravessar a pé o rio Oued El Maleh. O contato com as construções de Aït Benhaddou permite-nos observar mais de perto a qualidade da técnica que variam entre a taipa e o adobe embasados por alvenaria de pedra. A utilização de uma técnica ou outra – adobe ou taipa – varia caso a caso, porém há exemplos do emprego das duas em uma mesma construção, principalmente naquelas de maior altura, que apresentam taipa nas camadas mais baixas e adobe nas alvenarias dos pavimentos superiores. A estrutura das coberturas planas é realizada por barrotes de madeira apoiados nas paredes que, por sua vez, recebem ramos vegetais mais finos sobrepostos por uma camada de um misto de terra batida e pedriscos que efetuam o cobrimento da “laje” usada também como terraço. Não há beirais e a água das coberturas é, em alguns casos, direcionadas à gárgulas de madeira que afastam a umidade das paredes. O remate superior das alvenarias é feito por uma platibanda encimada por uma camada de varas justapostas que ultrapassam as faces da parede e configuram uma pingadeira. Um estrato de terra com dupla inclinação completa e dá o acabamento final às platibandas. Muros e cercas também recebem o emprego desta técnica atribuindo-lhes maior resistência às intempéries.
Uma informação dada pelo nosso guia local faz-nos pensar sobre a perenidade da cidade de terra e de toda uma técnica condicionada pelo seu uso. Por acreditarem nas maravilhas do concreto armado e associarem a tecnologia tradicional a uma construção pobre e vulnerável, boa parte das antigas 98 famílias que habitavam Aït Benhaddou migrou para a outra margem do rio fundando uma nova vila.
Aït Benhaddou foi uma das numerosas paradas da rota comercial que ligava o Sudão a Marrakech pelo vale do rio Dra’a e pelo desfiladeiro de Tizi n Telouet. Assim seguimos viagem por estas paisagens onde mais e mais vilas de terra passam rapidamente pelo vidro da van revelando suas particularidades e semelhanças. Fator comum entre as povoações que se sucedem são os sistemas de condução das águas dos rios através de canais de irrigação que permitem o cultivo de algumas espécies vegetais – como a alfafa que serve de alimentos aos animais – e quebram a aridez do relevo nas cotas mais baixas dos vales.
O percurso no final do dia sobre dromedalhos nos leva ao acampamento nas proximidades de Mhamid. A noite do deserto revela uma escuridão hoje um pouco ofuscada pela luz elétrica emanada das cidades próximas, mas que ainda evidencia as estrelas e leva-nos a pensar sobre a relação entre homem e universo, ou mesmo entre o sagrado e o profano que, outrora, assumia outras vicissitudes. As estrelas observadas ali nos dão a dimensão de algo transcendente que remete aos princípios compositivos do vocabulário ornamental islâmico regido pela geometria, pelo ritmo e pela repetição matemática que aludem a um espaço eterno e infinito. O céu não tão escuro de hoje faz-nos constatar que, na contemporaneidade, para bem ou para mal, temos outras cidades e outros céus que não aqueles de homens e arquiteturas passadas.
sobre o autor
Kauê Felipe Paiva cursa graduação em arquitetura e urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design da Universidade Federal de Uberlândia – FAUeD/UFU. Atualmente é bolsista do Programa de Mobilidade Internacional da UFU e cursa dois semestres de estudo na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa em Portugal.